sábado, 27 de fevereiro de 2021

Lénine fez o melhor que pôde


Bem sei que Lénine tem as costas largas, sendo submetido a um nível de exigência ético-política que não se coloca aos internacionalistas liberais da mesma época, tantas vezes racistas e cúmplices do colonialismo, capitaneados por Woodrow Wilson e quejandos. E isto em contraste com alguém que inspirou, na teoria e na prática, tantos anti-colonialistas e anti-imperialistas, desiludidos com a circunscrição fundamentalmente europeia da ideia de autodeterminação nacional, em 1919, na Conferência de Paz de Paris. Num dos seus sempre primorosos textos, o historiador Rui Bebiano denunciou: 

“Uma lógica [anti-americana] que continua a colocar dogmas e preconceitos à frente da realidade, definindo os EUA como inimigo principal de todos os projetos progressistas. Vale a pena recordar que, em ‘Imperialismo, estádio supremo do capitalismo’, de 1917, Lenine deu o mote a esta perpétua fixação da América como inimigo principal.” 

Quem ler o livro clássico de Lénine verificará que os alvos principais são os capitalismos francês, britânico e alemão, até porque eram, na véspera da Primeira Guerra Mundial, os grandes exportadores de capital, mais de três quartos, e correlativamente as grandes potências, cuja política externa tinha desembocado nesse “crime contra a humanidade”, a expressão que usa no justamente famoso Decreto da Paz, o da proposta de paz, sem anexações e sem indemnizações, a 8 de Novembro de 1917. 

É claro que Lénine não é caso único, na peugada de John Hobson, autor do livro igualmente clássico nesta literatura do início do século XX, podendo ler-se também com proveito o que Rosa Luxemburgo escreveu. É hoje bem mais popular, até porque foi assassinada a tentar conquistar o poder e não há nada melhor do que esta forma de derrota para uma reputação histórica no chamado marxismo ocidental. O chamado marxismo oriental, o que construiu Estados e cujo poder foi mudando o sistema internacional, só raramente é resgatado do esquecimento a ocidente.

O imperialismo tem de continuar a ter fundações na evolução da economia política e não em obsessões com países em particular, considerados de forma global. É verdade que os EUA são referidos em múltiplas ocasiões no livro de Lenine, dada a importância crescente de um país onde a centralização e concentração de capital, os trusts, eram inauditas. 

Como sublinhou o historiador Adam Tooze, num livro de história internacional profundamente crítico dos bolcheviques chamado Deluge, houve, quando muito, subestimação do poder do capitalismo dos EUA, o país que passaria a ser o grande bastião desse sistema internacional, como Bebiano acaba por reconhecer, a grande potência credora a seguir à grande guerra, para cujo desenlace contribuiu decisivamente. Aliás, será a sua intransigência em relação às dívidas aliadas que explicará parte da intransigência francesa em relação à Alemanha, tão criticada por Keynes, um economista liberal que aliás mereceu apreciação positiva de Lénine neste contexto.

Os bolcheviques terão até uma certa admiração pela modernidade do fordismo, que procurarão imitar nos seus termos. Antonio Gramsci, cuja reputação parece muitas vezes ser mais função do destino trágico nas prisões do fascismo do que da leitura de uma obra tão tributária do método de Lénine, falará de americanismo.

Seja como for, a perspectiva do imperialismo de Lénine tem sido corroborada por vozes insuspeitas, não propriamente marxistas. De facto, quem ler os trabalhos dos dois grandes especialistas na evolução histórica das desigualdades económicas, Thomas Piketty e Branko Milanovic, encontrará referências breves, mas elogiosas, ao poder explicativo das hipóteses de Lenine naquela época: das desigualdades internas cavadas às hierarquias internacionais entrincheiradas. 

A geometria do imperialismo muda: basta pensar que a principal potência imperialista dos nossos dias, os EUA, há muito que importa capital, à boleia de défices de balança corrente, endividando-se na sua moeda, o mais parecido que existe com uma moeda mundial, privilégio exorbitante. Foi nos últimos tempos o consumidor e poder monetário de último recurso e o poder armado de primeiro recurso do capitalismo neoliberal. Todo o mundo é composto de mudança. 

É claro que Lénine fez o melhor que pôde no tempo que foi o seu: nas suas mãos, o marxismo foi uma teoria viva, em actualização constante, usada para compreender o capitalismo e para uma prontidão superadora que colocará o acento tanto na classe como no povo, categoria mais abrangente. Não digamos adeus a este espírito indómito, numa época onde os choques e as mudanças serão tumultuosos.

9 comentários:


  1. Tudo muda e não raro em modo rapidíssimo.
    O que permanece é o Homem, esse ser não marxista.

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  2. Mais uma vez, um texto justo. Justo não no sentido de legítimo, mas de preciso e rigoroso.

    Que vai abrindo portas para outros compartimentos. Para Losurdo, sem sombra de dúvida. Mas também para um anterior texto de João Rodrigues, que se revisita com um renovado prazer.

    (A coerência é uma enorme virtude. Ao contrário de Jose, que tenta atribuir qualidades ao Homem, baseado na sua matriz ideológica, que como se sabe tem para ele aquela plasticidade típica de quem definia ontem o Homem, como aquele Ser Salazarista e hoje apontará o Homem, como aquele Ser Troikista e mais além.
    Jose no reino da teologia do absurdo. Ámen)

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  3. O negociador USA nas compensações de guerra a ser pagas pela Alemanha, depois da Iª Guerra Mundial chamava-se ... J. P. Morgan !!!
    Grandes resultados conseguiu.

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    1. Conseguiu que Hitler chegasse ao poder ,tais as condições criadas ao povo alemão...
      Há cada besta mais ávida por dinheiro...

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  4. Essa do J.P.Morgan é novidade para mim. Mas é uma informação preciosa, obrigado

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  5. Marx, Engels, Lenine e Staline são peças fundamentais que orientam o PC Chinês e os americanos hoje interrogam-se sobre a sua incapacidade perante as pandemias, os desastres climáticos e a dívida que deve chegar aos 125%.do PIB.

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  6. Há um pequeno problema com esta linha de argumentação, ou seja, desculpam-se os crimes de Lenine à boleia da velha desculpa de que o inimigo era pior do que ele e de que os fins justificam os meios.

    Em primeiro lugar, os fins não eram lá grande coisa, porque o socialismo real depois de Estaline foi a desgraça que se sabe, mas isso é o menos. Poderíamos dizer o mesmo do falhanço do nacionalismo progressista e da sua transformação em neopatrimonialismo autocrático, mas se calhar esta simples constatação é um sinal de racismo.

    Cabe naturalmente aos povos dos países pós-coloniais livrarem-se dos seus déspotas pós-marxistas, mas por amor de Deus não nos atirem areia para os olhos tentando vender-nos esses exemplos como egrégios. Se isso é soberania, tragam-me já as grilhetas de Bruxelas...

    Em segundo lugar e mais importante, alcançar objectivos supostamente justos por meios injustos torna quem assim procede num criminoso igual aos outros. Nem mais nem menos. De boas intenções está o inferno cheio.

    E não são racionalizações idiotas que apagam essa conclusão simples e cristalina.

    O reformismo social-democrata e democrata-cristão conseguiram bastante mais para os trabalhadores no Ocidente do que o socialismo real alguma vez conseguiu para aqueles que habitavam a Leste do Muro de Berlim. Já sei que me irão dizer que isso também era assim porque o dito socialismo real punha os capitalistas em sentido, e eu estou certo que as vítimas da barbárie leninista-estalinista, lá nos seus túmulos, se regozijam de que o seu sacrifício não foi em vão (estou a ser sarcástico).

    Depois, quem combateu a social-democracia (os social-fascistas, assim eram chamados) não pode vir agora meter a foice em seara alheia.

    De facto, João Rodrigues, a via autocrática marxista-leninista-estalinista provavelmente destruiu quaisquer veleidades de superação do capitalismo durante décadas ou séculos, tal como o terror jacobino liquidou quaisquer hipóteses de libertação dos povos europeus pelo menos até ao princípio do século XX.

    Por isso, Lenine deve ser colocado onde merece, ou seja no panteão dos piores criminosos do século XX e dos coveiros do socialismo enquanto ideia de Justiça, e o resto é conversa revisionista...

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  7. Para quem se interessar: vejam a posição que nessas negociações das compensações tomou Jonh Maynard Keynes,que representava a Grã-Bretanha...
    Os filhos de más mães deixam impressões que perduram. Sai engrandecido Keynes,ainda hoje actual e digno do nosso apreço.

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  8. Ò Santos!
    Paleio como o teu já não se ouvia desde o Boliqueime Cavaco !
    Persiste, ainda vais a sub-secretário do Coelho, que está que nem pode para conquistar o governo... Santos e Ventura,que interior e extremo.direito!

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