Hoje, quase uma década e meia depois, novamente como se de um facto consumado se tratasse, perante a impotência de parlamentos nacionais que, na prática, se limitam a sufragar à posterior as ‘propostas’ de uma Comissão Europeia que ninguém elegeu e que alinha sistemática e despudoramente com os interesses dos países do centro e norte da europa, e a complacência de opiniões públicas convenientemente mantidas à margem dos acontecimentos, os governos nacionais da UE, sub-reptícia e paulatinamente, transferem para os orçamentos públicos o custo das opções especulativas dos seus sectores energéticos.
A volatilidade dos preços da energia impõe necessidades crescentes de colateral às empresas que optaram por a comercializar apostando num preço futuro com recurso a instrumentos financeiros derivados. Na impossibilidade de cumprir a obrigação de apresentar aquele colateral, estas empresas são confrontadas com cenários de falência iminente. Para evitar essas falências, os orçamentos nacionais são chamados a provir. O processo está explicado aqui e aqui.
O mais recentemente desenvolvimento desta tragédia para as finanças públicas está a acontecer em Itália. Soubemos ontem que o país que nos é sistematicamente apresentado como tendo exaurido completamente a sua capacidade orçamental vai ser chamado a resgatar a Enel SpA, uma empresa italiana que opera como multinacional de energia, numa operação que envolve uma linha crédito de 16 mil milhões de euros com garantia pública e que aguarda autorização definitiva do ministro das finanças. O meu palpite é que este, ao contrário do que fez o seu congénere alemão, aguarda autorização da Comissão Europeia.
Obviamente que não é necessário ser-se um especialista em direito comunitário para se saber que estas injeções de dinheiro público em empresas privadas violam flagrantemente as regras de concorrência da UE. A esta luz, que nos venham dizer que a TAP terá de ser reprivatizada porque a Comissão não permitirá novas ajudas públicas é apenas a confissão da aceitação da inteira subordinação externa do nosso país.
Somos assim, novamente, recordados da lição fundamental da economia política: “as leis naturais da economia, que parecem existir em virtude da sua própria eficiência, não são na realidade senão projeções de relações sociais de poder que se apresentam ideologicamente como necessidades técnicas”.
Lição esta ontem novamente ilustrada quando a Comissão tornou pública a sua ‘proposta’ de legalização destas operações de socialização de prejuízos privados numa configuração que alarga o universo dos ativos que as empresas de energia podem apresentar como colateral para incluir as garantias públicas. Uma bonança privada sem quaisquer contrapartidas públicas. Já se imaginou, caro/a leitor/a, a colocar o seu dinheiro, se o tivesse, numa empresa privada sem reclamar uma quota proporcional da sua propriedade?
A bem da verdade, contudo, é necessário dizer-se que nem tudo é mau na proposta da Comissão dado que esta, generosamente, coloca 0,04 biliões de euros que restavam dos fundos de coesão destinados ao período 2014-2020 à disposição dos Estados nacionais para estes fazerem face a um rombo antecipado de 1,5 biliões de euros.
Recordemos agora que não são apenas as empresas de energia em grandes dificuldades de colateral.
No Reino Unido, os fundos de pensões, colocados à beira do colapso pela subida da taxa de juro e consequente deterioração do valor das obrigações que tinham em carteira, obrigaram o Banco de Inglaterra a fazer marcha atrás a todo o vapor, a intervir no mercado e a fazer o contrário do que tinha anunciado, ou seja, a comprar aqueles títulos como forma de lhes sustentar o preço. Veremos o que acontece se aquele banco central regressar à política de subida da taxa de juros e venda simultânea de obrigações, duas opções de política que baixam o valor do colateral. Antecipo dois cenários: acabaram as subidas de taxa de juro ou, sendo estas retomadas, os fundos de pensões implodem.
Na Europa continental, o elo fraco parece ser a Holanda que representa quase 70% dos ativos do fundo de pensões da zona euro; o sistema holandês partilha muitas semelhanças com o Reino Unido, incluindo enormes responsabilidades com pensões de valor fixo no futuro. Com a subida da taxa de juro imposta pelo BCE e consequente descida do valor das obrigações, os fundos holandeses, só este ano, já foram forçados a disponibilizar uns adicionais 82 mil milhões de euros de colateral de garantia, noticia o Financial Times, numa curiosa peça que se espraia a explicar por que razão a situação na Holanda e no Reino Unido são, apesar de tudo, incomparáveis, mas que acaba a citar Verstegen, o presidente da associação holandesa de fundos de pensões quando este afirma que há ‘uma necessidade urgente de melhorar o acesso à liquidez’.
Para concluir, a volatilidade em alta do preço da energia e a subida das taxas de juro, num contexto em que a economia internacional se debate ainda com os efeitos do confinamento ditado pela pandemia, estão a criar o caos no sistema financeiro com repercussões potencialmente devastadoras na economia real ameaçando simultaneamente a sustentabilidade das finanças públicas e privadas e materializando-se no deteriorar geral das condições de vida. O clima ideal para o florescimento de todos os antagonismos estéreis, para o crescimento do fascismo mais ou menos pós qualquer coisa. O mundo ainda está a tempo de desinvestir na guerra, recuar na política de subida das taxas de juro e investir maciçamente na produção de energias alternativas sustentáveis e desmilitarizadas. Como se afirma no mais recente relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, ‘[a]s campainhas estão a soar’.
A esquerda portuguesa não PS, pós geringonça e pós maioria do PS, precisa de se reorganizar e sobretudo de se apresentar com uma cara lavada. Novas coligações (o ideal quase utópico seria BE com PCP), nova imagem, como dizem os espanhóis novas "marcas" (funcionou muito bem com o Podemos). E depois, aproveitar o muito material político que o futuro próximo dará, sobretudo temas econonómicos. A geringonça fez muito para reverter as políticas da troika, mas de entre todos os retrocessos verificados desde o início da crise de 2008, há ainda muito, mas muito por fazer, a que se soma agora as consequências de todas as crises por que temos passado recentemente.
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