De cada vez que ouvimos alguém a assegurar que todos os economistas concordam que a medida x funciona (ou não funciona), é um bom motivo para desconfiarmos. Este tipo de argumentos resulta do enviesamento do debate económico, onde a teoria que domina a disciplina é geralmente apresentada como consensual e as alternativas são ignoradas ou omitidas. Um bom exemplo disso é o debate sobre os controlos de preços.
O corte no fornecimento de combustíveis fósseis da Rússia coloca um problema de escassez aos países da União Europeia, que se encontravam dependentes destas importações para satisfazer as suas necessidades. A disrupção na oferta fez disparar os preços não apenas do petróleo e do gás, mas também das restantes fontes de energia, devido ao modelo de mercado energético baseado nos custos marginalistas (explicado em detalhe aqui), que faz com que o preço do gás determine em larga medida os preços pagos pela eletricidade produzida por outras fontes.
A economia convencional diz-nos que se deve deixar o mercado atuar: a escalada dos preços dá aos consumidores incentivos para reduzir o consumo, adaptando alguns hábitos individuais, e o aumento dos lucros dá aos produtores incentivos para aumentar a sua capacidade de produção e, com isso, a oferta. Em teoria, estes incentivos trariam o mercado de volta ao equilíbrio.
Neste contexto, a oposição aos controlos de preços parte do pressuposto de que a oferta e a procura são suficientemente elásticas para responder aos incentivos do mercado – o que, traduzido do economês, significaria que as pessoas compram mais ou menos quantidades e as empresas produzem mais ou menos quantidades apenas em função do preço. Só que não é esse o caso da inflação atual. A energia é um bem essencial, do qual é difícil abdicar, pelo que a procura é rígida e varia pouco em função do preço. Na verdade, em países como Portugal, com níveis elevados de pobreza energética e fraco isolamento térmico das casas, deixar o mercado atuar é uma terapia de choque com enormes custos para os mais vulneráveis.
Numa situação em que a oferta de bens essenciais está constrangida, aquilo a que assistimos é a um aumento das desigualdades entre a maioria das pessoas, com dificuldades crescentes para pagar as contas da luz ou do gás, e as empresas que registam lucros astronómicos, em boa medida decorrentes da concentração do poder de mercado num pequeno número de gigantes energéticas. Um estudo publicado recentemente por economistas do FMI conclui que o aumento do custo de vida é muito superior para os 20% mais pobres do que para os 20% mais ricos, precisamente porque os primeiros gastam uma proporção maior do seu salário ou pensão nos bens em que a inflação se tem concentrado – energia e alimentos.
É aqui que entram as políticas de preços. Ao longo da história, o controlo de preços foi utilizado por vários países, implementados de forma diferente e com resultados muito diversos. Talvez a experiência mais interessante seja a que se deu no país mais insuspeito: os Estados Unidos. Nos EUA, a regulação pública dos preços esteve em vigor durante e após a 2ª Guerra Mundial através da Agência de Administração de Preços criada por Roosevelt em 1941. O Estado passou a regular os preços máximos de alguns bens essenciais e as quantidades consumidas (algo que hoje se discute no que diz respeito à energia). E os resultados foram positivos não apenas na contenção dos preços, mas também na distribuição dos recursos, melhorando o acesso das pessoas com menores rendimentos a bens alimentares, como explica a economista alemã Isabella Weber.
Nos últimos dias, dois dos mais destacados economistas à escala internacional – Paul Krugman, laureado com o equivalente ao Nobel da Economia, e Martin Wolf, editor do Financial Times – reconheceram (aqui e aqui) a necessidade de impor controlos de preços e limites ao consumo. Krugman, que ainda há pouco tempo fora bastante hostil em relação a Weber quando esta lançou o debate sobre os controlos estratégicos de preços, parece ter invertido a sua posição, reconhecendo agora que “proteger as famílias e preservar um sentimento de justiça têm que ter prioridade sobre as ideias dos manuais acerca da eficiência do mercado”.
A regulação dos preços de bens essenciais é uma medida que pode ser equacionada para estancar práticas especulativas e lucros extraordinários. Em Portugal, o governo chegou a limitar a margem de lucro na venda de máscaras e testes rápidos de COVID-19 no início do confinamento. Este tipo de medidas temporárias tem um papel importante e permite “comprar tempo” enquanto se resolvem os problemas estruturais da oferta. A médio prazo, a resposta progressista passa pelo investimento público, tanto para aumentar a capacidade de produção de energias renováveis, como para reduzir o consumo de energia de forma socialmente justa, através do reforço dos transportes públicos (para substituir os carros) e da melhoria da eficiência energética (para reduzir o recurso ao aquecimento). Se queremos evitar problemas persistentes de inflação, é preciso atuar na raiz do problema.
Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro.
Muito bem!
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