sexta-feira, 5 de abril de 2024

A realidade baralha as contas do BCE


Os dados mais recentes da Zona Euro confirmam a tendência dos últimos tempos: a taxa de inflação continua a diminuir mais rápido do que o que era antecipado pelas principais instituições. Em março, a taxa de inflação fixou-se nos 2,4%, encontrando-se já bastante próxima da meta definida pelo Banco Central Europeu (2%). A taxa tem vindo a diminuir de forma consistente desde que atingiu o pico há cerca de um ano e meio, em outubro de 2022.

Com a descida da taxa de inflação para valores manifestamente baixos, torna-se ainda mais difícil defender a manutenção da política monetária restritiva. No entanto, o BCE continua a resistir à descida das taxas de juro e o principal motivo referido para essa resistência é o "mercado de trabalho forte" - leia-se, o facto da política monetária ainda não ter provocado o aumento do desemprego pretendido.


Depois de um choque inflacionista que não foi provocado pela procura e pelos salários, mas sim pelos constrangimentos da oferta de matérias-primas, a evolução dos últimos meses não é surpreendente. A taxa de inflação tem diminuído sobretudo devido à redução das pressões sobre os preços de matérias-primas essenciais, com destaque para a energia. O que explica a descida da taxa de inflação é o mesmo tipo de fatores que esteve na origem da sua subida inicial: os constrangimentos do lado da oferta, desde a política “zero-covid” na China, que atrasou a reabertura de cadeias de produção de que muitos países dependiam, à invasão russa da Ucrânia, que fez disparar os preços dos bens energéticos nos mercados internacionais.

Esta evolução só baralha as contas de quem assentou a política monetária numa premissa errada: a de que a inflação se devia a excesso de procura agregada e que os bancos centrais deveriam combatê-lo com recurso ao único instrumento de que dispõem - as taxas de juro - de forma a reduzir o investimento e a comprimir a atividade económica e o emprego. Quando só se tem um martelo, todos os problemas parecem pregos.

Vale a pena recordar o que escreveu o economista Joseph Stiglitz no final do ano passado: “É claro que os banqueiros centrais vão dar palmadinhas nas costas. Mas eles tiveram pouco papel na recente desinflação. O aumento das taxas de juro não resolveu o problema que enfrentámos. A desinflação ocorreu apesar das ações dos bancos centrais e não por causa delas.” O insuspeito Paul Krugman, que, à semelhança de Stiglitz, foi premiado com o equivalente ao nobel da Economia, também reconheceu que a inflação foi provocada por constrangimentos da oferta, ao contrário do que a maioria dos economistas defendia, aconselhando "cuidado com os economistas que não admitem que estavam errados".

A verdade é que a evidência empírica divulgada ao longo dos últimos dois anos - incluindo pelo próprio BCE - sugere que o problema não esteve no lado da procura e dos salários. Nesse sentido, a preocupação que o banco central continua a manifestar face aos números do emprego não tem a ver com o risco de uma espiral inflacionista que nunca se materializou. É um reflexo do posicionamento político - e não técnico - que está na base da sua atuação.

2 comentários:

  1. Duas pequenas notas adicionais ao seu excelente texto Vicente Ferreira:
    1 - A toda uma montanha de provas empiricas aqui nos paises que aumentaram as taxas de juro indicando que nao foram a resposta adequada a este episodio inflacionista, acrescente-se o Japao, que constitui uma outra imensa montanha de prova empirica: Taxas de juro negativas durante todo este episodio (so muito recentemente subiram para essenciamente 0%), o que e que se observou por la? Um episodio inflacionista que seguiu uma trajectoria essencialmente igual ao nosso com uma amplitude bem menor.

    2 - Vou alias mais longe.
    O aumento das taxas de juro foram pior que inuteis a lidar com o episodio inflacionario. O aumento das taxas de juro agravou activamente o episodio.

    Repito: o aumento das taxas de juro agravou o episodio inflacionario

    Por um lado, o aumento das taxas de juro contribuiu ZERO para o aumentar ou desbloquear as constricoes de oferta (real causa primaria da inflacao), como e bem de se ver, as tacas de juro nao constrigiram a procura agregada (nao houve recessao, o desemprego nao disparou).
    Por outro lado e perniciosamente, o aumento das taxas de juro aumentou temporariamente os custos com habitacao por diversos canais. Directamente no aumento das prestacoes bancarias a aquisicao de habitacao, por via indirecta no mercado arrendatario quando alguma da procura de casa propria foi transferida para o mercado arrendatario, e, cereja no topo do bolo, as taxas de juro aumentaram a rendibilidade de fundos de investimento imobiliarios (verdadeira razao de classe para que serem instituidas - um verdadeiro subsidio estatal para as instituicoes financeiras) esta rendibilidade acrescida gerou procura acrescida por oportunidades de investimento em imobiliario inflacionando precos.

    Assim sendo, o aumento das taxas de juro acabou a ter um efeito liquido de a)amplificacao do episodio inflacionario e
    b) atraso na resolucao do mesmo.

    Concluo dizendo que ja houve erros grosseiros de politica economica piores que este no registo historico, mas poucos.

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  2. Suprema ironia. Um familiar meu teve de esperar mais de mês e meio por um cartão de débito novo, porque havia falta de plástico.

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