sábado, 16 de janeiro de 2021

Preço necessariamente político

A dívida pública, no fim de 2011, rondava os 114% do PIB; em janeiro de 2012, os juros das obrigações do tesouro de Portugal a 10 anos atingiram os 16,4%. 

A dívida pública, no fim de 2020, cifrou-se em 135,1% do PIB; ontem o Jornal de Negócios noticiava que “Portugal coloca dívida a 10 anos com juros negativos pela primeira vez”.

Em 2018, Mário Centeno, o Ronaldo das finanças, como lhe chamou Schäuble, um declarado amigo de Portugal, afirmava que o “comportamento no mercado da dívida é, sem dúvida, o resultado do rigor e da credibilidade da política económica”. Sem dúvida, um golo na sua fulgurante carreira, uma baliza escancarada em termos de interesse nacional

“O sucesso do leilão vem comprovar o trabalho e a estratégia que Portugal tem conseguido executar no atual contexto e também aproveitar a atuação do Banco Central Europeu”, diz agora fonte oficial do gabinete de João Leão, na mesma senda demagógica e lesiva do interesse do nosso país, mas já sem lata para omitir por completo a decisiva ação do BCE, como fez o seu antecessor na posição governativa. 

A fazer fé nas notícias, Portugal está a financiar-se com juros negativos, então isso significa que “os investidores estão dispostos a pagar para emprestar dinheiro”. 

 Como se sabe, não é vocação das empresas pagar pelos serviços que prestam ou pelos bens que vendem. Não é sua vocação e não foi esse o caso. 

O que as notícias não dizem é que, na zona Euro, os atores do sistema financeiro, quando recebem empréstimos do BCE a taxas de juro inferiores aquelas a que são remunerados os seus depósitos naquela instituição, esta margem constitui uma “transferência orçamental financiada a fundo perdido” (That margin is an outright money-financed fiscal transfer). 

Acresce, e não menos importante, que, ao contrário do que se diz na notícia, se os mercados que financiaram o Estado português em 500 milhões de euros a -0,012% e têm acesso a financiamento do BCE a -0,5%, isto significa que havia condições para o empréstimo ter sido concedido com uma margem de 0,488%, o que significa que os mercados não pagaram mas receberam por uma mera intermediação, só necessária porque o financiamento indirecto do BCE é imposto aos Estados da zona euro, um lucro de 2,44 milhões. 

Parafraseando livremente Stephanie Kelton, os Estados monetariamente soberanos, emissores da sua própria moeda, podem gastar em segurança sem contrair empréstimos. A dimensão crescente da dívida com que muitos se preocupam pode ser evitada. Isto não quer dizer que seja errado oferecer a investidores privados uma alternativa que gere juros na moeda do soberano. Contudo, as obrigações são uma ferramenta de política monetária e não um sinal de dependência dos mercados financeiros. 

Se o nosso país fosse monetariamente soberano, a questões que deveríamos estar a debater seriam a quem e quanto rendimento em juros deveria estar o Estado a proporcionar. 

O Reino Unido, por exemplo, não é obrigado a oferecer uma alternativa remunerada com juros zero à sua moeda porque, querendo, pode financiar-se diretamente no Banco de Inglaterra. Como o Japão tem demonstrado com o controlo da curva de rendimentos, a taxa de juro paga pelas das obrigações do Estado é uma opção política. 

Contemporaneamente os Estados vendem obrigações para proteger algo mais valioso do que o ouro, um segredo bem guardado sobre a verdadeira natureza das suas capacidades orçamentais; um segredo, que, se amplamente compreendido, poderia levar a pedidos de “financiamento monetário explícito” para pagar os bens e serviços públicos de que carecem as nossas sociedades. 

Os Estados soberanos, ao venderem obrigações, enquanto simultaneamente criam a moeda de que necessitam quando realizam despesa e destroem a moeda de que não necessitam quando cobram impostos, mantêm a ilusão de serem financeiramente constrangidos. Contudo, num Estado monetariamente soberano, a única restrição que importa é dos recursos reais à venda na economia e passiveis de ser adquiridos com a moeda criada pelo soberano. Ou seja, como afirma Keynes, um Estado soberano moderno detém o monopólio do direito de escrever e impor o dicionário monetário e, portante, esse soberano, “tudo o que pode fazer, pode pagar”. 

Dentro ou fora do Euro, na minha perspetiva fora, o tabu da independência da política monetária deve dar lugar à ação articulada de tesouros nacionais e bancos centrais mandatados com o duplo objetivo do pleno emprego e da estabilidade de preços. E o Tesouro deve, a cada momento, poder decidir se se financia nos mercados financeiros privados ou diretamente no banco central e, assim, se a esse financiamento corresponde, ou não, dívida pública. E os governos devem responder por estas opções em eleições. 

Fazer diferente é insistir na distópica subordinação da sociedade à economia e minar a democracia.

(Este post tem segunda parte)

12 comentários:

  1. Eu muito agradeceria se alguém me explicasse o oitavo parágrafo.

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  2. Tenho a certeza que nada correrá mal em incentivar a finança a fazer apostas de curto prazo no futuro do planeta.

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  3. A questão resume-se a isto: o poder está nas mãos das elites e o poder é exercido para favorecer quem o detém.
    O Reino Unido está a ser governado por um partido de direita, que segue a cartilha neoliberal mas, perante a escala da crise (mais brexit), é o banco central Inglês que está a financiar com "dinheiro fresco" (considerando tanto as notas impressas como os zeros acrescentados aos saldos das contas dos bancos privados no banco central) a despesa do governo inglês.
    Se houvesse esquerda em Inglaterra, estariam a aproveitar a contradição dos tories, nas não existe nada disso.
    Como não são os privados que emitem moeda, a necessidade dos estados terem de recorrer aos privados para se financiar é apenas um mito.
    No séc. XIX os bancos privados emitiam moeda e tudo acabou em 1889 com a bancarrota, cujas consequências ainda hoje se sentem.
    No fundo, estamos a ir pelo mesmo caminho, mas agora numa versão colonial.
    Ao adotar uma moeda estrangeira, tornamo-nos colónia do país emissor da moeda, ou seja a alemanha.
    Mas o destino vai ser o mesmo, a bancarrota.
    O bce também está a imprimir euros em quantidades industriais, financiando os estados da zona euro, mas isso não vai ser para sempre.
    Eles continuam a negar que estão a financiar os déficits, para não violarem o artigo 123 do tratado da união, mas a mentira vai um dia confrontar-se com a verdade.
    E, como sempre acontece, a mentira morrerá nesse momento.
    E, com ela, o euro e a união europeia.

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    1. O texto e esta última consideração fazem-me recordar a situação monetária e bancária nos Estados Unidos até à criação do Dólar Americano durante a guerra civil. Só um banco central forte poderia fazer face à guerra, caso contrário o sul, com mais reservas poderia ganhar a guerra pois controlava 70% das receitas. Antes da Guerra Civil o país e a banca privada colapsaram várias vezes, uma deles por culpa de Andrew Jackson que fechou o segundo banco central. As crises foram superadas por conta da ocupação dos territórios índios, a escravidão e a emigração.

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  4. Quando escreve "financiamento do bce a 0,5%" quer dizer ~0,5% , certo?

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  5. Caro correc,

    Sim, tem razão, -0,5%. Está corregido, obrigado.

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  6. Se alguém me explicasse quem ia procurar a soberana moeda portuguesa, para além de quem tivesse que levar com ela pelas goelas abaixo, resolvia-me de vez esta questão colonial.

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    1. As moedas não são um artigo de luxo para se colocar no museu ao lado da mona lisa.
      Servem para fazer comércio. Servem para comprar e vender bens e serviços.
      Um país soberano, que emite a sua moeda não tem de estar preocupado se os seus cidadãos ou os cidadãos estrangeiros acham a moeda "bonita" ou "feia".
      O que tem de saber fazer é política monetária, ao definir taxas de juro e de câmbio.
      Quando tínhamos o escudo, a nossa economia estava ao nível dos outros países em desenvolvimento, o que significa que valia pouco, mas isso ajudava às exportações, que ficavam relativamente baratas e prejudicava as importações, que ficavam caras.
      Ora, agora temos uma moeda forte demais para a nossa economia e, com isso, desapareceram setores industriais inteiros, especialmente aqueles que eram os setores chave, como os texteis.
      Agora que não temos indústria, viramos para os serviços turísticos e afins.
      Só que o turismo morreu em março de 2020.
      É claro que podemos fazer de conta que está tudo bem, desde que a austeridade (aquilo que resta fazer a uma colónia falida) seja apenas para os outros.
      Mas eu não acho que esteja tudo bem!
      Muito pelo contrário.

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  7. 'A única restrição que importa é dos recursos reais à venda na economia e passiveis de ser adquiridos com a moeda criada pelo soberano'. O João Rodrigues poderia ter sido mais sucinto e dito uma palavra maldita, a saber 'inflação' (vá lá, ao menos fala de estabilidade de preços como sendo uma necessidade).

    Uma moeda soberana num País profundamente endividado não vale nada. Os anos 70 e 80, anteriores à entrada na então CEE, foram anos de penúria, e as dificuldades nem se deviam a uma dívida pública alta, simplesmente à falta de reservas de moeda forte (ou de referência, como alguém já aqui disse) e às crises provocadas primeiro pelos desmandos da 'Economia de Abril' e depois das políticas monetárias da AD, quando no MF se sentava um senhor de seu nome Cavaco Silva.

    O PS foi obrigado a aplicar austeridade por duas vezes, Cavaco ganhou as eleições em 1985 e a Esquerda esteve dez anos afastada do Poder.

    O dirty secret da MMT é que ela funciona em Países com moedas de referência, ou seja em Economias Avançadas. Ora o Escudo nunca o foi...

    E depois, a política da desvalorização cambial é uma política preguiçosa, porque aquilo que deveria ser uma alavanca para o desenvolvimento da Economia torna-se uma desculpa para que essa Economia não se desenvolva. Para quê o investimento privado, se a concorrência se pode obter a golpes de caneta (leia-se com desvalorização cambial)?

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    1. De facto, a MMT não se aplica à zona euro.
      A função do Estado é fomentar a atividade económica.
      Se os agentes económicos privados forem todos calões, então o esforço do Estado será infrutífero.
      Ora, o Portugal do escudo teve, no pós-25/abril/1974 uma greve de capital. Os capitalistas fugiram e levaram o dinheiro com eles.
      O Estado teve que se substituir aos capitalistas para investir no tecido produtivo e o País encheu-se de empresas públicas (entretanto já todas destruídas).
      Significa isto que NÃO SOMOS, PROPRIAMENTE, TODOS CALÕES.
      Os déficits das contas públicas servem para dar rendimentos aos agentes económicos privados para fazerem os seus investimentos.
      Se os investimentos forem produtivos (se não servirem para sustentar empresas insustentáveis), então o déficit poderá ser pago pelo aumento da produtividade, se o equilibrio setorial for bem calibrado.
      Ora, as regras cegas da zona euro, relativamente a déficits, que se aplicam da mesma forma tanto à Alemanha como à Grécia, impõem uma barreira ao desenvolvimento dos países cuja economia nada tem a ver com a alemã.
      Antes da pandemia, Portugal até exibia com orgulho um excedente.
      Nada se disse das consequências do excedente, nomeadamente no aumento do endividamento do setor privado.
      Assim, ninguém vai investir em Portugal, a não ser os oligarcas que o Estado sustenta e cujos calotes colossais são transferidos para o contribuinte, mais ou menos, de 10 em 10 anos. Devemos ter aí mais um dentro em breve.

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  8. Tanta conversa para tudo dar no mesmo:
    As políticas públicas, incapazes de criarem e manterem empresas produtivas, acabam a investir em infraestruturas ( que presumem potenciar a rentabilidade dos empreendimentos privados) ou em promover 'ajudas' ao investimento privado (vejam-se as rendas criadas à produção de energia).
    Mas, ideologia obriga, sempre mantêm o discurso da exploração, do imposto temperado de benefício e ameaça, da pública nódoa reputacional para quem excede em sucesso os limites da mediocridade ou ofende por quebra de discrição no ganho.

    O que sobra de tudo isto: a ambição da soberania monetária, em que a golpe de caneta se decide do valor da produção e, inefável gozo, se abatem rendas.

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    1. Ideologia obriga um patrão a fazer estas palacoadas de patrão Rentista

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