terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Cuidado


Há uns anos, um aluno perguntou à antropóloga Margaret Mead o que poderia ser considerado como o primeiro sinal de civilização numa dada cultura. O aluno esperava que ela respondesse fazendo referência a anzóis, recipientes de barro ou pedras de moagem. Mas não. Mead disse que o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga era um fémur (osso da coxa) que tivesse sinais de ter partido e estar curado. E explicou que no reino animal se morre quando se parte uma perna. Não se pode fugir do perigo, chegar ao rio para beber água ou caçar para comer. Passa-se a ser carne para os animais selvagens em redor. Isto é, nenhum animal sobrevive o tempo suficiente para que uma perna partida possa ficar curada. Um fémur partido com sinais de que está curado demonstra que alguém dedicou o seu tempo a ligar a ferida de quem caiu, a transportar essa pessoa para um sítio seguro e a acompanhá-la durante o tempo de recuperação. A civilização começa quando se ajuda alguém que está em dificuldades, disse Mead.

Lembrei-me deste inesquecível relato ao ler sobre Margaret Keenan, a primeira cidadã britânica a ser vacinada contra a Covid-19, aos 90 anos, no resistente Serviço Nacional de Saúde britânico. Nacional, notem. É nessa escala que estão as mais consequentes expressões institucionais da ajuda, da civilização do cuidado.

Entretanto, é bom recordar, com a indispensável ajuda de Mariana Mazzucatto e colegas, que as vacinas, um primeiro sinal de esperança, são o resultado de décadas de investimento público maciço em investigação e desenvolvimento, para já não falar de umas das mais gigantescas operações públicas de sempre, com vista à aceleração do seu desenvolvimento no actual contexto. Daí que a exigência de uma inovação dita privada orientada pelo interesse público geral, para lá do enviesado modelo financeirizado e de curto prazo, seja uma questão de decência básica. 

9 comentários:

  1. "umas das mais gigantescas operações públicas de sempre"
    Uma operação pública que inclui a mobilização de meios privados da cadeia logística. Como deve ser, mas sem esquecer que esses meios logísticos mobilizados são essencialmente privados e a sua criação não resultou de planeamento centralizado.
    Há quem refira o público ignorando o privado. E quem enalteça o privado esquecendo o público. Faltam análises justas e equilibradas.

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  2. Sem dinheiro público, não haveria vacina nenhuma.
    Muitos estariam a ser encurralados entre o mercado do medo (as tvs) e o mercado da morte (as agências funerárias PRIVADAS).
    Assim, ainda há o mercado da esperança.

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  3. Na história das vacinas inscrevem-se relatos de uma humanidade ímpar. Lembra-se o que disse Jonas Salk (virologista norte-americano, pai da vacina anti poliomielite) quando questionado sobre a quem pertencia a vacina:

    - A quem pertence a minha vacina? Ao povo! Você pode patentear o sol?

    Deseja-se que, tal como o sol, a vacina anti Covid nasça para todos.

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  4. Aí em cima alguém tem rancor ao planeamento público e à organização dos meios.Por entidades que tenham em conta o interesse público e que, face a este,possam mobilizar o que for preciso mobilizar

    É o que diz a Lei de Bases da Saúde

    O resto é conversa mole,entre o registo acobardado dos aleluias aos privados e o mote aos disparates das funerárias e das TVs

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  5. Aquela cena do capital social das empresas não conta, é simples fachada para dar expressão à magnificência da acção da função publica.

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  6. A questão não é a magnificência dos disparates em voga.

    A questão é mesmo o interesse público. Ora quem vive da parasitagem desse mesmo interesse, para os seus privados interesses, só pode andar a pregar essa mesma parasitagem.

    Ad eternum.

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  7. "Aí em cima alguém tem rancor ao planeamento público"
    Sem planeamento público não haveria forma de organizar a distribuição das vacinas a esta escala. É um facto e é para estas situações que o planeamento público (e a mobilização de meios privados) é necessário. Mas isso é só a ponta do iceberg. Para chegarmos a este ponto (em que as vacinas estão prontas a ser distribuídas) foram (e continuam a ser) necessários milhares de pequenos planeamentos privados e descentralizados: da produção e preparação das matérias primas, da investigação, produção e teste das vacinas, da produção das embalagens, dos meios de transporte, .... Tudo organizado pelo mercado.

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  8. A mão invisível dos mercados foi chão que deu uvas.


    Da tentativa de apropriação do Sol já se falou aqui.

    Da tentativa de vender a regulação da coisa como se se tivesse confiança nas coisas, também.

    (Então e o "capital social das empresas"? E o lucro , nada mais do que o lucro e só o lucro?)

    Só entregavam as vacinas na Comporta. E depois vendiam o resto no mercado negro.

    Quiçá com a mão de algum submarino alemão ou ministro holandês?

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