sexta-feira, 29 de outubro de 2021

"O Orçamento mais à esquerda?" Não exatamente


Na linha da desconstrução das ideias erradas acerca da proposta de OE 2022 que tem sido feita neste blog (aqui, aqui ou aqui), vale a pena olhar para os planos do Governo para o investimento público. Embora se repita à exaustão que este seria o "orçamento mais à esquerda" e o "maior impulso macroeconómico das últimas décadas", a verdade é que, de acordo com os números do Ministério das Finanças, continuaria a deixar o país na cauda da Europa no que diz respeito ao investimento público. Aliás, consegue essa proeza mesmo num ano em que o país vai começar a executar os fundos europeus do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

É uma tendência que já se verificava antes da pandemia. Nos anos que antecederam a crise, o investimento público foi consecutivamente sacrificado em nome da redução do défice, ao ponto de o que se gastava em cada ano nem sequer chegar para compensar as perdas resultantes da depreciação dos ativos públicos (de acordo com os dados da AMECO).

Com a pandemia, o discurso sobre a política económica alterou-se e o reforço dos serviços públicos e o investimento na transição energética das economias passou a fazer parte do léxico da maioria dos governos. Mas a verdade é que pouco mudou em Portugal. Este ano, a previsão de execução do Governo coloca-nos como o 2º país com pior nível de investimento público na UE, apenas acima de Espanha e bem abaixo da Grécia, que tem uma dívida pública superior à nossa.

Mesmo como todo o dinheiro do PRR (que pode continuar a ser executado sem a aprovação do OE), os planos para 2022 não mudariam substancialmente a situação, sobretudo se tivermos em conta o historial deste Governo em promessas orçamentais que, todos os anos, ficam na gaveta e não são executadas. Esta estratégia erra duplamente: no curto prazo, a restrição da despesa do Estado acentua os efeitos da crise em vez de os combater; no longo prazo, o desinvestimento piora os serviços públicos sem quaisquer benefícios para as contas do Estado. O SNS é um bom exemplo: 41% do dinheiro público destinado à Saúde é gasto com privados, incluindo na contratação de serviços que podiam ser prestados diretamente pelo serviço público se o Estado adquirisse os equipamentos necessários, o que ficaria mais barato a médio prazo.

A resposta à crise que atravessamos não se faz com a mesma estratégia do passado, sobretudo sem regras europeias (que estão suspensas) e com o BCE a garantir taxas de juro baixas. A obsessão com o défice é um erro que se paga caro, como a esquerda percebeu há muito. Cabe ao Governo compreender as razões do seu falhanço e inverter o rumo. Há tempo para apresentar uma nova proposta de Orçamento que responda aos problemas estruturais do país. Só é preciso que haja vontade.

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