terça-feira, 16 de novembro de 2021

Simplicidade e ignorância fabricada: “A forma como se cria dinheiro é muito simples”

Deve ser declarado em primeiro lugar que, embora a maioria dos economistas esteja agora de acordo que o pleno emprego pode ser alcançado através de despesa pública, tal não era de modo algum o caso, mesmo num passado recente. Entre os opositores desta doutrina havia (e ainda há) proeminentes "peritos económicos" estreitamente ligados à banca e à indústria. Isto sugere que existe um contexto político na oposição à doutrina do pleno emprego, ainda que os argumentos avançados sejam económicos. Isto não quer dizer que as pessoas que os promovem não acreditem na sua economia, por muito pobre que esta seja. Mas a ignorância obstinada é geralmente uma manifestação de motivações políticas subjacentes.

O texto acima foi escrito por Michal Kalecki em 1943. Hoje em dia existe mesmo todo um campo científico – a Agnotologia - que estuda a produção deliberada de ignorância. O que, no que a finanças públicas diz respeito, bem se justifica. Compreender o sucesso do investimento neoliberal na produção e disseminação de um gigantesco aparato de propaganda que submete um Estado monetariamente soberano aos mercados que dele inteiramente dependem é vital para libertar a democracia dos interesses ocultos que a colocam ao serviço dos poucos contra o interesse dos muitos.

É neste quadro, para combater o mantra do ‘não há dinheiro’ para financiar a despesa pública, que é necessário repetir - repetir sempre - o contra-mantra: Um Estado monetariamente soberano não endividado em moeda estrangeira não enfrenta constrangimentos financeiros e pode sempre adquirir o que estiver à venda na moeda que emite. Pela simples e prosaica razão que, controlando o banco emissor, emite o que decidir emitir, no que nunca depende dos mercados para o fazer.

Corolário que os banqueiros deste mundo preferem que ignoremos: para um Estado monetariamente soberano, pagar juros pelo dinheiro que ele próprio cria é uma opção e não uma necessidade.

E como é criado este dinheiro? “É muito simples”, como explica Peter Praet, membro da Direção Executiva do BCE.

[clique na imagem para aceder ao vídeo; abaixo, a minha tradução]

Praets: A forma como se cria dinheiro é muito simples. Nós criamos dinheiro eletronicamente, se é que posso dizer. Uhm, nós creditamos contas de - bem, isso, as pessoas não vão compreender outra vez. Eu... é uma metáfora, sabem, por isso, quero dizer - isto não está a gravar, certo? - podia dizer que imprimo notas, mas é uma metáfora, sabem. Não é a forma como o fazemos porque passa através do sistema bancário. Por isso, sim...

Colega: Mas não se poderia dizer...

Praets: Como dirias isso? Porque...

Colega: Que emprestamos dinheiro...

Praets: Não, mas emprestar, emprestar, não, não, não é, bem, não, nós criamos dinheiro, não é emprestar dinheiro, nós criamos dinheiro!

Colega: Dá-me um segundo - nós emprestamos a bancos comerciais e...

Praets: Não, não é verdade...

Colega: E o momento deste empréstimo cria o dinheiro porque...

Praets: Não, não, eu sei, não, não, eu percebo o que queres dizer, mas nem sequer é verdade o que dizes. Quando tu... deixa-me dar o... nós não estamos a... essa é a maneira clássica. Ninguém vai entender o que dizes. Mas, normalmente, é... eu apenas... pensa sobre a situação: Eu imprimo notas bancárias, apenas me sento no meu escritório e imprimo notas e, com estas notas bancárias, compro-te algo. Dou-te estas notas bancárias e tu dás-me uma obrigação que já tenhas comprado antes. Tu tens uma schatzbrief [obrigação do tesouro], sabes, tens uma obrigação do tesouro, sabes, no teu investimento e depois envias-ma e eu dou-te dinheiro que eu produzi. Mas nós fazemos isso eletronicamente.

Simples, não é? Uma e outra vez confirmado: "Não é dinheiro dos impostos. Nós [a Reserva Federal dos EUA], simplesmente usamos o computador".

E, se um país abdicar desta possibilidade de criar o dinheiro que usa, quais são as consequências?

Como o economista britânico Wynne Godley escreveu, “o poder de emitir [o próprio] dinheiro, de fazer saques no [próprio] banco central, é a principal característica que define a independência nacional. Se um país desistir ou perder este poder, adquire o estatuto de uma autoridade local ou colónia.”

Tão simples que a mente bloqueia.

4 comentários:

  1. É preciso ser muito ingénuo para acreditar que Jean-Claude Trichet não sabia o que estava a fazer quando não financiou os Estados... deixou os Estados à mercê dos "mercados", da máfia Goldman Sachs, agências de rating e outros colossais parasitas, criou uma crise artificial porque queria e podia.

    Os tribunais não deviam existir apenas para condenar quem não faz parte da "elite"...
    Que o dia em que a população em geral entenda o muito mal que os "líderes" lhe impuseram esteja próximo!

    E quando é que os dirigentes do Bloco de Esquerda definem a posição do partido em relação à integração europeísta?
    É só para depois das eleições?
    Se sim, é para não assustar uma parte do eleitorado do BE que se julga cosmopolita e que se imagina no centro, os dirigentes do BE devem saber que se assustam esta parte do seu eleitorado este muda as suas intenções de voto para o Partido "Socialista" rapidamente...

    Tanto o BE como PCP deviam insistir sobre este crucial assunto da soberania monetária dia após dia há anos!
    Passaram uma rasteira na maioria da população portuguesa, esta foi aldrabada e não esperem que seja o Partido "Socialista" que vai agora contar a verdade sobre a UE e Euro, sabem perfeitamente que não vai acontecer!
    Espero bem que o BE e PCP insistam na questão da soberania monetária até às eleições.

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  2. Falta neste texto falar dos efeitos desta emissão de moeda. Como o bce tem emitido moeda numa forma de easing a bancos para depois introduzir gradualmente essa moeda na economia não temos visto tanta inflação nos bens comuns. Mas esta emissão o que leva é ao empobrecimento da maioria da população e uma transferência de riqueza para quem tem bens como casas, ações etc. basta olhar para o cavalgar dos preços das casas em Portugal nos últimos 5 anos. O a impressão e debasement monetário são úteis mas perigosos e na maioria das vezes levam ao empobrecimento da maioria e enriquecimento dos mais ricos. Basta olhar para a Venezuelana…

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  3. Ora aí está uma forma sofisticada mas clara de explicar porque Portugal é apenas um dos bairro da UE. E um dos mais pobres (e falido) de essa "União Europeia". Enfim, o novel Reich em que M. Soares meteu os incautos portuguêses, com as suas, dele, melhores intenções, óbviamente.
    Entretanto constata-se que a coisa não vai ficar por aqui....

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  4. Um economista francês chamado Gäel Giraud explica isso muito bem. Para quem entende francês, por exemplo aqui a partir de 21:40

    https://www.youtube.com/watch?v=2oFARgqG0NA

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