segunda-feira, 17 de abril de 2023

Os liberais dizem que vivemos acima das nossas possibilidades. Não caiam no truque

 

O deputado Carlos Guimarães Pinto (CGP), da Iniciativa Liberal, publicou um artigo de opinião no semanário NOVO no qual atribui a atual inflação às políticas prosseguidas pelos bancos centrais: “voltaram a injetar dinheiro na economia a um ritmo nunca visto […] como forma de garantir que os governos mantinham os rendimentos de quem ficava em casa sem trabalhar".

Recusando o aproveitamento da crise pelas empresas com poder de mercado, CGP ensaia uma nova versão do discurso sobre “viver acima das possibilidades” e diz-nos que a subida dos preços foi provocada pela injeção de dinheiro na economia e por um excesso de consumo. Como a argumentação não sobrevive ao confronto com os factos, vale a pena desconstruí-la. 

Expansão monetária: faltam evidências

A ideia de que a subida dos preços se deve à política monetária expansionista dos bancos centrais não tem muita adesão mesmo entre economistas ortodoxos como CGP. Parte da razão é o facto de a maioria dos bancos centrais ter apostado em políticas expansionistas há mais de uma década sem que isso tenha tido qualquer impacto visível na inflação.

Medidas como o quantitative easing, através das quais os bancos centrais injetaram dinheiro no sistema financeiro, reduzindo as taxas de juro e facilitando a concessão de empréstimos, começaram a ser aplicadas nos EUA em 2008 e seriam replicadas na Europa pouco depois. Curiosamente, CGP sublinha o facto de terem passado “20 anos quase sem inflação” sem referir um outro facto: o de, durante metade desse período, se encontrar em vigor o tipo de políticas monetárias que supostamente provocaria a inflação.

Excesso de poupança e consumo: de quem?

A par da política monetária, CGP culpa também o aumento das poupanças e, consequentemente, do consumo das famílias. O “recorde de poupança” alcançado nos confinamentos por causa da pandemia de covid-19 teria começado a ser gasto à medida que as restrições diminuíam, sem “resposta imediata do lado da produção, ainda ferida pelas perturbações sofridas no período dos confinamentos”, o que se traduziria no aumento generalizado dos preços.

No entanto, é preciso ter em conta que o “recorde de poupança” na pandemia não foi para todos, muito pelo contrário: se apenas 20% das famílias em seis países da Zona Euro (Bélgica, Alemanha, Espanha, França, Itália e Países Baixos) conseguiram poupar durante a pandemia, diz-nos um estudo do Banco Central Europeu (BCE), esse número é ainda mais reduzido no caso de Portugal. Um inquérito do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Banco de Portugal conclui que apenas 11% das famílias teve essa possibilidade.

Ambos os estudos mostram que o aumento da poupança foi sobretudo entre os mais ricos, os menos afetados pela destruição de emprego no início da pandemia e que tinham mais condições para ficar em teletrabalho. Não foi o caso de muitos trabalhadores com rendimentos mais baixos, que perderam empregos precários ou foram empurrados para situações prolongadas de layoff.

O Banco de Portugal explica que "os resultados do Inquérito à Situação Financeira das Famílias de 2020 apontam para que a poupança acumulada durante o período da pandemia tenha estado mais concentrada nas famílias com rendimento elevado que, em geral, têm uma propensão marginal a consumir mais reduzida". Em sentido inverso, 16% das famílias da Zona Euro (sobretudo as mais pobres) e 30% das portuguesas pouparam menos neste período.

Por outro lado, se olharmos para os bens alimentares em Portugal, a subida dos preços foi mais acentuada precisamente no ano em que o consumo real das famílias caiu pela primeira vez desde o período da troika. Embora as famílias tenham gasto mais em alimentação em 2022, os dados sobre o consumo real (isto é, descontando o efeito dos preços) mostram que cortaram neste tipo de despesa. Ou seja, não é o excesso de consumo das pessoas que tem feito subir os preços.

De onde vem, afinal, a inflação?

As origens da inflação têm muito pouco a ver com a política monetária e muito mais com os constrangimentos reais que se verificaram em setores específicos, com destaque para a energia (e, em menor escala, os bens agrícolas). As disrupções provocadas pela pandemia e pela guerra na Ucrânia levaram a que a oferta de matérias-primas essenciais não acompanhasse o aumento expectável da procura que resultou do fim gradual das medidas de confinamento e da reabertura da maioria das atividades económicas.

Neste contexto, os preços tendem a aumentar face ao desajuste entre a procura e a oferta. No entanto, isso acontece com maior intensidade em setores de natureza oligopolista, dominados por um pequeno conjunto de grandes empresas e onde a concorrência é quase nula. É isso que se vê nos setores da energia e da distribuição alimentar: tanto a nível nacional como internacional, um pequeno número de grandes petrolíferas, companhias de eletricidade e cadeias de distribuição dominam os mercados em que operam. Não por acaso, estes setores têm registado enormes ganhos à boleia da subida dos preços.

A investigação de Isabella Weber e Evan Wasner aponta uma explicação para o fenómeno: com os preços a aumentarem de forma transversal em alguns setores, em resultado da inflação em matérias-primas usadas na maioria dos processos produtivos, nenhuma empresa corre o risco de perder quota de mercado ao subir os preços. Neste contexto, as disrupções na oferta de alguns produtos deram a empresas com maior poder de mercado a oportunidade de subir os preços de forma a manter (ou até a aumentar) as margens.

Lucros como incentivo?

Nos últimos meses, as grandes empresas da energia e da distribuição alimentar têm registado lucros recorde. Nos Estados Unidos, as margens de lucro dispararam para o valor mais elevado desde a década de 1950. Na Zona Euro, a parte do rendimento produzido recebida pelo capital atingiu o valor mais alto desde 2007.

Com os salários da maioria dos trabalhadores a subir muito abaixo da inflação, as empresas viram a sua fatia do bolo aumentar. CGP argumenta que “esse aumento temporário de lucros é precisamente o que criará incentivos a que se produza mais, travando futuros aumentos de preços.” Sem surpresa, o argumento liberal é o de que o mercado produzirá o melhor resultado se não houver intervenção dos poderes públicos.

Neste caso, os lucros das energéticas permitiriam o reinvestimento na produção de energia, nomeadamente na renovável, mitigando a pressão sobre os preços. Mas não é isso que tem acontecido: na Europa, apenas 5% dos lucros extraordinários das maiores companhias energéticas estão a ser reinvestidos em energia verde. A prioridade do mercado tem sido a de remunerar acionistas através da distribuição de dividendos e de operações de recompra das próprias ações.

O que devemos fazer?

CGP diz-nos que deixar o mercado atuar é, “claramente, a forma mais apetecível de travar a inflação”. É provável que seja verdade para os mais privilegiados, como os gestores e acionistas de grandes empresas que conseguem proteger os seus rendimentos, mas não o será para a maioria das pessoas que têm perdido poder de compra.

No ano passado, o salário médio em Portugal caiu mais de 5% em termos reais, ficando bastante abaixo da subida dos preços do pão, dos cereais (14%), do leite, dos ovos (14,1%) ou da carne (15,5%), bem como do aumento dos preços registado nos combustíveis (20,7%), na eletricidade (22,2%) e no gás (32,9%).

Enquanto muitos economistas alertam para o risco de espirais inflacionistas provocadas pelos salários, os dados do BCE mostram que os lucros e as margens das empresas estão a aumentar de forma mais acentuada que os salários na maioria dos setores. Na verdade, a história das últimas décadas tem sido esta: com a queda da sindicalização, o fator trabalho recebe uma parte cada vez menor do rendimento total. Tanto nos EUA como na Zona Euro, as taxas de sindicalização caíram a pique nas últimas décadas, o que foi acompanhado pela redução da parte do rendimento produzido recebida pelo trabalho (e pelo aumento da parte recebida pelo capital).


Com a sindicalização em mínimos históricos, os trabalhadores têm cada vez menos poder negocial no conflito distributivo inerente à inflação. A pressão para aumentos salariais é, por isso, muito menor do que na última grande crise inflacionista na década de 1970. Se a isso se juntar a política monetária recessiva do BCE e as medidas de contenção salarial de governos como o português, o resultado é uma transferência de rendimento da base para o topo.

CGP diz que quem refere o papel do aumento dos lucros no atual surto inflacionista "confunde causa e consequência". É provável que algumas empresas (com elevado poder de mercado) se estejam a aproveitar do contexto para expandir as suas margens e que outras estejam apenas a preservá-las perante a subida dos custos de produção. Mas isso não deixa de revelar um problema de fundo: o facto de os custos da crise estarem a ser quase exclusivamente imputados a quem tem menos poder reivindicativo – os trabalhadores.

Uma política económica progressista tem de ter como prioridade o reforço dos salários (e das pensões): os custos do trabalho não podem ser os únicos impedidos de aumentar neste contexto e os aumentos podem ser acomodados pela compressão das margens de lucro e pelo crescimento da produtividade. A prazo, a resposta aos problemas estruturais passa pelo investimento público, nomeadamente no setor da energia – o epicentro da inflação. O planeamento público é indispensável para direcionar os investimentos para a produção energética ambientalmente sustentável e se criarem mecanismos de redistribuição socialmente justa dos ganhos.

Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro.
 

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