segunda-feira, 4 de março de 2024

Truques da iniciativa das liberdades censitárias


Na discussão sobre a delimitação da esfera pública e privada, a esquerda é frequentemente acusada de, por “razões ideológicas”, diabolizar os privados. Um bom exemplo disto é uma crónica (já com alguns anos, mas divulgada recentemente pelo próprio) de Carlos Guimarães Pinto (CGP) ex-líder da iniciativa das liberdades censitárias intitulada “Somos todos privados”.

Neste artigo CGP afirma que esta diabolização é paradoxal por dois motivos: “porque são os privados que financiam o Estado através de impostos” e porque todos os serviços prestados pelo Estado, sendo prestados por pessoas, são no fundo prestados por privados (o resto do artigo de CGP é sobre este segundo motivo).

A decisão é se queremos que estes sejam prestados por “uma estrutura burocrática dirigida por políticos de carreira” onde “há poucos incentivos a fornecer um serviço eficiente e de qualidade” e onde “(t)odas as pessoas envolvidas têm rendimentos fixos e a evolução desses rendimentos depende mais do seu peso político do que da qualidade do serviço fornecido ou eficiência com que é fornecido”. Ou se, em alternativa, preferimos que sejam prestados por empresas onde “alguém arrisca o seu dinheiro e tem todo o interesse em que os recursos pagos com esse dinheiro sejam utilizados de forma eficiente”, onde “existe um incentivo permanente a melhorar a qualidade” e “se os rendimentos dependerem do número de beneficiários do serviço (alunos, pacientes…) a possibilidade de os perder dá um forte incentivo a aumentar a qualidade do serviço”.

Face a esta descrição, o principal argumento que CGP identifica à esquerda é que a segunda opção implicaria um custo ligeiramente superior de modo a incluir os lucros dos empresários, um custo totalmente aceitável para CGP e, diria eu, para qualquer pessoa que se reveja na descrição do publico e do privado feita por CGP.

Começando pelo segundo motivo, que é o único desenvolvido por CGP, o problema do argumento apresentado é que a descrição que faz é, no mínimo, ingénua ou desonesta. Como acaba por referir de passagem CGP na última citação que usei (“se os rendimentos dependerem…”), os incentivos no privado de melhoria da qualidade dos serviços estão sempre dependentes do impacto que estes têm na rentabilidade do investimento feito, na maximização dos seus lucros. O incentivo permanente que existe não é o de melhorar a qualidade, mas sim o de maximizar o retorno dos investimentos feitos e é esta lógica de acumulação que domina a atuação do sector privado, independentemente da vontade dos envolvidos. Neste metabolismo social, ao contrário do que aqueles que equiparam o capitalismo ao mercado livre gostam de pensar, o dinheiro não é um simples intermediário entre diferentes bens e serviços indispensáveis à satisfação dos desejos e necessidades da sociedade, mas sim o objetivo final a que esses mesmos desejos e necessidades se têm de subordinar.

O dinamismo que esta inversão dos meios e dos fins proporciona resulta seguramente em benefícios consideráveis, mas acarreta também tendências estruturais perversas que a direita desvaloriza. Na esfera das relações laborais a tendência é de repressão salarial, de precarização do trabalho e o consequente crescimento das desigualdades, além de que ganhos de produtividade não tendem a ser refletidos na redução do tempo de trabalho, mas sim em aumentos de produção.

Empresas que não estejam dispostas a fazer o necessário para maximizar o retorno dos seus investidores desaparecem ou são adquiridas por concorrentes que o façam, o que resulta no surgimento de oligopólios onde a concorrência e o incentivo a melhorar a qualidade são reduzidas permitindo também garantir margens mais elevadas. Decisões sobre o que produzir e em que investir são tomadas por uma fração cada vez menor da sociedade, recaindo tendencialmente em bens e serviços destinados a quem tem maior poder de compra, o que tendo em conta as crescentes desigualdades já referidas exclui uma parcela cada vez mais significativa da população. Inovações tecnológicas alinhadas com este processo de acumulação são obviamente mais facilmente adotadas que outras, menos alinhadas, mas com maiores benefícios para a sociedade. A este quadro podia-se ainda acrescentar a tendência para gerar crises de excesso de produção, financeiras, e ambientais, que não sendo menos importantes são menos relevantes para a presente argumentação.

A materialização destas tendências, com maior ou menor intensidade, depende obviamente de múltiplos fatores sociais, políticos e culturais, do contexto e do ponto de partida em que se desenrolam assim como da correlação de forças entre os diferentes intervenientes e classes sociais.

A provisão pública de bens e serviços associados a direitos fundamentais, como a educação, saúde e habitação não só os protege das tendências perversas anteriormente referidas, como dá garantias mínimas às camadas mais desfavorecidas da população conferindo-lhes uma capacidade negocial e de decisão sobre a sua vida muito superiores ao que ocorreria num cenário de mercantilização destes direitos. Uma provisão privada destes bens e serviços essenciais tende a resultar numa discriminação significativa no seu acesso em função do poder de compra de cada um, ao mesmo tempo que contribui para um agravamento das desigualdades de rendimento.

O que se tem passado na habitação é um bom exemplo disso, com preços inacessíveis para uma larga maioria da população, sectores de luxo com um peso cada vez mais significativo e uma incerteza e insegurança das pessoas que em muito contribui para a sua sujeição a condições de emprego que noutras circunstâncias provavelmente não aceitariam.

Numa sociedade onde até direitos essenciais são mercantilizados e monetizados, apenas os mais ricos são realmente livres. Aos mais desfavorecidos espera-lhes uma vida de ansiedade e insegurança com o consolo de que terão sempre a liberdade de escolher o seu médico da panóplia de médicos da qualidade que a sua carteira pode, ou não, auferir e no futuro, quem sabe, até poderão escolher o anestesista e toda a equipa de enfermagem. O que vale a liberdade de poder contar com um serviço nacional de saúde de qualidade, de não termos de nos preocupar com a competência do médico que nos vai atender quando comparada com esta liberdade censitária? Em euros, muito pouco.

No nosso contexto, temos atualmente um Serviço Nacional de Saúde e uma escola pública de qualidade (apesar de todos os seus problemas) e com um peso e capacidade de resposta que possibilitam a minimização das tendências já referidas da oferta privada coexistente. O sistema misto atual permite à direita mascarar a radicalidade do que propõe, apresentando-se como salvadora do SNS e dizendo que apenas pretende alargar a oferta privada, ou seja, fazer uma mera alteração de proporções do sistema existente. A realidade é que este é um caminho para a progressiva perda de capacidade de influenciar e regular a oferta privada, de controlar as tendências perversas da lógica do lucro quando esta se torna dominante. Um caminho que será bem mais difícil de reverter quanto mais avançarmos, reversão que a direita nunca fará. Para a direita a solução será sempre avançar, porque o problema será sempre falta de competição e de mercado.

Quanto ao primeiro motivo apontado por CGP, da necessidade de impostos para financiar os serviços públicos, esta simples e aparentemente pacifica afirmação tem bastante que se lhe diga. Num primeiro plano, este argumento tem de alguma forma implícita a ideia de que é no sector privado que é criada a riqueza que pode depois ser taxada para que então seja possível a provisão de serviços públicos. É esta precedência lógica que leva a que perante uma crise económica se recomende ao Estado que reduza a despesa com os resultados que se viu durante o programa de ajustamento da Troika. É a visão de um Estado parasitário que não contribui para a criação de riqueza, o que não corresponde de todo à verdade como tem sido demonstrado, por exemplo, pelo trabalho da Mariana Mazzucato (ver aqui, aqui ou aqui).

Num segundo plano, é sempre importante lembrar que esta relação de dependência entre impostos e despesa pública plasmada nas contas certas dos tratados europeus é uma opção política que nada tem de inevitável como se tem defendido repetidamente neste blogue (ver aqui, aqui, aqui ou aqui) ou até recentemente pelo insuspeito Adam Tooze. Bastariam ligeiras (em termos técnicos, gigantes em termos políticos) alterações no desenho institucional da zona euro para alterar esta realidade.

A privatização da moeda, limitando o poder monetário dos Estados e esvaziando o dinheiro do seu carácter público e coletivo, sempre foi um dos pilares do projeto reacionário neoliberal do qual a União Europeia, e sobretudo a Zona Euro, é um dos casos de maior sucesso. Neste processo de limitação da atuação do Estado, de limitação da democracia, a instrumentalização da relação entre impostos e despesa pública sempre teve um papel fundamental. Grégoire Chamayou, no seu livro A Sociedade Ingovernável, recorda-nos o que era dito entre portas pelos neoliberais no início dos anos 80 quando “o hino oficial” era a preocupação com o défice e com as finanças públicas:
 

Este, pelo menos, era o hino oficial. Em pequenos grupos, porém, os neoliberais cantarolavam outra música. Em 1982, numa conferência organizada pelo Federal Reserve Bank de Atlanta, Milton Friedman deixou escapar o gato: “É uma boa ideia ter um orçamento equilibrado, mas não à custa de impostos mais elevados. Prefiro ter uma despesa do governo federal de 400 mil milhões de dólares com um défice de 100 mil milhões de dólares do que uma despesa do governo federal de 700 mil milhões de dólares completamente equilibrada”. Ao contrário, portanto, do que sempre nos dizem, o equilíbrio não é um valor em si. O objetivo primordial é a redução do orçamento do Estado. Mas por que insistir tanto, se o objetivo está em outro lugar? “A razão pela qual um orçamento equilibrado é importante”, continua Friedman, “é principalmente por razões políticas e não económicas; para garantir que, se o Congresso vai votar a favor de gastos mais elevados, terá também de votar a favor de impostos mais elevados” – algo que os parlamentares, ligados ao seu capital eleitoral, hesitarão em fazer.

Para quem vê o Estado como um parasita, como uma entidade externa à criação de riqueza que interfere na livre vontade dos indivíduos ou para quem simplesmente quer limitar a capacidade de ação coletiva da sociedade esta é uma opção defensável. Para quem, por outro lado, vê no Estado a expressão duma vontade coletiva e nessa ação coletiva a única forma de controlar as tendências perversas que referimos anteriormente, esta opção é inaceitável. Mas mais inaceitável ainda é que se mascare o que é uma opção política como uma inevitabilidade natural.

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