sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Gastar? Não Gastar? Gastar demasiado? Notas sobre o debate macroeconómico


Como as “bolhas” das redes sociais não são muito dadas a textos (um pouco mais) longos e os blogues estão, hoje, sobretudo dependentes do tráfego das primeiras, decidi experimentar com a nova moda das newsletters no Substack, recuperando o velhinho email, para escrever sobre Economia Política e Desenvolvimento. Sendo gratuita, a periodicidade da newsletter será “quando tiver tempo e alguma coisa para dizer”. Se tiverem paciência e não se importarem em receber um email de vez em quando, subscrevam aqui: https://nunoteles.substack.com/

Tudo será replicado, no entanto, aqui no Ladrões. Fiquem com o primeiro artigo.

Ziguezagues

É certo que a pandemia mudou muita coisa nas nossas vidas, mas as viragens nas posições de política económica parecem dar-se a uma velocidade difícil de acompanhar. Ainda antes da crise pandémica, várias foram as vozes, da imprensa económica internacional às instituições financeiras internacionais, que se manifestaram sobre a necessidade de uma política orçamental mais expansionista. A crise pandémica naturalmente veio reforçar estas recomendações. Começámos então a ouvir falar de uma mudança de paradigma na teoria e política macroeconómica. Tais recomendações são festejadas pela esquerda, aparentemente vingada na sua oposição à austeridade e nas suas propostas de aumento das despesas públicas. Entretanto, dois dos defensores de uma política orçamental mais activista, os eminentes economistas neo-keynesianos, Larry Summers e Olivier Blanchard, vêm agora alertar para os exagerados gastos anunciados por Biden nos EUA. Voltaram atrás?

Larry Summers é uma eminência parda da elite norte-americana, com um longo currículo nos círculos de poder, que, aliás, gosta de alardear. Esteve no centro das reformas neoliberais da presidência Clinton – a lei Glass-Steagall, oriunda do New Deal, de regulação bancária foi repelida durante o seu mandato enquanto ministro das finanças norte-americano – e é apontado como um dos responsáveis pela timidez do plano de recuperação de Obama em 2009. Alguns anos mais tarde, voltou à ribalta nos debates económicos, recuperando o conceito de “estagnação secular” e consequente necessidade de políticas de estímulo orçamental em larga escala. Face à proposta da Administração Biden de um programa orçamental que anda em torno de 10% do PIB norte-americano (mais do que toda a economia canadiana), Summers veria finalmente as suas propostas colocadas em prática. Mas, não. Com um artigo no Washington Post, Summers avisa que este pacote é demasiado ambicioso e terá, provavelmente, como efeito aumentar a inflação e as taxas de juro.

Outro economista neo-keynesiano, Olivier Blanchard, um dos primeiros defensores do programa de “desvalorização interna” em Portugal e economista-chefe do FMI nos anos das suas intervenções no Sul da Europa, também teve uma mudança de estado de alma em relação à austeridade. Face ao ritmo medíocre de crescimento económico das economias mais desenvolvidas, o economista fez um pequeno mea culpa em relação à política imposta pelo FMI e passou a defender que, dada as baixas taxas de juro praticadas um pouco por todo o mundo, se exigia aos Estados que gastassem mais, já que não existiam riscos de insustentabilidade da dívida pública. Em Dezembro passado, anunciava mesmo a mudança de paradigma macroeconómico. Agora, vem secundar a opinião de Summers num “fio” do Twitter, alertando para o provável sobreaquecimento da economia e aumento da inflação que o plano de Biden provocará.

Um consenso que dura.

Este aparente ziguezaguear político pode ser entendido como oportunismo ou moderação política. No entanto, sem desvalorizar os eventuais elementos de intriga política de bastidores, importa sobretudo mostrar como estes economistas estão, e sempre estiveram, longe de qualquer ruptura teórica na forma como entendem a economia. É sobretudo importante para quem à esquerda embarca conjuncturalmente com estes compagnons de route, fazendo alegremente uso do seu arcabouço teórico, erradamente entendido como keynesiano, para depois ficar sozinho quando os ventos mudam.

Quer Summers, quer Blanchard, inscrevem-se naquilo que convencionalmente se chama o Novo Consenso Macroeconómico (NCM), prevalecente na teoria económica desde os anos noventa. Resumidamente, o NCM nasceu da síntese dos Novos Clássicos dos anos setenta (sem qualquer relação como a Economia Política Clássica) com os Novos Keynesianos do pós-guerra. Os primeiros apoiam os seus modelos macro em fundamentos microeconómicos de mercados perfeitos com agentes optimizadores e expectativas racionais, mostrando supostamente a irrelevância, ou mesmo a perversidade, da política orçamental ou monetária anti-cíclica. Os segundos integram os fundamentos micro e expectativas racionais, mas apontam para imperfeições no funcionamento do mercado, podendo estas ser causadas por informação assimétrica, concorrência monopolista, salários “de eficiência”, que não permitem imediatos preços de equilíbrio. Ou seja, como os mercados não se equilibram automaticamente, o produto pode permanecer abaixo do seu potencial, originando desemprego dito involuntário. A intervenção pública correctora de eventuais desequilíbrios é, assim, justificada, ainda que no curto-prazo e com espaço diminuto, limitado por regras de comportamento orçamental e monetário, como a independência do banco central, ancorando as expectativas. No longo prazo, o que determinaria o crescimento económico é a quantidade de trabalho e capital e o progresso tecnológico, variáveis do lado da oferta e nas quais o Estado não teria grande influência.

Neste quadro analítico, existe, pois, a possibilidade do Estado gastar mais em tempos de crise, conquanto se deva preocupar sobretudo com reformas que flexibilizam os mercados, a começar pelo trabalho, para um melhor ajustamento. Este é um espectro político que permite diversidade de opiniões, mas que converge, por exemplo, no diagnóstico da crise de 2011-12, em Portugal, enquanto resultado de um irresponsável aumento da despesa pública e de aumento desmedido dos custos de trabalho.

Mais, este quadro permite mesmo identificar problemas que vão para lá do justificável activismo de curto-prazo, acima enunciado. Num artigo de 1986, Blanchard e Summers (quem mais), enunciavam a possibilidade de “histerese” do produto aquando de uma crise. Emprestado da física, o conceito daria conta dos efeitos negativos de uma crise no produto potencial, sobretudo do lado do trabalho (perda de competências, papel dos sindicatos na suposta desconsideração dos desempregados, etc), obrigando uma determinada economia a funcionar num nível de desemprego estruturalmente mais elevado. Assim, a recuperação parcial de Summers do conceito de “estagnação secular” não é mais do que uma preocupação em relação à recuperação económica deficiente dos EUA abaixo do seu produto potencial, recalculado em baixa para cada ano que passa. A histerese, aliada a um suposto excesso de poupança em relação ao investimento (responsável pelas taxas de juro perto do zero), abre a possibilidade de um aumento do investimento público que travasse esta contínua redução do produto potencial (sempre aliado a reformas liberalizantes, nomeadamente no que diz respeito ao comércio externo).

Problemas potenciais

Se o NCM, em algumas das suas variante, abre o campo ao aumento da despesa e, na sua versão estagnacionista pós-crise, autoriza mesmo um aumento do investimento público, a que se deve a reacção cautelosa em relação à despesa anunciada nos EUA? A resposta está num conceito já várias vezes aqui repetido, o produto potencial, e seu corolário, o hiato do produto, ou seja a diferença entre o produto real e o potencial.

O produto potencial é uma medida bastante intuitiva: qual o produto se os factores de produção estiverem a ser plenamente utilizados. No entanto, é uma medida difícil de calcular. Existem algumas aproximações que podem ajudar, como a utilização da capacidade instalada, resultado de inquéritos às empresas, mas normalmente esta medida é o resultado de modelização. Ora, a forma como o produto potencial é hoje estimado tem a sua origem nos modelos do NCM. Incorpora dois dos elementos teóricos: o NAWRU (Non-Accelerating Wage Rate of Unemployment), ou seja a ideia de uma taxa “natural” de desemprego da economia, abaixo da qual teríamos um aumento dos salários e da inflação, sempre longe do que é o pleno emprego; a Produtividade Total dos Factores, medida de produtividade de difícil estimação, para não dizer teoricamente impossível (fica para outro texto), a partir da qual se estima o stock de capital de uma economia. Assume-se que existe um nível de produto de equilíbrio, não coincidente com o pleno emprego, acima do qual teremos como principal resultado inflação.

Esta medida é influente na política económica. Os famosos défices orçamentais estruturais, a que os Estados da Zona Euro estão obrigados, são calculados tendo em conta a estimação do produto potencial e hiato de produto para cada país. Fruto de pontos de partida teóricos inverosímeis e estimações bastante discricionárias, os resultados empíricos são fracos e tendencialmente pró-cíclicos. Países com recessões profundas vêem o seu produto potencial diminuir (e a taxa de desemprego “natural” aumentar), sendo qualquer recuperação económica convergente com o produto potencial, existindo supostamente nesse caso pouco espaço para a política orçamental. Assim, segundo a Comissão Europeia e o FMI, em 2019, Portugal estaria com um PIB acima do seu potencial e a Alemanha e a Espanha teriam hiatos de produto parecidos, embora com trajectórias radicalmente diferentes.

Chegados aqui, conseguimos entender melhor os avisos recentes de Blanchard e Summers. Tendo em conta que o programa de aumento de gastos de Biden é superior ao hiato do produto, calculado pelo Congresso norte-americano (metodologicamente parecido com a UE e usando o arcabouço do NCM), estes economistas naturalmente avisam para o eventual exagero, mostrando, mais uma vez, uma notável coerência teórica. Mesmo quem, dentro do mesmo paradigma teórico, contesta esta reacção, como Paul Krugman, fá-lo, respeitando o conceito de produto potencial, calculado com as mesmas premissas, embora com estimativas diferentes, e divergindo sobretudo naquilo que considera ser o real tamanho do estímulo orçamental.

E então?

Até aqui esta parece uma discussão simplificada, mas chata, com implicações políticas marginais. Por um lado, dada a dimensão da crise pandémica para as economias periféricas, problemas de “ultrapassagem” do produto potencial não se colocarão durante algum tempo. Por outro lado, um pacote orçamental do tamanho do americano nunca irá acontecer na Europa. Posições como as de Blanchard, Summers ou Krugman podem, portanto, ser convocadas por quem, à esquerda, defende maiores gastos públicos. Todavia, este foi um erro já cometido antes. Quem não se lembra de quando Krugman clamava por mais gastos públicos nos EUA, mas, chegado a Portugal, defendeu a necessidade de austeridade? Hoje, as opiniões de Blanchard e Summers podem ser já indicar uma reversão de políticas face a um aumento conjunctural da inflação.

Penso que existem dois planos de intervenção distintos, mas articulados. Por um lado, os economistas políticos devem ser claros nas diferentes abordagens teóricas que adoptam ou recusam. Cultivar alianças conjuncturais mistifica diferenças teóricas e mistifica autores e escolas de pensamento – Keynes é aqui exemplo máximo, já que os Novos Keynesianos pouco ou nada têm que ver com aquilo que foi escrito pelo economista britânico sobre incerteza, convenções, economia monetária ou gastos públicos. É necessário abandonar a posição teórica da possibilidade de despesa pública públicos como mero bom-senso anti-cíclico, que assume implicitamente os constrangimentos orçamentais nacionais ou europeus. Isso implica a recuperação o verdadeiro desequilíbrio fundamental de qualquer economia, o desemprego. Implica também a recusa de uma concepção de inflação determinada por aumentos salariais, sobretudo quando, como agora, vivemos num período de distribuição (cada vez mais) desigual do rendimento. Uma discussão sobre inflação e inflações é cada vez mais importante, dada a importância desta na política económica. Só com um quadro teórico que não parta do funcionamento de mercado, mas que integre as dimensões de produção, instituições e conceitos, como os de poder e classe, podemos construir um programa que responda às emergências sociais e climáticas.

Estas posições têm uma forte declinação política. Não bastando a recusa da austeridade (bandeira da esquerda nos últimos dez anos), é necessária uma reflexão mais profunda de quanto gastar e como financiar um plano económico que tenha como objectivo o pleno emprego, a reindustrialização, a valorização salarial e a distribuição mais igualitária de rendimento. São necessárias políticas “do lado da oferta”, não no sentido habitual do termo, sinónimo de flexibilização das relações laborais, mas no de organização de respostas planeadas a necessidades não satisfeitas na sociedade. Para isso precisamos de um conhecimento profundo da economia, da construção de capacidades do Estado (muito erodidas) de intervenção e planeamento. Só com uma proposta robusta e elaborada de centralização e articulação de investimento público, reconfiguração do sistema financeiro e políticas sectoriais, que estão longe de ser as preocupações dos destes economistas convencionais, podemos almejar a uma alternativa que confronte o capital na destruição em curso. Esta será sempre um proposta que torna saliente e confronta os obstáculos com que nos deparamos, desde a perda soberania à correlação de forças sociais nacionais, passando pelos limites e urgências colocados pelas mudanças climáticas. Caso contrário, continuaremos numa posição de controlo de danos, frágil politicamente, que alimenta a crescente desmobilização e busca desesperada por alternativas nos cantos mais assustadores do espectro político.

Livros recomendáveis que ajudaram à elaboração deste texto:

Money and Government: a challenge to mainstream economics. Robert Skidelsky, Yale University Press, 2018.

Macroeconomics: a critical reader. Ben Fine, Pluto Press, 2016.

4 comentários:

  1. Um muito excelente reaparecimento de Nuno Teles.

    E em grande forma

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  2. Resumindo, cada caso é um caso. E a chave de ouro não poderia faltar com um bonito salto encarpado da dimensão económica para a política.

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