sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

PRR: mais um passo no caminho da servidão


Com a vacinação das populações dos EUA e da UE nas mãos das grandes farmacêuticas, com a quase nula vacinação dos países do grande sul, o que permite por muito tempo o aparecimento de estirpes mais perigosas, portanto ainda bem longe de sabermos quando será possível retomarmos uma vida próxima do normal, começamos a ser informados das preocupações dos ideólogos do sistema quanto ao nível da dívida pública e a sua correcta gestão.

Evidentemente, perante uma situação de guerra ou calamidade, foi preciso rasgar os véus institucionais criados para fingir que Estados soberanos, dotados de um banco central e emitindo dívida na sua moeda, dependem dos mercados financeiros. Com maior ou menor contorcionismo de procedimentos para que o público não perceba exactamente o que se passa, a despesa pública tem sido feita com o dinheiro emitido pelos bancos centrais – como sempre se fez, ainda que de forma mais ou menos camuflada, nos EUA e no Japão – e isso é uma situação que o sistema neoliberal não pode permitir que se generalize.


Na sequência desta pandemia, abolida a independência política dos bancos centrais, os governos poderiam começar a investir muito mais no Estado de bem-estar (saúde, educação, habitação, emprego, segurança social), na investigação científica ao serviço da saúde e da humanização do trabalho, na requalificação das carreiras da administração pública com recrutamento de quadros com elevadas qualificações, e poderia retomar também a política económica anti-cíclica, redescobrindo o planeamento estratégico para o desenvolvimento, etc. Deixaríamos de perguntar “haverá dinheiro?” porque o foco do debate político passaria a ser o bem-estar dos cidadãos, a preservação da biosfera, a erradicação da pobreza e a drástica redução das desigualdades sociais. As condicionantes da despesa pública passariam a ser o nível de inflação que se tiver assumido como limiar e o relativo equilíbrio das contas externas, ambas sujeitas à vigilância do poder legislativo apoiado por assessoria técnica (o actual conselho de finanças públicas seria extinto).


Uma mudança de paradigma da política económica no seio do capitalismo? Nem pensar! Os centros de comando do capitalismo neoliberal e os centros de difusão da sua ideologia não admitem tal coisa e tudo farão para o impedir. Estaria em causa o poder do capital liderado pela finança e grandes corporações, acompanhados pelos seus acólitos, com destaque para muitos economistas do (errado) pensamento dominante.


O fantasma da inflação é o risco mais invocado, mas estes ideólogos nunca explicam, em concreto, qual será a sua origem. E não explicam porque não podem revelar a sua falta de fundamento: a teoria quantitativa da moeda é uma teoria falsa, embora ensinada como se fosse verdadeira. E, olhando para os factos, não se vê inflação relevante nas economias que têm uma capacidade produtiva razoavelmente organizada, mas longe do pleno emprego, apesar da criação de moeda em larga escala. Após uma década de injecção massiva de liquidez nas economias do grande norte, não houve inflação, muito menos a hiperinflação que alguns analistas garantiam. É que a troca de títulos de dívida por moeda não conduziu a um aumento da procura; afinal, só a despesa pública pode fazer subir a procura, compensando a retracção do sector privado, numa conjuntura de estagnação ou recessão. Aliás, a proibição da política orçamental na UE é a principal causa da ascenção da extrema-direita, no quadro de um regime monetário que é estruturalmente semelhante ao do padrão-ouro dos anos trinta. Parece que há muita gente que, dizendo-se de esquerda, não conhece Karl Polanyi, ou pelo menos não leu os capítulos 19 e 20 de A Grande Transformação.


Também se agita o fantasma de que os bancos centrais possuem agora uma boa parte da dívida pública como se isso fosse um problema. Na realidade, trata-se de uma dívida do Estado a si mesmo uma vez que o banco central é do Estado. Essa é a natureza das coisas fora da UE. No caso desta, trata-se de um clube de Estados que instituiu um banco central absolutamente independente (como se a política monetária fosse uma questão ‘técnica’), algo que uns quantos economistas preferem ignorar nas suas generosas (mas inconsequentes) petições de cancelamento de dívida pública na posse do BCE.

Fora da UE, essa dívida pública na posse dos bancos centrais é uma dívida para ignorar e cancelar. Sendo a entidade legalmente autorizada a criar a moeda-base do sistema financeiro, pela sua natureza (por definição) um banco central não entra em falência. Adicionalmente, é preciso explicar a estes jornalistas e à maioria dos economistas do pensamento dominante que é o próprio banco central que fixa a taxa de juro nos mercados. Por conseguinte, são falsos os perigos que os media nos anunciam para o pós-pandemia.

A verdade é que a OCDE continuará a aconselhar os governos a ter medo da dívida pública quando decidem os apoios às empresas e a todos os que são afectados pelo combate à pandemia. De facto, não foi por distracção que o governo de Portugal ficou muito aquém da despesa prevista no orçamento de 2020; foi porque travou quanto pôde o crescimento da dívida, tal como a maioria dos países da zona euro. E é também por essa razão que os apoios tardam a chegar, apesar de muito propagandeados: múltiplos obstáculos técnico-burocráticos fazem desistir inúmeros candidatos, a que se adicionam requisitos de acesso deliberadamente apertados, tudo isto para conter a despesa na maior tragédia do pós-guerra.

A insistência nesta retórica do risco da dívida excessiva é certamente uma forma de não deixar que ganhe força a alternativa política ao neoliberalismo; é a preservação da hegemonia das suas ideias que está em jogo. Contudo, no caso particular da UE, há algo mais que foi varrido para debaixo do tapete nesta discussão pública do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). A crise foi aproveitada para, a coberto do pacote financeiro Next Generation EU – de solidariedade e construção de um futuro próspero para todos! –, impor aos países da zona euro um controlo ainda mais apertado dos respectivos orçamentos de forma a eliminar as pequenas margens de manobra que ainda poderiam ser aproveitadas por algum governo de inclinação menos ortodoxa. Até porque não é seguro que Draghi seja bem sucedido nesta tentativa de meter definitivamente a Itália no colete de forças neoliberal.


A criação de impostos europeus (supranacionais, mas sem democracia federal) destinados a pagar o endividamento da UE, acompanhados de um mais apertado escrutínio dos orçamentos dos Estados-membros, é apenas mais um passo para a eliminação do que resta de soberania nacional. O voto dos povos da UE já não conta para o respectivo orçamento. O seu enquadramento quanto aos saldos e à dívida é imposto pela UE, agora acompanhado de reformas ainda mais específicas, e cada vez mais imperativas, decididas pela Comissão muito para além do que está no Tratado de Lisboa. Havendo alguma resistência política, lá estará o BCE para disciplinar o país desviante. Basta-lhe reduzir o volume de compras da dívida desse país e, ao mesmo tempo, proferir uma declaração de desagrado. Isso será o suficiente para os títulos perderem valor e os juros dispararem, pelo que só resta uma submissão à grega e a sujeição a uma punição exemplar.

 

Entretanto, dado que os alemães receiam a acumulação de dívida da periferia no balanço do BCE, está em preparação uma alternativa para o pós-pandemia: suspender gradualmente o actual financiamento aos Estados (indirectamente, através do mercado secundário) pelo financiamento directo, sob condição de austeridade, através do Mecanismo Europeu de Estabilidade. Se tal projecto for concretizado, pode tornar-se uma verdadeira bomba nos mercados financeiros. Ninguém acredita que a Itália se sujeite tranquilamente a tal reconfiguração no financiamento dos Estados-membros, pelo que o tempo pós-pandemia será certamente um tempo de grandes tensões políticas na UE, agravado pela erosão do centrismo e crescimento da extrema-direita por falta de alternativa convincente à esquerda. Dado que anda por aí muita gente que se diz de esquerda com expectativas fantasiosas sobre uma reforma progressista da zona euro, vejo-me na obrigação de dizer com clareza: por falta de “condições objectivas e subjectivas”, Portugal não vai sair do euro, mas dentro do euro estamos condenados à austeridade e à decadência como qualquer periferia no mundo; mais, a democracia da UE, incluindo o pseudo-Parlamento Europeu, é uma farsa.


Como bem sabem os economistas que estudaram os processos de desenvolvimento, não será o dinheiro do PRR e do Portugal 2030 que permitirá ao país sair da estagnação. Desde Maastricht, o dinheiro até hoje recebido permitiu fazer coisas interessantes mas a verdade é que o país continua muitíssimo longe do que lhe foi prometido com a moeda única. No colete de forças da União Económica e Monetária, o declínio será temporariamente mascarado pela construção de novas infraestruturas e melhores equipamentos sociais (com falta de funcionários, porque estes estragam as “contas certas”), mas é um processo imparável. Gunnar Myrdal, uma referência nos estudos do desenvolvimento económico quase banidos dos curricula, explicou com clareza os mecanismos que, num processo de integração, permitem às regiões desenvolvidas sugar as menos desenvolvidas.


Isso aconteceu no nosso país (com boas vias rápidas ligando o interior ao litoral) por falta de uma estratégia de desenvolvimento regional, incluindo a regionalização do poder político, e repete-se hoje com a emigração de jovens qualificados, ou com as nossas start-ups inovadoras, rapidamente deslocalizadas ou absorvidas pelas grandes empresas de países mais desenvolvidos. Este processo decorre sob os nossos olhos e só nos resta o modelo de uma economia que depende dos ciclos do turismo e das bolhas do imobiliário geradas por capitais especulativos. 


O governo não sabe, mas a comunidade académica da Economia Política sabe (ou devia saber) que o desenvolvimento exige um conjunto integrado de políticas públicas de que não dispomos na UE. A começar por uma política orçamental articulada com a política monetária do banco central, com uma política industrial à maneira de Taiwan e Coreia do Sul, com parcerias estratégicas entre Estado e empresas suportada por uma administração pública muito qualificada, e com uma política comercial externa apoiada por uma política cambial inteligente. Só mantendo por muitos anos a consistência destas políticas, além de outras, orientadas por uma visão estratégica, será possível escapar à nossa presente condição de periferia estagnada e, a prazo, irremediavelmente pobre. Se um dia, por iniciativa de outros, a UE se vier a extinguir, ou a reformular sem as pretensões federalistas subjacentes à moeda única, o espaço das políticas públicas que permitem o desenvolvimento alargar-se-ia imenso. Ainda assim, seria apenas a condição necessária.


7 comentários:

  1. Saúda-se pelo menos o reconhecimento de que uma boa parte do nosso desenvolvimento, humano e ambiental, se deve à UE.

    Mas não foi F. Hayek que escreveu um livro que se chamava justamente a estrada para a servidão? Jorge Bateira, eu até concordo que não existem as tais condições objectivas e subjectivas para saírmos do Euro, mas também me parece que Portugal bem precisaria de quem estudasse essa possibilidade a sério, com um rol de políticas destinadas a mitigar as consequências de tal passo, especialmente se formos obrigados a tal.

    Agora, ficar a lamentar a nossa incapacidade é que é sinal de derrota. Quem defende essa possibilidade é que tem que se chegar à frente, não ficar à espera de uma crise para que sejam outros a implementar tais políticas. De outro modo, trata-se de pensamento mágico e do pior possível, o que sonha com crises ainda maiores para mostrar que tem razão. Cuidado com o que deseja.

    E depois, vir referir que precisaríamos de uma política industrial como a de Taiwan ou da Coreia do Sul, que se desenvolveram em condições francamente autocráticas, é que não lembra ao diabo. A Direita também vem dizer que precisamos de uma política fiscal como a da Hungria, outro Estado que não se recomenda em termos de democracia, ou a da Irlanda, Luxemburgo e Holanda, todos paraísos fiscais, de uma maneira ou de outra.

    Ademais, todos estes Países tiveram a ideia primeiro.

    Falar das coisas fora do seu contexto, como alerta a Bárbara Reis, não ajuda muito.

    Quanto ao perigo de inflação, deixe-nos readquirir uma moeda em que ninguém confia (por isso é que o sistema se diz fiduciário) e vai ver quão depressa ela regressa.

    As políticas de desenvolvimento nacional, em contexto democrático, pelo menos, e com Governos de Esquerda falharam todas, seja por demérito interno, seja por interferência externa.

    Portugal tem um caminho para o desenvolvimento, mas é longo e estreito, passa pela qualificação das pessoas (algo que as ajudas comunitárias têm vindo a permitir), pela reabilitação da ferrovia e do desenvolvimento do interior, mas vai ter que incluir o Turismo que representa afinal de contas um contributo de apenas 8,7% no PIB, números de 2019 e outros sectores que absorvem mão de obra pouco qualificada (essas pessoas existem e vão ter que ter onde trabalhar).

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  2. Vale a pena abordar um comentário que começa assim:

    "Saúda-se pelo menos o reconhecimento de que uma boa parte do nosso desenvolvimento, humano e ambiental, se deve à UE."

    Depois de ter lido o que Jorge Bateira escreveu?

    Já não vale a pena falar na bofetada dada pelo autor do texto naqueles que andam com Macron ao colo, quando de forma directa e frontal JB afirma que:" Aliás, a proibição da política orçamental na UE é a principal causa da ascenção da extrema-direita"?

    Mas atentemos quando JB fala do nosso país: "com a emigração de jovens qualificados, ou com as nossas start-ups inovadoras, rapidamente deslocalizadas ou absorvidas pelas grandes empresas de países mais desenvolvidos. Este processo decorre sob os nossos olhos e só nos resta o modelo de uma economia que depende dos ciclos do turismo e das bolhas do imobiliário geradas por capitais especulativos...à nossa presente condição de periferia estagnada e, a prazo, irremediavelmente pobre"

    Uma boa parte do nosso "desenvolvimento, humano e ambiental" a dever-se à UE?

    Isto é propaganda de um funcionário da coisa. E como qualquer propaganda, quando assenta em pilhérias deste teor, cai pela base, ao ritmo da gargalhada que acompanha estas pilhérias

    Estará aqui em parte explicada o louvor servil e rastejante de JS das algemas que apregoa?

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  3. Porque estamos no terreno de um propagandista. De um propagandista, JS, que se entrega de corpo e alma à realidade dos vencedores.

    Quem anda a apregoar a bondade do liberalismo é quem agora come à mesma mesa dos "vencedores". Sem sofismas e sem vergonha. É vê-lo montado num traidor aos seus antigos ideias (tê-los-ia?), um Macron, que traiu os seus para seguir a sua carreira de banqueiro ao serviço dos seus projectos de gauleiter do capital.

    Perante um texto lúcido e sereno, custa ver JS invectivar a objectividade da análise, utilizando os lugares comuns presentes nesta mediocridade aí em cima espelhada. Com uma agravante. A precisão do texto de JB é de tal forma e o desagrado de JS tanto, que impele este a negar não só o que se pretende com a análise, como também a negar as suas fundamentações. Desta forma assaz "característica" :

    -" o que sonha com crises ainda maiores para mostrar que tem razão. Cuidado com o que deseja." ( O que é isto? A énesima versão, a castigar quem difere dos desejos de JS?)

    -" precisaríamos de uma política industrial como a de Taiwan ou da Coreia do Sul, que se desenvolveram em condições francamente autocráticas, é que não lembra ao diabo" ( o diabo agora usado como argumento? Onde já ouvimos o demo assim montado? Mas precisamos ou não de uma política industrial? E como definir as condições em que esta UE se tem desenvolvido? Autocrática de forma eufemística?)

    -"A Direita também vem dizer que precisamos de uma política fiscal como a da Hungria, outro Estado que não se recomenda em termos de democracia, ou a da Irlanda, Luxemburgo e Holanda, todos paraísos fiscais, de uma maneira ou de outra. Ademais, todos estes Países tiveram a ideia primeiro. ( Mas quem quer este tipo de "desenvolvimento" fiscal? A direita? E JS vem fazer a propaganda neoliberal da coisa? E até se lhe adivinha a inveja por essa mesma coisa? Ele devia ter tido a ideia primeiro?)

    -"As políticas de desenvolvimento nacional, em contexto democrático, pelo menos, e com Governos de Esquerda falharam todas, seja por demérito interno, seja por interferência externa". (A que governos de esquerda se refere JS? Aos que se entregaram nos braços da UE? Aos tipos tão à esquerda que arruinaram as condições laborais e se entregaram de forma ,languidesceste, nas algemas de Bruxelas? Que arruinaram o nosso tecido industrial? JS no fundo não terá alguma preferência, não pelos governos que titula de esquerda, mas pelos governos assumidamente de direita?)


    Sobra o "caminho para o desenvolvimento do país" de JS. Mas há limites quando nos deparamos com os seus planos. Coisas assim permitem ver como os das coisas assim veem estas coisas.

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  4. Caro Jorge Bateria,
    Analise lucida.
    Sera justo portanto dizer que na sua opiniao, a derrocada, ou pelo menos profunda reconfiguracao da UE sera se fara por iniciativa da Direita?
    Se sim, em que moldes provavelmente tal se passara?

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