Obsessão orçamental com contas alegadamente certas que, faz-se notar naquele editorial, até do FMI, nestes assuntos insuspeito, mereceu atenção. Na terça-feira, na sua avaliação anual da economia do Reino Unido, o FMI recomendou “aperfeiçoamentos” na estrutura orçamental do país para que este possa superar a espiral de recorrentes cortes na despesa pública e/ou de aumento de impostos.
No sentido certo, ambas as abordagens acima falham quando, cometendo um erro com consequências que, no passado, mostraram ser desastrosas, não reconhecem uma das verdades essenciais, mil vezes enunciada - por exemplo, aqui, ali, acolá, nesta forma e nestoutra - e outras tantas empiricamente provada, da política orçamental:
“[O] saldo orçamental é igual à diferença entre as receitas e as despesas públicas, mas é também igual, por definição, à soma da poupança privada líquida (famílias e empresas) com o défice da balança de pagamentos. Se o sector privado decidir poupar mais, o governo não tem alternativa a permitir que o défice suba a menos que esteja preparado para sacrificar o pleno emprego; o mesmo princípio se aplica se tendências não corrigidas no comércio externo provocam crescimento do défice da balança de pagamentos. [Assim] [u]m sensato objetivo para o saldo orçamental não pode ser estabelecido a menos que esteja integrado numa visão acerca do que acontecerá a tendências autónomas e propensões na poupança líquida privada e no comércio externo. Acresce que, como essas tendências e propensões mudam, nunca será possível determinar objetivos realizáveis para o défice que sejam fixos no tempo como, por exemplo, que aquele défice nunca pode exceder algum número como 3 por cento do PIB ou que em média deve ser zero.”
Exposta ex-ante por Wynne Godley no trecho acima, esta esquizofrenia económica neoliberal que tem a assinatura de um partido trabalhista, partido este historicamente social-democrata, mas hoje rendido ao social-liberalismo, é apenas mais um exemplo da política desastrosa do extremo-centro-direita que faz estragos um pouco por todo o planeta.
O paralelismo com a Alemanha dos anos 1920 e 1930 torna-se, a meu ver, inevitável.
A Grande Depressão de outubro de 1929 teve, particularmente na Alemanha, um impacto muito severo. Ainda a recuperar da destruição do seu aparelho produtivo e a arcar com as indemnizações impostas pelos vencedores da Primeira Guerra Mundial, manietado pela impossibilidade de desvalorizar a sua moeda, dado o padrão ouro, o país importava mais do que exportava e, em consequência, acumulava sem cessar dívida externa.
Com governos de extremo-centro-direita, que incluíram sempre social-democratas e democratas-cristãos, separados ou em coligação, em toda a década de 1920, mas sobretudo depois de 1929, a política económica tentou sempre, sem sucesso, ultrapassar os pesados constrangimentos acima referidos com políticas deflacionistas muito semelhantes àquelas que hoje resultam da ideologia das contas (alegadamente) certas, política aquela que gerou altíssimos níveis de desemprego e que colocou na miséria vastos setores da população, criando um exército de excluídos e deslaçando a sociedade.
A Grande Depressão encontrou um chanceler social democrata no poder, Hermann Müller, partidário daquelas desastrosas políticas de austeridade. A Müller sucedeu Heinrich Brüning, do Partido do Centro Alemão - cristãos conservadores - que, liderando uma coligação de direita, endureceu a política deflacionista que vinha a ser seguida.
O desemprego declarado adicionado daquele outro escondido pela desistência de encontrar empregos que não existiam, atingiu valores devastadores. Os cortes brutais na despesa social, nomeadamente no subsídio de desemprego quando este mais necessário era, o enorme aumento de impostos e a subsequente agitação social e política tinham levado ao colapso a grande coligação do chanceler Hermann Müller e ao início dos gabinetes presidenciais.
A partir de março de 1930, o presidente Paul von Hindenburg usou poderes de emergência para nomear sucessivamente os chanceleres Heinrich Brüning, Franz von Papen e o general Kurt von Schleicher. Em 30 de janeiro de 1933, Hindenburg nomeou Adolf Hitler como Chanceler para chefiar um governo de coligação. O resto deste episódio é o que sabe: nazi-fascismo e o maior conflito da História da humanidade.
As opções de governação de Heinrich Brüning, por si apresentadas como centristas, como já havia feito o anterior Chanceler social-democrata enquanto insistia em políticas igualmente contracionistas, acentuaram tão significativamente o empobrecimento da nação que lhe valeram-lhe o cognome de «Chanceler da Fome». Política macroeconómica contracionista, dificilmente adequada seja em que contexto for, errada naquele, que criou as circunstâncias propícias ao surgimento do extremismo político de direita, esgotadas que notoriamente estavam as políticas de partidos que se auto-definiam como sendo moderados e centristas.
Uma política míope e equivocada, uma austeridade fatal, esteve, pois, na génese da catástrofe que a Alemanha impôs a si própria e ao mundo. Como mostra a literatura histórica, com as consequências económicas e sociais daquela desastrosa política, o partido nazi foi aquele que eleitoralmente mais beneficiou.
Ninguém pode, pois, espantar-se se as contas alegadamente certas de Keir Starmer ditarem simultaneamente a sua derrota e a vitória dos extremistas de direita acolitados no partido de Nigel Farage, o Reform UK.
A Alemanha e Portugal, com os farsantes extremistas da Alternativa para a Alemanha (AfD) e do Chega, ambos fascistas, ou lá muito perto, como segundos partidos mais votados, podiam servir para um partido dito trabalhista tirar as devidas conclusões. Contudo, até porque é um partido liderado por um cúmplice objectivo do genocídio em curso, tudo indica que, infelizmente, persistirá no erro e insistirá nas políticas que tornaram Starmer num dos primeiro-ministros mais impopulares do pós-guerra.
Nem sequer é necessário conjecturar sobre o futuro. Insistindo nas contas alegadamente certas, no absurdo de um orçamento que permanentemente visa o saldo zero ou o superávit, o Partido Socialista (PS), um partido da mesma família do trabalhismo britânico, já pagou com língua de palmo a sua rendição incondicional ao austeritarismo euro-liberal.
Usando de uma possibilidade que resultou da convocação inesperada de eleições antecipadas, com cinismo e mediana argúcia tática, a Aliança Democrática (AD) fez o PS provar do seu próprio veneno. Os habituais joguinhos de poder do extremo centro. Aqueles que cavam desconfiança nos eleitores e os afastam das coisas políticas.
Se o governo de António Costa estava preparado para impor restrições na primeira parte de uma legislatura de 4 anos e distribuir “benesses” apenas na segunda, a AD tendo tomado o poder sem maioria absoluta, começou na primeira hora do primeiro dia de um mandato que lhe caiu do céu (ou, tudo parece indicá-lo, terá sido da acção articulada da Presidência da República e da Procuradoria Geral da República?), a governar para alargar a sua maioria em novas eleições antecipadas que tudo fez para provocar e por isso, por razões eleitorais, não só, não efetuou cortes na despesa pública total, como concedeu imediatamente aos funcionários públicos os aumentos salariais há muito devidos e que o Partido Socialista planeava de forma calculista para a fase final da legislatura que viu interrompida.
Assim, se a AD soube furtar-se habilidosamente às penalizações eleitorais que, mais tarde ou mais cedo, recaem sobre quem executa políticas austeritárias, não as executando, que ninguém se admire que, depois de ganhas as eleições, o país seja confrontado com cortes cegos e profundos na despesa pública e com as políticas fiscais e de rendimentos regressivas que são o genuíno programa da direita mais ou menos liberal.
Assim sendo, tal como no passado, os fascistas estão à espreita e apostados em capitalizar o descontentamento que aí vem, sendo certo que, se forem bem sucedidos, o que teremos é o recuo em toda a linha de direitos, liberdades e garantias.
Nós, à esquerda, estou seguro, nunca desistiremos do nosso país, da liberdade e da luta por um mundo livre da exploração do homem pelo homem.
Elementar, meu caro Paulo, glosando palavras alheias. Em modo de síntese pessoal acrescentaria apenas duas notas. A primeira delas, é uma referência ao facto de subsistirem e se avolumarem a cada dia, problemas estruturais na sociedade portuguesa: na habitação, mas também na saúde, na educação, nos transportes e nos baixos salários, que colocam uma parte significativa dos nossos patriotas absolutamente encurralados entre espadas e paredes diversas.
ResponderEliminarFace a este cenário, está já anunciado o aprofundamento da unilateralidade do comentariado nacional e de outros centros e mecanismos de produção ideológica, garantindo que ao longo das 24 horas de cada dia, apenas se ouve a voz do dono, perpetuando a alienação social, que impede as pessoas de se perceberem como classe e, consequentemente, de terem uma acção classista. As políticas orçamentais ditas das contas certas, contam para a sua tranquila implantação, com o adormecimento social que lhe tem sido dado pelo "extremo centro", chão esse, que, como se viu no dia 18 de Maio, já teve mais uvas para dar.
É aqui que se abre a minha segunda nota e com uma pergunta clássica: o que fazer? Subsiste sempre a possibilidade de resignação capitulativa, com a extrema-direita mais ou menos fascista a tomar conta do poder e a impor (nem que seja a ferro e fogo) a sua agenda de regressão civilizacional (não, não se trata apenas de direitos económicos e sociais, trata-se de uma verdadeira reconfiguração dos paradigmas alicerçantes da sociedade) ; mas há também e para quem não se conforme, a possibilidade de soluções à esquerda, que para o serem verdadeiramente, hão-de ser de natureza tão radical, como é radical a natureza dos problemas a que se oferecem como resposta.