Se é verdade que me defino hoje, meio a brincar, meio a sério, como outro democrata e patriota, apoiante que sou do PCP, também é verdade que nacionalista de esquerda me assenta bem, servindo pelo menos como provocação que creio necessária num país semicolonizado.
Uma das razões porque prefiro usar nacionalismo, ao invés de patriotismo, é porque aquele tem uma área de estudos consolidada nas ciências sociais e humanas. O livro mais citado aí - Comunidades Imaginadas: Reflexões Sobre a Origem e a Expansão do Nacionalismo, de Benedict Anderson - valoriza este plástico, mas crucial, sentimento, esta potente bateria que alimenta os mais variados projetos políticos, incluindo os de emancipação. Não, o nacionalismo não é aí arbitrário, sendo antes histórica e geograficamente situado, embora com uma imensa capacidade de circulação.
Repito-me sem qualquer originalidade, que isto está consolidado na literatura - nacionalismos houve e há muitos: liberais e antiliberais, progressistas e reacionários, revolucionários e conservadores, das esquerdas e das direitas, de cima e de baixo, fascistas e antifascistas, imperialistas e anti-imperialistas, racistas e antirracistas.
Sem esquecer uma aposta política ululante: nenhuma palavra potente deve ser deixada aos fascistas. Dou sempre o exemplo de Antonio Gramsci, numa sombria cela fascista, a escrevinhar uns cadernos luminosos, com páginas sobre a lógica nacional-popular, tão antifascista quanto revolucionária; ou de Álvaro Cunhal, a escrevinhar sobre as luta de classes na Idade Média deste retângulo ou sobre os até amanhãs que só cantarão alguma coisa que decência tenha se houver organização neste país. Digo escrevinhar, mas só porque os imagino a escrever com letra miúda, dada a escassez de papel, e porque escrever deve ajudar o tempo a passar numa cela e ajudou certamente a marcar os tempos, os deles e os nossos. Escrevinhar tem uma sonoridade de letra miúda, parece-me, esquecei o rigor do dicionário.
O historiador José Neves sempre foi antinacionalista e também sempre foi de uma seriedade à prova de bala. Escreveu de longe a melhor história da tradição comunista em Portugal, valorizando precisamente o esforço coletivo intelectual para reimaginar uma nação alternativa à do fascismo, para forjar um outro nacionalismo, indicando as suas possibilidades políticas, sem deixar de sublinhar as tensões com outros valores. Sem tensão, não há grande pensamento, nem política com p grande. É uma boa leitura de verão ou de inverno, tanto faz, não há épocas para ler bons livros. Já agora, não percam O Tempo das Criadas, também já com uns anos, de Inês Brasão; um outro olhar sobre uma mesma época fascista, ainda no passado sábado convocado por Pedro Garcias.
José Neves escreveu páginas sobre Maria Lamas (e como ela e ele escrevem bem). Ela calcorreou o retângulo de lés a lés para resgatar do olvido as vozes das mulheres do seu país, ato mais recentemente valorizado por Susana Moreira Marques. Esta cultora da não-ficção literária escreveu com tanto amor sobre Lamas e sobre o país delas que até se lhe perdoa não ter referido a militância comunista de Maria. Hoje, precisamos de calcorrear o país as vezes que forem necessárias, de parar e ver, idealmente sem viéses de classe. E esta atitude deve popularizar-se a entre uma certa intelectualidade crescentemente habituada ao vira-latismo.
Se o nacionalismo contemporâneo, com origem nas Américas, é vital, o soberanismo, de matriz francófona, é igualmente imprescindível, embora numa toada mais fria, digamos; correntes frias e correntes quentes têm sempre de se cruzar. Repito o que escrevi, em 2020, sobre esta palavra tão essencial na história da economia política (estou a escrever um livro que parte dela):
O artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa declara que “Portugal é uma República soberana”, sendo que o artigo 2.º especifica que a “República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular”. Não é por acaso que soberania e poder do povo estão imbricados na nossa ordem constitucional democrática.
Implicando um povo num território delimitado por fronteiras, a soberania é um feixe de poderes que permitem que um Estado seja independente, tendo autoridade para deliberar sobre as políticas entendidas como necessárias e para implementá-las. Sem soberania, não há escolha e liberdade coletivas. Trata-se de uma condição necessária para a democracia, para o poder dos de baixo e, por isso, foi e continua a ser uma ideia potencialmente subversiva. A perda de soberania, pelo contrário, é uma aposta reacionária, ameaçando a democracia e os interesses das classes populares.
As elites do poder em Portugal têm permitido que a soberania popular seja posta em causa por processos de integração supranacional, associados à globalização, em geral, e à integração europeia, a sua expressão particularmente intensa no continente, em particular.
De facto, o país abdicou dos instrumentos de política que podem dar densidade material à autoridade política nacional, em particular no campo económico, transferindo-os para entidades europeias sem legitimidade e escrutínio democráticos, mais facilmente capturáveis por poderes capitalistas. Neste processo de transferência, grande parte dos instrumentos de política pura e simplesmente desapareceu.
Sem instrumentos de política comercial, monetária, industrial ou de controlo de capitais, a soberania no campo económico é uma ficção que fragiliza a democracia. Portugal ficou sob tutela de poderes estrangeiros, reduzido – em muito do que importa – a um estatuto semicolonial.
No entanto, a perda de soberania não é inevitável. Esta crise pandémica demonstrou que, em última instância, as questões mais importantes, as de vida e de morte, são decididas pelos Estados, sendo as capacidades coletivas de que estes ainda dispõem decisivas na eficácia da resposta. Dispondo ainda de poderes no campo da saúde – graças a uma das grandes conquistas da soberania popular, o Serviço Nacional de Saúde –, o Estado português pôde responder a uma dimensão crucial da crise, protegendo a saúde pública.
Não é por acaso que se tem falado num momento soberanista, dado que o essencial da ação tem-se concentrado nos Estados. No entanto, se quem manda é quem decide o que é excecional, a verdade é que, em áreas cruciais, quem declarou a suspensão temporária de regras constrangedoras da soberania nacional foi a União Europeia – do campo orçamental às ajudas de Estado.
Para ser eficaz, a ação pública tem de aproveitar este momento e recuperar instrumentos para a escala onde está a Constituição democrática. Este é o grande desafio com que o sujeito coletivo, onde formalmente ainda reside a autoridade máxima, se confronta hoje. Trata-se de uma luta democrática, uma luta dos de baixo contra os de cima. A soberania é e continuará a ser o centro da política.
A verdade verdadinha é esta: quando a UE declarou a suspensão temporária de regras, declarou também, ao mesmo tempo, a sua ineficácia e incapacidade (para não dizer outra coisa...) de responder ao que é crucial na vida das pessoas; com isso, provou a toda a gente que é uma instituição de negociatas, e não de política (como se viu, no meio de pântano, com as próprias vacinas); e se assim foi para uma crise de saúde (vital), também o deve ser para uma crise económica (social).
ResponderEliminarPopular e socialmente, a atual UE não serve para nada, e devemos encontrar-lhe o sentido de "respostas conjuntas", como muitas vezes lhe é imaginado, invertendo a ordem de poderes de soberania, reduzindo à UE, e aumentando aos Estados.