terça-feira, 29 de outubro de 2024

Uma fé nos peitos


“O futuro é negro: mas na própria negrura não há ausência de luz.” A 11 de março de 1939, em pleno regime fascista, num mundo prestes a soçobrar perante as hordas nazifascistas, um jovem intelectual de 25 anos perscrutava o futuro. 

Atrevia-se então a afirmar o amor pela vida e o imperativo da felicidade, “dada pela satisfação da linha de conduta, pela satisfação de que se procede bem”. 

Álvaro Cunhal terminava o artigo, intitulado “um problema de consciência”, deixando um testemunho, fazendo a si próprio e aos outros uma promessa, consciente do que tinha já passado e do muito que haveria de passar: “Atravessar-se-ão tragédias com lágrimas nos olhos, um sorriso nos lábios e uma fé nos peitos”. 

Fé, notai, secular, certamente, mas fé, salto para o que, no fundo, é desconhecido, embora se possa antever aqui e agora em potencialidade. Este salto implica, sabia-o bem, a declinação de uma primeira pessoa do plural, feita de muitos, com a tal fé nos peitos, ali e agora. 

Em boa hora decidiram as Edições Avante! reeditar em opúsculo este artigo, acompanhando-o de belas ilustrações de Ana Biscaia, numa edição de primorosa simplicidade, impressa em Agosto de 2021 na tipografia Damasceno, em Coimbra. 

Adquiri-a na Festa do Avante! de 2024 e li-a numa noite quente, mas de janelas encerradas, numa Coimbra cheia de fumo, devido aos incêndios – “o exterior parece terrivelmente inimigo”, como afirmou Cunhal na primeira frase do artigo. 

Há consolo na leitura, embora isso não seja o mais importante. O mais importante é mesmo a renovação de uma fé, pelo testemunho partilhado, numa cadeia do tempo sem fim, tentado pela analogia. 

Desse opúsculo passei para outro, em busca de ligações: Comunistas e Católicos, um caderno também das edições Avante!, já de 1975. O seu primeiro texto é um excerto – “a mão estendida aos católicos” – do Informe Político ao Primeiro Congresso do PCP na clandestinidade. 

Já se nota o estilo inconfundível de Álvaro Cunhal, que fez trinta anos durante os dias que durou o Congresso, como informa Pacheco Pereira na sua monumental biografia, cada vez mais empática, digamos, de volume para volume. 

Nas mais duras condições nacionais e internacionais, Cunhal fazia as distinções que se impunham, em particular entre “política da Igreja Católica”, de recorte fascista – “não os combatemos pela sua atividade religiosa”, sublinhava – e a massa de trabalhadores católicos, “explorados e oprimidos como nós”. Seria um ponto de partida para o reconhecimento de que os católicos fazem parte da primeira pessoa do plural, para a qual contribuem de pleno direito. 

A política com p grande passa sempre por um esforço para fazer distinções moralmente justas e politicamente produtivas em conjunturas históricas bem concretas. E para isso o conhecimento não basta: é necessária uma fé nos peitos.

Publicado na Terra da Fraternidade, “um espaço independente e inclusivo de encontro e intervenção no âmbito religioso, alimentado por vozes de diferentes tradições e espiritualidades que lutam pelo progresso social”.

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