Para quem não viu o debate, conte-se o episódio.
António Costa puxou do projecto do PSD de revisão da Constituição Portuguesa e referiu que se visava rever o seu artigo 64º. Esse é o artigo em que se estipula que "o direito à protecção da saúde é realizado a) através de um serviço nacional de saúde [e não de um sistema...] univeral e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito".
Ora, o PSD quer retirar a expressão "tendencialmente gratuito" - algo que é uma velha ideia da direita em Portugal - e substituí-la por algo como o "acesso aos serviços de saude do SNS não pode, em caso algum, ser recusado por insuficiência de meio económicos". Para Costa, esta mudança é clara. Ao retirar a expressão "tendencialmente gratuito", retira-se o travão que impede a introdução de uma lógica em que os pacientes com recursos, cidadãos da dita classe média, passarão a pagar os cuidados de saúde.
Rui Rio reagiu e disse que era uma formulação que queria dizer o mesmo, mas que era "ideologicamente" mais correcta:
O SNS "deve ser tendencialmente gratuito, mas nós temos de distinguir entre aqueles que podem e aquele que não podem. E por isso nós dizemos: 'por insuficiência económica ninguém em Portugal pode deixar de ser tratado e pode deixar de ser tratado com qualidade'. A diferença - dir-me-á - não é muito grande. Não é muito grande, mas há aqui uma nuance que nós entendemos ideologicamente como a correcta".Costa respondeu:
O que me está a dizer é que as pessoas da classe média vão passar a ser tratadas de uma forma diferente no SNS. E como nós sabemos, sempre que se abre essa porta, para ter um serviço público para remediados e serviços privados para quem tem melhores recursos, é ter serviços mínimos para os remediados e serviço bom para quem tem posses (...) a classe média deixa de beneficiar de um serviço tendencialmente gratuito e passa a pagar. É a isso que os senhores querem abrir a porta".Enquanto Costa dizia isto, Rio disse uma meia dúzia de vezes "não, não" ou "não é verdade". E contra-argumentou, ao ataque, puxando do tal argumento que é bastante enviesado. Disse ele:
Os cidadãos da dita classe média ... "pagam hoje pela fraca resposta que dá o SNS. Como sabe, há hoje 4 milhões de portugueses que têm seguros dse saúde (...) Nós sabemos os resultados do SNS. E se há mais de 4 milhões de portugueses que têm seguros de saúde ou da ADSE é justamente porque o SNS não dá a resposta e não dá o acesso que as pessoas precisam. (...) Isto não tem nada a ver com a qualidade dos profissionais: tem a ver com um sistema que não está capaz de responder. As pessoas não vão pagar os seus impostos e depois não vão pagar também um seguro. Se as pessoas pagam os seus impostos e depois pagam um seguro ou então paga a empresa pela pessoa - e é uma regalia social que a pessoa negoceia quando vai para o emprego - não precisava de fazer nada disso. É porque o SNS não responde como deve ser.Ora bem:
Primeiro. Costa devia ter dito, também, que ao abrir a porta ao aumento dos custos dos serviços de saúde públicos, o Estado está tornar os serviços privados mais atractivos. Ou seja, a proposta visa - ilegal à luz da Lei de Bases e corroendo o preceito constitucional - promover o sector privado. Não é novidade: o Governo Cavaco Silva fê-lo e o Governo Passos Coelho - era Paulo Macedo ministro da Saúde - fez o mesmo com o aumento das taxas moderadoras.
Segundo. Não há 4 milhões de cidadãos com seguros de saúde.
Fonte: APS |
Fonte: ADSE, Relatório de actividades, 2019 |
Terceiro. Se há assalariados que têm seguro de grupo das suas empresas, isso não se trata na maioria dos casos de opções pessoais, negociadas individualmente. É uma forma de regalia social - com disse Rui Rio - que, por acaso, até foi há bem pouco tempo, apoiada fiscalmente pelo Estado (ver aqui com números até 2017...) e que - pode-se até argumentar - usada muitas vezes para não fazer subir os salários e a massa salarial das empresas. Pior: trata-se de um subsídio que pode ser cortado a qualquer momento e de forma unilateral pelo patronato, ao contrário dos salários.
Quarto, e finalmente, não sabemos por que se agita tanto Rui Rio com a acusação de Costa. O mesmo programa eleitoral do PSD refere que é vontade do PSD "a instituição de um Sistema Nacional de Saúde", tal como se referia na Lei de Bases da Saúde aprovada no mandato de Cavaco Silva e que serviu para colocar o Estado a incentivar o sistema privado e social. Claro que se refere igualmente que esse "sistema" será "compreensivo e complementar", assente "em três pilares - público, privado e social ". Mas sustenta-se que se deverá passar de "um SNS fechado, em que o Estado desempenha todos os papéis – maior produtor, empregador, financiador e fiscalizador – para um Sistema em que o Estado continua a ser o elemento central e maioritário, mas cuja função primeira é o cumprimento da Constituição, ou seja, garantir o acesso de todos os portugueses aos cuidados de saúde, de forma justa e equitativa e tendencialmente gratuita".
Ora, não se entende: para já, a complementaridade já está prevista na actual Lei de Bases. E se não foi mais aplicada, possivelmente deveu-se a obstrução orçamental. Por outro, esta promessa só faz sentido na medida em que assenta numa contradição potencial.
Caso se invista no SNS, os privados e o sector social tenderão a ser preteridos e passarão a ser financiados apenas por quem tenha seguros de saúde (ou ADSE!), ainda longe da maioria da população que não tem 400 euros para pagar anualmente em seguros. E lá viria então a dita ideologia lembrar que o Estado não pode concorrer com os privados. Caso não se invista no SNS, o Estado deixa de ter o papel fundamental e passará a pagar sobretudo os serviços cobrados pelo "Sistema" que passará a ser privado.
Como se vê, algo não está a ser dito por Rui Rio.
"em Setembro de 2021, havia 2.818.151 pessoas seguras"
ResponderEliminar"Por outro lado, a ADSE tem na melhor das hipóteses 1.199.027 beneficiários"
Total de pessoas seguras ou beneficiários: cerca de 4.000.000.
Caro anónimo,
ResponderEliminarÉ verdade, mas não por opção própria.
Apenas somando as apólices de grupo das empresas - que, segundo a APS, correspondem a 1,7 milhões de pessoas (75 mil apólices x 22,5 pessoas por apólice) - se pode dizer que haja 4 milhões de pessoas cobertas por seguros de saúde. Mas nunca se poderá dizer que 4 milhões desconfiam do SNS e subscreveram seguros ou os "negociaram" com as empresas porque os serviços médicos do SNS são insatisfatórios.
É um truque com um número manipulado.
O comentário de Rio é profundamente falacioso porque ter seguro de saúde não implica que se desconfie do SNS. Eu tenho ADSE e recorro igualmente ao SNS e só posso elogiar o esforço dos seus profissionais.
ResponderEliminarFaço uso da medicina privada sobretudo por uma questão de conforto e pago por isso (poderia ter optado por não me inscrever na ADSE).
O SNS tem seguramente muitas falhas mas o facto de existirem potencialmente 4 milhões de Portugueses que recorrem à medicina privada não representa per si um labéu sobre ele...
Aliás, não foi a única vez no debate que Rio recorreu à demagogia mais rasca. Entalou Costa com os preços dos voos da TAP, quando a prática é pelos vistos corrente em todas as companhias aéreas, um voo directo é sempre mais caro do que um voo com escala, um contrasenso ambiental.
Rio revela-se um social democrata assaz peculiar. Defende que, como a TAP tem que operar segundo as regras de mercado e não pode consequentemente oferecer mais serviços em Faro e no Porto e agora, oferecer voos mais baratos a partir de Portugal, deve ser privatizada.
Presume-se que o social-democrata Rui Rio não terá problemas que essa TAP privada continue a não oferecer todos esses serviços, ele que acredita no Mercado Livre.
Há seguramente razões válidas para defender a privatização total da TAP, mas os queixumes de Rio são irrelevantes para essa defesa, porque semi-pública (como quer o Governo) ou privada, a TAP tem sempre que operar segundo as regras de mercado, algo que Rio seguramente não contesta...
Qualquer dia Rio vai dizer que como o mesmo se aplica à CGD, mais vale privatizá-la...
"Não há 4 milhões de cidadãos com seguros de saúde."
ResponderEliminarFalso. Há 4 milhões de cidadãos cobertos por seguros de saúde.
"a TAP tem sempre que operar segundo as regras de mercado"
ResponderEliminarMesmo se isso algum dia significar deixar de voar a partir do Porto, por exemplo? Ou deixar de ter um hub em Lisboa?
Para mim a questão mais importante do argumentário seguros vs. SNS é que este não tem plafonds... Está malta devia ler e informar-se do que acontece no Éden do liberalismo e da livre concorrência, é já agora do pior rácio serviços prestados/custo... Há quem tenha de vender a casa para pagar tratamentos... É esta a civilização que pretendem...
ResponderEliminarTanto António Costa como Rui Rio atentam contra o Serviço Nacional de Saúde, um por acção e outro por inacção. Com António Costa o desmantelamento é gradual com Rui Rio a barbárie é já amanhã, em 2022 andarmos a discutir se devemos acabar com o Serviço Nacional de Saúde é algo muito digno sem dúvida, um dia destes estamos a discutir de forma declarada se a democracia é um sistema que faz sentido.
ResponderEliminarPara quem diz que "há 4 milhões de cidadãos cobertos por seguros de saúde", a verdade é que há mais de 10 milhões de cidadãos cobertos pelo Serviço Nacional de Saúde. E esse valor não inclui os emigrantes que terão sempre acesso ao mesmo sempre que venham cá, nem que seja de férias. E isso inclui os liberais, chegófilos e toda essa gentalha que é contra o SNS e nunca o usa, não vá correr o risco de estar na mesma sala de espera que um pobre.
ResponderEliminarDas raras vezes que usei o privado (com um daqueles seguros da treta oferecidos pela empresa), escolhi uma clínica dentária (o que mais falta no Serviço Nacional de Saúde mas disso nem o centro nem a direita falam) que supostamente era coberto pelo seguro. Sabem que percentagem da fatura paguei? 100%. O estabelecimento riu-se, a seguradora riu-se, o patronato riu-se, só eu é que não me ri. Saúde privada nunca mais.