domingo, 23 de outubro de 2011

A crise (adiada) do neoliberalismo - parte VI

(Continua daqui: I, II, III, IV e V)

O colapso do sistema financeiro exigiu dos Estados a mobilização de recursos financeiros na ordem das centenas de milhares de milhões de dólares, visando evitar a paralização dos sistemas financeiros e as suas repercussões na actividade económica. Tal não evitou, ainda assim, que o PIB mundial decrescesse em termos reais pela primeira vez desde o pós-Guerra, conduzindo a uma ainda maior degradação das contas públicas – e à crise da dívida soberana que hoje assola vários países.

Entretanto, o sistema financeiro continuou sob assistência estatal, beneficiando de garantias para obtenção de crédito, bem como de empréstimos a baixo custo por parte dos bancos centrais. Parte dos recursos assim obtidos foram utilizados para adquirir títulos da dívida pública de vários países, nomeadamente daqueles cuja fragilidade financeira justifica a aplicação de taxas de juro atractivas para os investidores. Isto terá contribuído para que a crise se tenha revelado menos severa para o sector financeiro do que para o resto da economia: depois de ter sofrido perdas na ordem dos 42,6 mil milhões de dólares em 2008, o sector financeiro dos EUA obteve lucros de cerca de 55 mil milhões de dólares em 2009, distribuindo bónus aos gestores superiores a 20 mil milhões de dólares.

A grande crise do neoliberalismo apresenta-se hoje como um contrasenso. Surgindo como o exemplo mais recente e mais gravoso das implicações de um modelo de desenvolvimento que conduz ao aumento das desigualdades sociais e à instabilidade económica e financeira, o resultado da crise parece ser hoje o aprofundamento desse mesmo modelo. A crise financeira dos Estados conduz ao aumento da carga fiscal sobre os assalariados e à redução dos apoios sociais, num contexto em que o desemprego alastra, acentuando assim as dinâmicas de desigualdade. O apoio ao sector financeiro, justificado pela persistência de dúvidas sobre a sua robustez, fomenta o crescimento do seu peso na economia, preservando e até reforçando a sua influência política.

Tal influência ajuda a explicar o alcance modesto das reformas até agora introduzidas no funcionamento dos sistemas financeiros: a lógica de auto-regulação dos mercados não foi substancialmente alterada; os grandes aglomerados financeiros não foram desmantelados, tornando incontornável a necessidade de apoio dos Estados em futuros cenários de crise; e os fluxos internacionais de capitais seguem sem restrições em grande parte do mundo.

A crise financeira que teve início em 2007 terá ajudado, como sugeriu Stiglitz, a transmitir ao mundo a mensagem de que o actual modelo de desenvolvimento económico é insustentável. Mas por ora ficou adiada a sua reforma.

(Texto publicado no anuário JANUS 2011-2012.)

3 comentários:

  1. A mim, o que parece não ter muita fundamentação é associar,ao mesmo temo, as insuficiências do sistema financeiro e correspondente ajuda dos estados com um qualquer modelo dito liberal.

    J

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  2. Caro anónino,
    A meu ver, tem toda a fundamentação quando se tem em conta que o projecto neoliberal não dispensa o estado - pelo contrário, apoia-se no estado para levar a cabo a compressão salarial e as transferências de valor necessárias para sustentar as taxas de lucro. O recurso ao argumentário liberal clássico apenas se aplica no que ao papel progressista do estado diz respeito: regulação, transferências sociais, provisão de bens públicos. O que está verdadeiramente em causa não é, portanto, mais estado ou menos estado, mas sim estado ao serviço de quem.
    Cumprimentos.

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  3. Meu caro Alexandre Abreu,
    Mais uma vez desconheço qual a sua fundamentação quando refere que um modelo dito liberal "apoia-se no estado para levar a cabo a compressão salarial e as transferências de valor necessárias para sustentar as taxas de lucro."
    A sério que desconheço.


    J

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