quinta-feira, 30 de novembro de 2017

A mesma farsa de sempre

A chamada candidatura de Mário Centeno à chamada presidência do chamado Eurogrupo não é propriamente uma surpresa. A ser bem-sucedida, trata-se de mais uma “exportação”, mas não desta solução governativa, que obviamente não é exportável, dado que corresponde, e responde, a circunstâncias de tempo e de espaço muito próprias deste nosso rectângulo. E o que se importará? Instabilidade, arrisco.

A ambição de Centeno parece estar em linha com a lógica de circulação de elites periféricas, que logo se imaginam no centro quando chegam ao governo, ou pouco tempo depois, e que tão bom resultado tem dado desde Durão Barroso. Centeno é diferente, dirão. Isto não é sobretudo pessoal. As elites periféricas circulam em função da sua adaptação aos interesses do centro. O centro tem mostrado interesse. E, para ser franco, creio que Centeno nem terá de se adaptar muito.

Trata-se afinal de contas de alguém com credenciais impecavelmente ortodoxas, incluindo uma útil “visão de mercado” das relações laborais, subtítulo de um dos seus livros, ou uma visão do sistema financeiro assente no escrupuloso cumprimento do princípio europeu do pagam, mas não mandam, típico de semicolónia. No fundo, a fidelidade ao Euro e suas regras que se requer. Tudo na ordem a sul, dirá quem manda a norte.

Neste contexto, na óptica de quem está no comando, a pergunta que se impõe é a seguinte: porque não haveria Centeno de ser uma útil e complementar adição à lógica da evolução na continuidade em curso nas instituições formais e informais europeias, permitindo ainda alimentar a ideia zumbi de que agora é que vai ser diferente na Zona Euro e na UE?

A tragédia é o Euro. Esta circulação é só a mesma farsa de sempre.

Capas e contracapas (II)

Como transformar um aumento salarial numa redução? Ou melhor, o que fazer para que um acréscimo efetivo de salário possa parecer, aos olhos da opinião pública, uma perda de rendimentos? Por momentos, parece ter sido esse o desafio a que se dedicaram alguns meios de comunicação social, em mais um momento de «capas e contracapas». Desta vez, o mote foi a restituição do subsídio de férias e de Natal e a consequente eliminação dos duodécimos (ou seja, a repartição destes subsídios pelos 12 meses do ano, em vez do correspondente pagamento de 14 salários).


O truque é simples: ignora-se que os subsídios de férias e de Natal voltam a ser pagos em dois meses do ano (guardando-se essa informação, na melhor das hipóteses, para o miolo do texto) e diz-se que o valor mensal do salário vai diminuir. Depois basta fazer a festa toda nas «gordas» da notícia: ora dizendo que o «salário no privado desce em janeiro», ora assinalando que os «trabalhadores passam a receber menos ao final do mês» ou que os salários vão encolher. A ponto de se poder ocultar uma melhoria real dos rendimentos, como aquela que terá lugar em 2018, em resultado do aumento, por exemplo, do salário mínimo (em pelo menos 322€, caso se mantenha o valor proposto pelo Governo, de 580€ por mês).


Trata-se, além do mais, de um acerto que não se repete. Ou seja, a aparente redução do salário, em termos mensais, deixará de se verificar no próximo ano, quando já não for necessário converter duodécimos em subsídios pagos de uma só vez. Aliás, foi justamente para obter o efeito inverso (a aparência de manutenção dos rendimentos num contexto de cortes efetivos nos salários e nas pensões), que o anterior Governo diluiu os subsídios de férias e de Natal pelos 12 meses do ano. Uma farsa que chega ao fim, com o OE de 2018.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

É bom o que é bom para os mercados? Lições do Chile


“Um governo apoiado por Bloco de Esquerda e PCP é mau para o país, porque será mal acolhido pelos mercados”. Este foi o argumento usado até à exaustão pela direita antes da constituição da atual maioria parlamentar. Como sabemos hoje, o argumento era falso. A subida das taxas de juro e do custo de financiamento da economia portuguesa não se verificou. Os apoiantes do novo governo apressaram-se a inverter o raciocínio formulado pela direita: o governo não é mau porque foi bem acolhido pelos mercados. Embora compreensível no quadro das necessidades de ganho imediato no debate político (eu mesmo não me escusei de o usar), este posicionamento encerra ameaças lógicas que não podem ser ignoradas. Afinal, se os mercados tivessem reagido mal e as taxas de juro subido, este seria um mau governo?

Os economistas Daniele Girardi e Samuel Bowles acabam de publicar um estudo sobre a reação do mercado bolsista chileno à eleição de Allende e ao golpe militar de Pinochet. No primeiro dia de transações após a eleição de Allende (8 de setembro de 1970) os títulos perderam 22% do seu valor, que só viria a estabilizar no final desse mês, após perdidos 48,6 pontos percentuais do valor bolsista inicial. Em esclarecedor contraste, no primeiro dia de transações após o golpe militar de Pinochet (17 de setembro de 1973), a cotação bolsista cresceu quase 80 pontos percentuais – 67 pontos percentuais, se descontada a elevada inflação dos dias em que a bolsa esteve suspensa - a maior valorização diária realizada até hoje na bolsa de Santiago. Utilizando métodos estatísticos sofisticados, que não vale a pena aqui detalhar, os autores concluem aquela que é a primeira intuição ao olhar para os dados: as variações súbitas nos valores das ações foram causadas pela mudança de regime político, não se encontrando evidência de que outra explicação, como a variação dos índices bolsistas internacionais ou o preço de transação das mercadorias das empresas chilenas, possam estar na sua base.


A conclusão é, pois, tão crua como parece à primeira vista: os mercados reagiram mal a um governo democraticamente eleito com um programa sustentado no progresso económico e social da população e reagiram bem (muito bem) a um golpe militar de inspiração fascista, que matou e encarcerou os seus opositores, suprimindo todas as liberdades políticas.

Esta ilustração de um dos episódios internacionais mais negros para a história da democracia e da esquerda deve recordar-nos do óbvio: elevar os mercados a referencial político moral, com capacidade de discernir entre o que é bom e o que é mau, é um erro. Os mercados não são uma entidade abstrata que se rege pelas leis “naturais” do desenvolvimento económico. Por detrás do movimento dos mercados existem pessoas concretas, cujas visões e interesses podem não estar – e amiúde não estão – alinhados com os interesses do povo que elege democraticamente os seus representantes. No Chile era uma pequena classe proprietária que receava a redistribuição da riqueza e a nacionalização das suas empresas; em Portugal, são as instituições internacionais e os investidores privados que, após forçarem uma arquitetura institucional que forçou o endividamento público, se preocupam agora unicamente com a capacidade de pagamento do Estado português, não olhando ao interesse social e económico das populações.

Procurar ver na reação dos mercados um indicador de boa governação, comprando a retórica da direita, é tentador no imediato. O ministro Mário Centeno usa este instrumento de argumentação política na maioria das suas declarações. Mas os perigos que representa a prazo podem mais do que superar os ganhos presentes. Quando um governo de esquerda se vir confrontado com a escolha entre o progresso económico e social e o interesse dos mercados (e isso vai acontecer), uma decisão ao encontro do interesse das populações poderá provocar uma reação negativa dos mercados. Nesse momento, um governo que escrutinou o seu sucesso pela reação dos mercados estará politicamente manietado. A prazo, só a direita pode ganhar em elevar os mercados a referencial moral. A esquerda que sabe que a escolha entre o Estado Social e o interesse dos mercados é apenas uma questão de tempo não se pode esquecer disto. Andar à boleia da retórica da direita para atingir ganhos imediatos pode custar-nos muito caro no futuro.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

As palavras são importantes

Permitam-me um comentário: tenho estado atento ao debate interno no PSD e não consigo identificar as famigeradas reformas de que tanto falam. Não encontrei, aliás, mais do que vagas proclamações. E percebe-se porquê. O conceito de reforma para a direita é privatizar, liberalizar e desregular. Reforma que é reforma tem de doer. O que o PSD e a direita política em Portugal não entendem é que para nós reformas têm outro significado. Para nós as reformas são avanços, não são recuos. Não é privatizar, é investir; não é liberalizar, é proteger; não é desregular, é inovar.

Excerto da intervenção final de Pedro Nuno Santos, que vale a pena escutar ou ler, no encerramento do debate sobre o Orçamento de Estado. É por saber que as palavras são importantes que Pedro Santos usa sempre a a expressão solução governativa e jamais usou a palavra geringonça. Um exemplo que muitos dos apoiantes desta fórmula deveriam seguir, já agora.

A palavra reforma é no seu discurso reconduzida ao seu significado histórico social-democrata, resgatando-a da captura neoliberal que a perverteu ao associá-la a técnicas institucionais para transferir recursos e poder de baixo para cima, de resto impulsionadas pela lógica da integração supranacional. O reformismo social-democrata, de base nacional, precisa mesmo da força e da pressão daqueles que querem ir mais longe em defesa dos subalternos.

Agora, só falta o PS ser consistente com um sentido que comporta uma autocrítica ao seu passado e, já agora, a uma parte do seu presente. Por exemplo, na área onde muito do que é importante nas vidas das tais pessoas concretas se decide: o trabalho. Para quando uma reforma laboral que permita superar a pesada herança institucional da troika?

domingo, 26 de novembro de 2017

O pedregulho

O debate organizado pela Universidade de Aveiro, a propósito dos dois anos do Governo, em que cidadãos escolhidos fizeram perguntas ao Governo, se não foi muito excitante como programa, revelou alguns aspectos interessantes e dramáticos.

O emprego, a saúde e, mais longe, muito mais longe, os incêndios e a segurança, foram os temas que concentraram as questões. Mas sobretudo foi o problema de se ser demasiado velho para "o mercado de emprego" e demasiado novo para se reformar; foi o problema dos desencorajados; foi o problema de quem não estuda, não trabalha e não recebe formação; dos recibos verdes, dos baixos salários, como impedir a emigração, das progressões nas carreiras, etc.

Isto dá um pouco a ideia do enviesamento de certas agendas críticas à actuação do Governo, nomeadamente como a do presidente da República e dos partidos da oposição. E até dos programas e comentadores televisivos que nem pegaram nestes temas para comentar o programa. Veja-se a entrevista de hoje no Público ao secretário de Estado Pedro Nuno Santos e procure-se a importância que foi dado ao tema, mesmo estando a assistir-se na comunicação social a mais uma vaga de despedimentos - Cofina e Impresa (Visão, Expresso, eventualmente SIC).

Mas depois, as respostas dadas pelo governo demonstram precisamente que esse dossier está longe das atenções oficiais e que foi adiado para 2019. "Não estava nos nossos planos mexer aí", é o pensamento do Governo.

R: Em matéria laboral, há muita coisa ainda para fazer, não tem de ser feito tudo agora, nesta legislatura. Há muito para fazer na negociação colectiva...
P: Nas indemnizações por despedimento...
R: Não vou dizer nada em concreto porque iria estar aqui a abrir um tópico de discussão para o qual não há interesse. Agora a precariedade é importante para este Governo, começámos no Estado e esse combate continua no privado. Isto preocupa-nos. Na matéria laboral há diferenças, estamos a trabalhar sobre elas,
Para tudo, o primeiro-ministro respondeu com o desajustamento existente entre a oferta e a procura de emprego de que se queixam os empresários, com a necessidade urgente de mais formação profissional - em linha com os fundos comunitários que aí vêm... -, com o estafado chavão de que vamos ter de ter mais profissões ao longo da nossa vida activa, até com a defesa da educação em programação digital nas nossas escolas. O ministro do Trabalho, com respostas mais consistentes e ideias mais estruturadas sobre o emprego, foi tentando responder na ausência de uma estratégia. Mas até respondeu à questão "Sou demasiado velha para ter emprego e demasiado nova para me reformar, tenho formação e não me dão trabalho", aconselhando que não se desista, que aposta na formação, e dizendo que a falta de natalidade tem feito com que o escalão etário com mais de 45 anos esteja a crescer no emprego criado, o que é visto como um indicador de que as empresas estão de novo a contratar pessoal experiente.

Ficou, pois, patente a ausência de respostas do governo para esta realidade, além de tiradas gerais, ideias importadas internacionalmente, do pouco pensamento próprio sobre o que se deveria fazer de mais eficaz.

E, no entanto, esta é a área essencial na vida dos portugueses e que urge atacar.

sábado, 25 de novembro de 2017

Os números grandes e os números pequenos

O presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), António Saraiva, disse à saída da reunião de ontem da Comissão Permanente da Concertação Social (CPCS) que as empresas têm de ser aliviadas dos esforços de tesouraria que representam o pagamento para os fundos de Compensação do Trabalho (FCT) e Fundo de Garantia de Compensação do Trabalho (FGCT).

Para quem não sabe, esses fundos foram criados em 2013, para prevenir situações em que os trabalhadores, com contratos posteriores a Outubro de 2013, eram despedidos e, por qualquer razão, não recebiam indemnização. Por cada contrato firmado, as empresas passaram a descontar 1% dos salários pagos, que contribuem para pagar até metade das indemnizações devidas. Caso os trabalhadores rescindam por sua vontade, os pagamentos feitos retornam às empresas respectivas. Cerca de 92,5% desse 1% vai para o FCT e os restantes 7,5% de 1% para o FGCT. 

Ora, as declarações de António Saraiva não são uma novidade. Já anteriormente ele dissera numa entrevista que os fundos estavam sobrecapitalizados - com cerca de 200 milhões de euros, dos quais se utilizara apenas cerca de 40 milhões. Para a CIP custava, pois, que houvesse depósitos mensais de 7 milhões de euros que, a ficar nas empresas, poderiam melhorar a sua situação de tesouraria...
"Estamos numa fase em que, felizmente, estamos a empregar e não a desempregar. Um fundo para aquilo que se destinava não precisa de estar tão fortemente capitalizado e é preciso encontrar uma forma de aliviar as empresas que estão carrear mensalmente para esse fundo 7 milhões de euros por mês"
Ontem na reunião da CPCS este tema foi novamente abordado sob diversas formas: menos descontos para as empresas, menores responsabilidades, menos transferências, menos contas bancárias, etc., etc.

Ora, vamos por partes:

1) Segundo os dados do próprio FCT referentes a Setembro passado, os descontos feitos por cada empresa nesse mês foram, em média, de 46,93 euros mensais. E por cada trabalhador, foi depositado em média 6,29 euros mensais. Isto porque houve 159.868 empresas a fazer descontos por conta de  1.193.052 contratos. É de duvidar, pois, que individualmente cada empresa possa estar em sofrimento por pagar mensal estas quantias... 

2) Mais: por estranho que pareça, o ano de 2017 - em plena retoma económica - foi aquele em que se pagou um maior volume de indemnizações. Cerca de 40% do valor das indemnizações pagas nos últimos 4 anos! Este facto revela que, apesar da retoma económica, se verifica o uso abusivo - e ilegal - de contratos de curta duração muitas vezes sendo renovados com o mesmo trabalhador, ou com outro trabalhador para o mesmo posto de trabalho, mantendo-se o trabalhador numa situação de precariedade. Essa elevada rotação é precisamente uma das coisas que se extrai dos números dos fundos. Veja-se aqui
   
3) Aqueles risíveis valores individuais de desconto são a consequência de - apesar da retoma económica - se pagar tão baixos salários desde que se iniciou a retoma económica em 2013. Caso se faça as contas sobre qual o salário médio praticado nesses novos contratos de trabalho, basta apenas dividir os 6,29 euros por 1%. Resultado: um valor que ficará ao redor dos 15 a 20% acima do salário mínimo nacional: 629 euros. Mesmo que os 6,29 euros se refiram ao financiamento apenas do FCT, isso representaria um salário de 680 euros mensais ilíquidos (6,29 euros / (0,925 x 0,01).


Voltemos, pois, às palavras de Saraiva.

Se são essas quantias que levarão as empresas a necessitar de alívios no esforço de tesouraria, é porque estão verdadeiramente mal. Na verdade, Saraiva apenas joga na negociação com os números grandes, esperando que ninguém se lembre dos pequenos. Faz parte da negociação. Enfim, é o que há.  

E, quem sabe?, mesmo assim é capaz de conseguir algumas coisas do Governo. Como as polémicas - e escandalosas - compensações pela Segurança Social à subida do SMN...

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Leituras


«A austeridade é um programa de redistribuição da riqueza ao contrário, que passa pela transferência de recursos financeiros do Estado para as empresas, do trabalho para o capital e do sector produtivo para o sector financeiro. E é por isso que, no mesmo texto em que diz que não há dinheiro para tudo, João Miguel Tavares não tem qualquer dificuldade em defender os apoios à banca e não teria seguramente qualquer dificuldade em defender a redução de impostos para as empresas. O problema está, para ele, num governo que diga às pessoas que pode ser diferente. Um governo assim merece toda a ira dos trabalhadores. Porque lhes alimenta esperanças. Mais uma vez, tem razão: é quando a situação alivia e as pessoas sentem que podem reconquistar qualquer coisa que a luta ressurge. A sua receita é óbvia: as coisas nunca devem aliviar. Se a coleira estiver sempre apertada e a trela sempre curta ninguém vai exigir nada. Esta é a paz social que a direita nos propõe: a austeridade eterna em nome de um futuro que será sempre de perda».

Daniel Oliveira, A austeridade eterna como programa político

«Para eles, a desigualdade social é o único mecanismo que pode garantir o crescimento económico, e para existir essa desigualdade é fundamental que as “pessoas certas”, os partidos certos e os grupos sociais certos estejam no poder para manter uma hierarquia que garanta essa desigualdade. E este programa não dá ao “trabalho” uma função criativa e dinâmica na economia, logo na sociedade, e muito menos os dá aos trabalhadores, sejam do sector privado, sejam do sector público. Vivemos anos de uma crise provocada pelos desmandos do sector financeiro, mas cujos custos foram assacados ao “esbanjamento” dos trabalhadores. Os trabalhadores eram os responsáveis por uma sociedade que vivia “acima das suas posses” e teria de ser “ajustada”. É o que hoje ainda pensam: cada euro que vá para salários ou funções sociais é um risco para a “economia”, e quando o “Diabo” vier vai ter de ser tudo, outra vez, posto na ordem»

José Pacheco Pereira, O amor da direita radical pelos trabalhadores do sector privado

«Os quatro OE que o governo PSD-CDS elaborou, entre 2011 e 2015, espelham o que Pedro Passos Coelho e Paulo Portas pensaram ser o melhor para a sociedade portuguesa. Diminuição da carga fiscal sobre as empresas, o capital e os rendimentos financeiros, à custa de um enorme aumento de impostos sobre os trabalhadores por conta de outrém. Ora, a atual solução governativa fez da reversão dessas medidas o seu cimento. O OE de 2018 é claramente mais favorável ao trabalho que ao capital. Contempla um aumento extra de 6 a 10€ para os pensionistas e continua a repor os valores do RSI, o CSI e o Abono de Família. Desaparece o corte de 10% que se aplicava ao Subsídio de Desemprego ao fim de 6 meses. Acaba com os cortes nas horas extraordinárias dos funcionários públicos e as progressões nas carreiras serão totalmente descongeladas em 2018 e 2019. Em contrapartida, vai buscar dinheiro a bens importados ou prejudiciais à saúde, mantém a taxa de energia sobre a Galp, REN e EDP. Continuam as contribuições extraordinárias da banca, energia e farmacêuticas. E pode aumentar a derrama para empresas com lucros acima dos 35 milhões de euros. Por tudo isto, este é um orçamento de esquerda»

Nicolau Santos, OE 2018: desta vez ganham os trabalhadores e perdem as empresas

«Ao contrário daquilo que foram dizendo durante anos, é possível viver melhor em Portugal. Quando nós, neste orçamento, aumentamos as pensões, nós não estamos a ser eleitoralistas, nós não estamos a dar nada a ninguém. Nós estamos a respeitar quem trabalhou uma vida inteira e merece ter uma reforma com dignidade. Quando nós neste orçamento baixamos os impostos, não para os rendimentos do capital, mas para os trabalhadores da classe média e da classe média baixa, nós não estamos a ser eleitoralistas, nós estamos a respeitar quem trabalha e ganha pouco em Portugal e merece de todos nós respeito e um esforço orçamental importante. Quando nós descongelamos as carreiras, não estamos a ser eleitoralistas nem a dar nada a ninguém. Estamos a respeitar, a respeitar quem trabalha todos os dias nos hospitais deste país, nas escolas deste país, nas ruas deste país. Estamos a respeitar os trabalhadores do Estado, estamos a respeitar o contrato que o Estado tem com os seus trabalhadores»

Pedro Nuno Santos (intervenção no Debate na Especialidade do OE para 2018)

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Cem anos que abalaram o mundo

O centenário da Revolução Russa serve de ocasião para o CES promover uma reflexão alargada sobre os caminhos emancipatórios que atravessaram o mundo no século XX e sobre as suas heranças, legados e limites. Enquanto lugar-símbolo das esperanças e dos impasses de um novo modelo socialista, 1917 constitui uma oportunidade analítica para pensar experiências e projetos que, na sua esteira e fora dela, foram construindo trajetórias alternativas ao capitalismo, ao colonialismo e ao patriarcado. Num tempo em que as hipóteses emancipatórias parecem pulverizadas, este encontro internacional procurará refletir criticamente sobre as mudanças ocorridas ao longo do século XX e sobre o lugar e a natureza dos imaginários de transformação social e libertação nos dias de hoje.

O programa do colóquio, que tem lugar amanhã e depois na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, está disponível aqui. A entrada é livre.

Limites

António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa declararam anteontem, cada um à sua maneira, que uma parte importante do assimétrico ajustamento dos anos de crise constitui uma derrota irreversível dos trabalhadores do sector público. Suspeitamos, dado o bloqueio governamental à alteração da regressiva legislação laboral do tempo da troika, que as derrotas dos restantes trabalhadores do sector privado no tempo da troika são também consideradas irreversíveis. Nesta área, está tudo muito ligado, por muito que a sabedoria convencional procure dividir os trabalhadores. É por estas e por outras sintomáticas reacções que é necessário continuar a aumentar a pressão social e negocial, com vista à mudança da correlação de forças e das políticas.

Por coincidência, anteontem ficámos a saber que este governo já mobilizou cerca de 9 mil milhões de euros em apoio à banca (podendo ir até aos 20 mil milhões, segundo Ricardo Cabral, mas quem é que está a contar?). Há sempre dinheiro para aquilo que é prioritário. A mim nunca me apanharão a dizer que a banca não deve ser “estabilizada” com dinheiros públicos. A banca é demasiado importante para ser deixada aos humores dos mercados e à predação de banqueiros sem escrúpulos e com demasiada margem de manobra política.

O que deve merecer revolta é a actual duplicidade, já que sobre a banca não existe o mesmo discurso vulgar do não há dinheiro “para tudo”. E o verdadeiro problema na banca, já agora, é o princípio europeu, aceite por este governo, do pagamos, mas não mandamos. No fim, pagamos para ficar com um sistema bancário com maior controlo estrangeiro, da banca espanhola a fundos predadores, e com uma CGD obrigada ainda mais a comportar-se como se fosse um banco privado. Pagamos para ficar com um sistema mais dependente e vulnerável.

E, claro, as futuras crises de um sistema por reformar em profundidade, com maior controlo público e mais desconexão financeira nacional, serão outros tantos pretextos para as elites do poder virem dizer ao país: lamentamos, mas não há dinheiro, nem direitos garantidos para quem vive do seu trabalho. Neste arranjo monetário e financeiro, as variáveis de ajustamento são brutalmente claras. E são também claros os limites estruturais desta solução governativa.

Duas notas sobre Saraiva

Ainda há dias o presidente da CIP, António Saraiva, teve umas declarações duplamente polémicas.

Disse ele:
Se compararmos o segundo trimestre de 2016 com o segundo trimestre de 2017, a população empregada por contrato, os contratos sem termo representaram 90%, com termo 10%. Acho que isto diz tudo. Se esta é a realidade, se constatamos que o emprego está a ser criado nestas séries que lhe referi são contratos sem termo, por que razão (...) se quer discriminar as empresas desta forma em sede de TSU que estão já hoje a contratar sem termo?
A primeira ideia polémica é a de uma contradição. Se, de facto, a esmagadora maioria do emprego criado já está a ser contratado sem termo, então a esmagadora maioria das empresas não será discriminada pela alterações à lei. Mas o problema é que os números não são bem esses. E revelam a real preocupação de Saraiva.

E entramos na segunda ideia polémica. De facto, olhando para as estimativas do INE no Inquérito ao Emprego, naquele período foram criados 155,7 mil postos de trabalho, dos quais 141,7 mil a contrato sem termo. Mas a realidade vai bem mais longe do que isso.

Os números do INE representam uma criação líquida, ou seja, é o resultado da criação e destruição de emprego num dado período. E por isso, não retratam o que se passa nessa criação e destruição de empregos.

Mas há dados que permitem olhar para essa "demografia" dos contratos - são os dados exaustivos (não estimativas) dos fundos de Compensação no Trabalho e de Garantia de Compensação do Trabalho, em vigor desde finais de 2013 - ou seja coincidindo com a retoma do emprego - para pagar as indemnizações por rescisão de contratos (trabalhados pelo Observatório sobre Crises e Alternativas).

O que se verifica? Que desde a retoma do emprego foram assinados 3,3 milhões de contratos e cessados quase 2,2 milhões de contratos. Desse confronto, concluia-se que cerca de 1,1 milhões dos novos contratos criados desde novembro de 2017 estavam vigentes a 15/5/2017.

Mas como é que podiam estar vigentes 1,1 milhões de contratos se a criação líquida de emprego está muito abaixo disso? A única explicação é a de que a cessação de contratos está já a afectar os "velhos" contratos permanentes que se transformaram entretanto em "novos" contratos. O que permite igualmente concluir que tanto os "velhos" como os "novos" contratos permanentes são cada vez menos isso - permanentes.

E essa realidade depois acaba por ter bem outras características do que os números do INE não parecem mostrar. Em Maio de 2017, apenas 33% dos contratos vigentes desde Novembro de 2013 eram permanentes; os contratos não permanentes representavam 67% dos contratos vigentes em Maio de 2017 e assumiam uma miríade de formas: contratos a prazo (36,4%), a prazo incerto (11,6%), a prazo a tempo parcial (6,6%), a prazo incerto temporário (4,3%), permanentes a tempo parcial (3,1%) e uma vasta panóplia de outras formas (4,8%).

A consequência prática dessa elevada rotação contratual é, evidentemente, as baixas remunerações.
A remuneração média dos novos contratos foi de 524 euros em 2014, de 583 euros em 2015, de 623 euros em 2016 e de 660 euros nos primeiros meses de 2017. Ou seja, muito próximas do valor do Salário Mínimo.

Pior: com se pode ler na publicação do Observatório, a remuneração dos contratos permanentes está a baixar e a aproximar-se cada vez mais dos contratos não permanentes.

Talvez fosse de acrescentar uma nota de rodapé: é a de que, entre portas, nas reuniões da concertação social, as confederações patronais sempre frisaram que as relações laborais - por contraponto aos custos de contexto - nunca foram o principal obstáculo a um desenvolvimento mais sustentável, pensamentos esses que foram inclusivamente transmitidos até por António Saraiva.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Algo se vai passar na Saúde

Sem querer abusar do uso de sondagens, dir-se-ia que os partidos que apoiam o governo representam três quintos das intenções de voto, contra dois quintos da Direita.

E, apesar disso, o governo decidiu patrocinar um diálogo com a Direita para rever a Lei de Bases da Saúde, dando-lhe um destaque e eficácia que nem o sector privado tem no terreno, nem a Constituição da República Portuguesa lhe concede abertamente.

Após uma proposta de clarificação da Lei de Bases da Saúde, apresentada pelo dirigente do Bloco de Esquerda João Semedo e pelo fundador do Serviço Nacional de Saúde (SNS) António Arnaut, no sentido de blindar o SNS da predação privada - que tem penetrado graças a décadas de suborçamentação e desarticulação do SNS e até por uma ADSE pública que financia a actividade privada - o governo decidiu equilibrar essa iniciativa dando uma mão precisamente ao sector privado.

"Convidámos a doutora Maria de Belém Roseira para que constitua uma comissão, nos critérios que ela própria definirá, e que possa acolher todas as sensibilidades da sociedade portuguesa", anunciou o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, no Parlamento. Ora, Maria de Belém Roseira é muito mais do que uma polémica ex-ministra socialista da Saúde - Maria de Belém Roseira é actualmente consultora do grupo privado Luz Saúde (sucedânea da Espírito Santo Saúde) e desde 2006, além de integrar o Conselho Consultivo da Luz Saúde, foi consultora da Euromedics e Merck, duas empresas com interesses diretos no setor da Saúde.

Objectivo: Conseguir "consenso alargado" tendo em vista um "pacto orçamental" - o que quer que seja que isto queira dizer... - que permita preparar um plano para a saúde para "mais do que uma legislatura".

Ou seja, encontrar um meio termo, uma bissetriz, entre a defesa do sector público (supostamente no Governo e nos partidos que o apoiam) e as pretensões privadas. O problema de uma estratégia como essa é que, quando se começa a regatear tapetes, acaba-se por comprar algum. E a dúvida será por que preço.

Claro que o presidente da República, no seu objectivo político - nunca declarado na campanha eleitoral - de conseguir um bloco político central, já aplaudiu a iniciativa e alargou-a, contribuindo para forçar essa porta que deveria estar bem clarificada em prol da defesa do SNS, tal como prevê a Constituição que Marcelo Rebelo de Sousa prometeu fazer cumprir. Não as suas ideias: a Constituição.

"Desde que assumi funções tenho dito que, embora haja um pacto implícito, não declarado, em que os vários partidos aceitam a realidade da saúde em muitos aspetos sem os confrontos ideológicos de outros tempos, era desejável haver uma convergência explícita, expressa, assumida”. “Como disse aqui, agora mesmo, porventura não é fácil, não tem sido fácil haver este tipo de compromissos, mas não é razão para eu não deixar de o defender”, sublinhou.

O mundo é mais pequeno do que parece (e está a mudar)



«Como podemos "ver" a atmosfera? A resposta está no vento. Partículas minúsculas, conhecidas como "aerossóis", são transportadas pelo ar ao redor da Terra. Esta visualização utiliza informação dos satélites da NASA e combina-a com conhecimentos de Física e Meteorologia para monitorizar três aerossóis: fumo, sal marinho e areias. O que permite perceber quanto o Ofélia foi invulgar. De facto, mantendo o seu estado de tempestade tropical mais a norte do que qualquer sistema no Atlântico, viajou para leste, arrastando consigo poeira do Sahara e alimentando os grandes incêndios em Portugal, carregando depois o fumo e a poeira até à Irlanda e ao Reino Unido. Uma interação de aerossóis muito diferente das outras tempestades da época».

Este é o vídeo, e texto associado, do Gabinete de Modelos e Assimilação Global (GMAO) no Goddard Space Flight Center (da NASA), que tem sido bastante difundido entre nós nos últimos dias e que demonstra, com particular clareza, a excecionalidade das condições em que ocorreram os incêndios do passado mês de outubro e os sinais, cada vez mais evidentes, das alterações climáticas em curso. A modelização, que compreende o período entre 1 de agosto e 1 de novembro de 2017 (canto inferior esquerdo na imagem), mostra não só o que se passou em Portugal a 15 de outubro mas também a «facilidade» com que o fumo dos incêndios que assolaram os EUA neste verão se deslocou para a Europa, atravessando o Atlântico. O mundo, por vezes, é bem mais pequeno do que parece. E está a mudar.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

As notícias falsas connosco


Aparentemente, a Comissão Europeia (CE) anda preocupada com a disseminação de notícias falsas. É caso para dizer que a CE anda preocupada consigo própria, já que tem sido uma potente disseminadora de mentiras. Afinal de contas, como já aqui assinalei, o actual Presidente da Comissão Europeia e antigo líder político de um pequeno país, o Luxemburgo, transformado num grande paraíso fiscal, disse um dia que a mentira é necessária quando as coisas ficam difíceis. A nova notícia falsa é que andam preocupados com um proclamado pilar social da UE.

Esta é a mesma instituição que tem passado os últimos anos, décadas mesmo, a promover a austeridade, o ataque aos direitos laborais ou o esfarelamento da segurança social pública. Foi de resto para isso que foi criado esse grande ataque aos modelos sociais nacionais chamado Euro, proibindo uma política económica orientada para o pleno emprego e impondo os ajustamentos sobre o salário directo e indirecto. Esta é, não se esqueçam, a maior e mais eficaz máquina supranacional de liberalização económica jamais criada. Só mesmo a crescentemente irrelevante social-democracia europeia e a sua decadente burocracia sindical de Bruxelas para apostar em mais esta notícia falsa.

No fundo, estão bem para Macron, a reveladora esperança do europeísmo realmente existente, apostado no reforço da integração, ao mesmo tempo que, em coerência, faz reformas fiscais claramente para beneficiar os 1% mais ricos (que captarão 44% do regressivo abaixamento previsto de impostos, segundo o Financial Times) e ataca os direitos laborais dos de baixo.

Felizmente, creio que a verdade sobre a lógica da integração é cada vez mais clara. Talvez por isto seja de esperar cada vez mais mentiras vindas de Bruxelas e dos seus aparelhos ideológicos em todos os países da UE.

Lançamento: «Intervenção Comunitária»

«Ao longo do tempo, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa testemunhou os diferentes momentos de crescimento da capital, muitas vezes marcados por desigualdades, tanto sociais como urbanísticas. A posição institucional que ocupa na cidade conferiu-lhe, simultaneamente, grandes responsabilidades nos processos de inclusão e de construção das comunidades, sobretudo nos bairros mais desfavorecidos. São essas experiências de Desenvolvimento Comunitário dos técnicos da Santa Casa na Lisboa da segunda metade do século XX e início do XXI que este livro sistematiza, traçando um percurso de aprendizagens e observações que, mais do que um resumo do passado, constituem propostas de modelos e abordagens para o futuro

O livro «Intervenção Comunitária - Conhecimentos e práticas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa», coordenado por Maria Natália Nunes e que tem também como autores Ana Maria Viana, Nuno Serra e Rogério Roque Amaro, será apresentado na próxima terça-feira, 21 de novembro, a partir das 18h30, no ISCTE (Sala B2.02, no segundo piso do Edifício II). A apresentação estará a cargo de Jordi Estivill, economista, sociólogo e professor universitário jubilado (Universidade de Barcelona). Estão todos convidados, apareçam.

domingo, 19 de novembro de 2017

Limites de uma relação egoísta

Fonte: Marktest, valor de novembro Eurosondagem (Expresso)
O PS está com sondagens que não lhe dão, presentemente, uma maioria absoluta. E muito menos no futuro.

Convém lembrar que o PSD ainda não se clarificou, nem Marcelo Rebelo de Sousa está na sua plenitude de ataque a um governo de esquerda, apesar de já ter dado um ar da sua graça na questão dos incêndios que, aliás, marcaram o fim de um governo em apoteose. (Para quem acha que o conhece, leia-se este post).

Tudo isto aponta para que o PS esteja forçado a escolher com quem quer governar em 2019. Nada fazer não é uma opção, porque o tempo não joga a favor do PS.

Mas em que ponto é que está o PS?

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Há mais vida para além do euro


Aqui vai mais um vídeo da TF media, um canal de rádio e TV independente dos grupos económicos, através do YouTube e ainda em fase de ensaios.
Evidentemente, defendo que a saída do euro é indispensável, embora não seja suficiente, para que o país se desenvolva. Ficar no euro é a morte lenta e a redução do país à condição de protectorado da Alemanha. Como se tem visto recentemente com a exiguidade do orçamento para áreas cruciais do Estado social e com o desastre que significa a subcontratação de serviços públicos ao sector privado onde ninguém controla a qualidade do que é fornecido. Um debate que é tabu nos media de grande audiência.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Eles querem comer mesmo tudo

É por isso que o Orçamento do Estado para 2018 nos deve merecer censura, porque, uma vez mais, as suas medidas dirigem-se não para a vanguarda dinâmica de Portugal, mas principalmente para a sua face mais conservadora e estática. O país muda, a política não. O país olha para a frente, e o Governo reproduz estratégias do passado. O Orçamento de 2018 é anti-web, anti-inovação e antimodernidade, nada faz por criar as condições que a Web Summit exalta. (...) Num ano de folga, em que em cima da mesa está a aposta na Web ou no Panteão, o Governo apostou no segundo.
Manuel de Carvalho, O país na Web do Panteão, Público.

O jornalista do Público confirma por palavras uma das capas mais ideológicas deste jornal. Só que onde antes estava um porquinho-mealheiro, coloquem agora um pobre empreendedor perseguido pelas estrelas, foices e martelos, os espectros que sintomaticamente atormentam. É neste delírio ideológico que estamos, nem sequer reparando que se há sector que nesta lógica económico-política perversa faria parte do tal país antimoderno, da sua face conservadora, seria o dos jornais. Na realidade, é uma das vítimas da predação efectuada por multinacionais que se escondem por detrás da fraude ideológica do empreendedorismo de garagem num contexto de ameaça de estagnação secular no capitalismo maduro.

A tal vanguarda, conceito perigosamente revolucionário formulado por um Manuel Carvalho regressado da Rússia, quer o quê? A uberização sem fim das relação laborais e uma fiscalidade ainda mais regressiva, em modo Macron na periferia, ou seja, de troika? O desmantelamento da segurança social e dos serviços públicos, substituídos por sorteios de rendimentos básicos incondicionais e outras palhaçadas? E para quê? Para assim criar novas crises de procura, desequilíbrios de poder que não geram incentivos para a inovação decente, mas sim para que os ricos não saibam o que fazer ao dinheiro, a não ser lançá-lo na especulação financeira e imobiliária?

Enfim, toda esta agitação ideológica no final do artigo é por causa de um modesto orçamento, dentro do colete-de-forças europeu e que, portanto, não pode dar resposta a muitos problemas de um país sem instrumentos decentes de política industrial, de crédito ou cambial. Mas que ainda assim permite um aumento ligeiro de rendimentos aos pensionistas, aos funcionários públicos e a outros sectores das classes médias e populares realmente existentes, a continuação da esperança num país menos brutalmente desigual. Imaginem o que esta gente não faria se se fosse ainda mais longe, por um caminho de desenvolvimento soberano e inclusivo?

Finalmente, sublinhemos que se há nesta periferia algumas ilhas de modernidade económica e social, estas estão também nas, foram criadas pelas, instituições, investimentos e apoios públicos em sectores que vão da saúde, à educação, passando pela ciência ou pelas telecomunicações. Não chega, claro.

Permanece vivo


«A demonização e a santificação deviam levar-nos à conclusão de que o evento [Revolução de Outubro de 1917] permanece vivo. É isso que os que a santificam (o PCP, em primeiro e único lugar, o BE, o esquerdismo, menos) e os que a demonizam (a nossa alt-right que nos "observa", e a opinião "central" cada vez mais à direita ou pressionada pela direita) acabam por concluir. Ambos acabam por ter um resultado muito semelhante: o legado da Revolução de Outubro está vivo, continua a ter sentido, justifica um combate ideológico e político, ou em sua defesa ou atacando-o. O mesmo já não se passa com a Revolução Francesa, ou a Comuna de Paris, ou, para sermos mais detalhados, com a Revolução Mexicana ou mesmo a Revolução Chinesa. Sobre essas ninguém quer saber
(...) Considerar que há exploração, mesmo que há exploração implícita na relação capital-trabalho — a tese fundamental de Marx —, ou aceitar que há "luta de classes", sejam quais forem as variantes de "classes" que se envolvem nessa luta, nada tem que ver com o comunismo, não definem "ser comunista" e muito menos "ser leninista", seja em que versão for. Todas estas ideias são anteriores a Lenine e, em parte, mesmo a Marx, e fazem parte de um património que esteve na génese da crítica do socialismo nascente à insuficiência do liberalismo político para defrontar os problemas sociais ligados à pobreza, à exploração do trabalho, à desigualdade social. Elas são hoje partilhadas por todas as variantes de socialismo moderado, de social-democracia, estão presentes na doutrina social da Igreja, e não são alheias mesmo ao conteúdo de movimentos como a democracia-cristã originária.»

José Pacheco Pereira, Os anjos e os demónios que a Revolução de Outubro de 1917 solta no Portugal anacrónico de 2017

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

CDS-PP: Depois dos cortes, a bonança

Em mais um número de puro oportunismo e colossal desfaçatez política, o CDS-PP veio propor o alargamento, ao ensino secundário, do recém criado 3º escalão de Ação Social Escolar (ASE), medida inscrita na proposta orçamental de 2018 e que visa reforçar o acesso a manuais escolares gratuitos até ao 9º ano. Para a deputada Ana Rita Bessa, «incompreensivelmente, o secundário é deixado de fora», devendo portanto o Governo - em vez de adotar medidas de natureza universal (como a gratuitidade dos manuais escolares do 1º ciclo, já em vigor, ou a sua generalização até ao 9º ano, como propõe o PCP) - «dar a quem mais precisa».


Estaria tudo muito certo, não fora a vontade de se saber onde estava o CDS-PP quando Nuno Crato decidiu proceder a cortes na Ação Social Escolar, nomeadamente nos Apoios Socioeconómicos (a rubrica que enquadra, justamente, os manuais escolares), entre 2011 e 2015, ao mesmo tempo que deixava praticamente incólumes as verbas para celebrar Contratos de Associação com escolas privadas. Mais: por onde andaria o CDS-PP quando o mesmo Nuno Crato decide, numa das mais miseráveis e repugnantes medidas aprovadas durante o seu mandato, deixar de comparticipar visitas de estudo dos alunos mais carenciados, devido a «limitações orçamentais»? Será que nessa altura o CDS-PP, ao contrário dos dias que correm, era a favor de «dar a quem menos precisa»?

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Hoje, no ISEG


Quarta sessão do Ciclo de História do Pensamento Económico, promovido pelo Coletivo Economia Plural. Sessão sobre «Keynes e Hayek», dinamizada por Ana Costa. No Auditório 5, a partir das 17h00. Apareçam.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Ser consequente


Como fazem perante qualquer novo abalo, os neoliberais voltam a cerrar fileiras. Contra uma sociedade que redescobre a legitimidade da despesa pública, de o Estado gastar os recursos onde eles mais se justificam (não a salvar bancos ou a satisfazer clientelas e interesses privados), os neoliberais insistem num único ponto: a nova normalidade pode conviver com a situação de excepção. A calamidade tem, na perspectiva neoliberal, de ser reduzida a um acidente puro, tem de ser extirpada de todas as suas causas estruturais e conjunturais (desinvestimentos prolongados, escolhas erradas, etc.), de modo a que possa ser arrumada na categoria de excepção que nunca faz a regra. Tudo é feito para manter inalteradas as regras essenciais de um projecto que abre brechas no confronto com a realidade, com a organização económica e social que se queira orientada para o bem comum. (...) Quando o primeiro-ministro António Costa afirma, em entrevista à TVI a 29 de Outubro último, que «as regras da União Europeia dão um tratamento diferenciado a medidas de natureza excepcional, como são estas», e que estão a ser procurados «mecanismos de apoio que não contabilizam para o défice», parece limitar-se a repetir o discurso de tantos outros protagonistas, nacionais e europeus. Mas vale a pena perceber, no futuro e para lá de respostas «excepcionais» a «catástrofes», até onde António Costa será consequente com a ideia de que «não podemos abandonar o objectivo de ter finanças públicas sãs, mas não podemos, em nome do défice, e em nome de uma obsessão relativamente ao défice, não fazer o que é necessário fazer no apoio às populações, no apoio à economia, no apoio aos territórios e nas reformas que temos de fazer».

Sandra Monteiro, O Estado e as catástrofes normais, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Novembro de 2017.

domingo, 12 de novembro de 2017

sábado, 11 de novembro de 2017

Eles comem tudo


A ideologia da feira de tecnologias de Lisboa, incluindo a patética celebração de péssimas ideias como o Rendimento Básico Incondicional, sinaliza, como já aqui argumentei no ano passado, muito do pior de uma fase do capitalismo onde a inovação com capacidade de incremento de uma produtividade estagnada praticamente não existe, mas existem demasiadas formas de inovação que se destinam a controlar e a alienar, mantendo a redistribuição a fluir de baixo para cima.

A sua cultura está ao nível do projecto ideológico. Este ano parece que não houve o galo da inenarrável Joana Vasconcelos, cuja arte se não existisse tinha de ser inventada para esta época, mas houve um elitista jantar de gala no Panteão Nacional, repito, no Panteão Nacional, e, já se sabe, comer é um acto de cultura. E eles comem tudo. Enfim, tudo se compra e tudo se vende, porque por detrás do aparente igualitarismo da t-shirt e da sapatilha esconde-se uma brutal predação do tempo e do espaço.

António Costa pode justamente classificar o jantar como “absolutamente indigno do respeito devido à memória dos que aí honramos” e proibir festas no Panteão, mas a verdade é que o governo português tem andado a promover e a financiar esta feira de horrores ideológicos. E tem, em conjunto com o governo anterior que permitiu estas pouca-vergonhas nos monumentos, responsabilidades pelo espaço que esta feira literalmente ocupou num dos seus bem reveladores finais. Por falar em respeito, talvez seja aconselhável que António Costa não volte a fazer o que fez no seu discurso nesta feira, diminuindo a sua função a uma promoção do país.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

As alternativas, os Acordos à esquerda e as clientelas



(Vídeo Geringonça)

A direita, PSD e CDS, chegou a este debate com quatro argumentos, alguns deles contraditórios entre si. O primeiro é o argumento das "clientelas", dos "grupos de interesse" que é suposto a "esquerda radical", como gostam de dizer, favorecer. Vamos ver e na realidade os grupos de interesse são os trabalhadores que pagam IRS e vão passar a pagar menos; os pensionistas que vão ter mais pensão; as crianças que vão ter mais abono e apoios sociais. Cai por terra o argumento dos "grupos de interesse" ou das "clientelas".
Há um segundo argumento, que tem variações. Chamemos-lhe o argumento 2.1): "dá com uma mão e tira com a outra". Podemos ir aos números: devolução de IRS em escalões, 230 milhões; sobretaxa, 260 milhões; carreiras da função pública, 211 milhões; Prestação de Inclusão, 79 milhões; aumento extraordinário de pensões, 154 milhões; reforma das carreiras longas, 48 milhões. No total, quase mil milhões de euros que este orçamento devolve aos portugueses, aos trabalhadores, aos funcionários públicos, aos pensionistas, a quem precisa de uma Prestação de Inclusão. E vamos ver o outro lado, onde é que há os tais "aumentos de impostos": imposto sobre o sal, 30 milhões; alterações aos impostos especiais sobre o consumo, 150 milhões. Somam 180 milhões. Ou seja, tudo aquilo que é dado menos aquilo que supostamente é tirado dá um saldo de 800 milhões, diretamente entregues por este Orçamento de Estado às pessoas.
Vamos ao argumento 2.2): o "aumento da receita fiscal". A direita parece não compreender como é que a receita fiscal aumenta. Acontece que quando mais pessoas têm trabalho, mais pessoas pagam impostos. Quando mais pessoas têm trabalho, mais pessoas pagam contribuições à Segurança Social, quando mais pessoas têm rendimento, mais pessoas consomem. Não é preciso as taxas aumentarem para a receita fiscal aumentar. Esse é o fundo da alteração económica que o PSD e o CDS parecem não querer aceitar nem compreender.
Argumento 2.3), do "corte nos serviços públicos": acontece que não há cortes nos serviços públicos, nem orçamentados nem executados. E, portanto, também esse argumento facilmente cai por terra. Poder-se-á dizer que não aumentam tanto como era necessário. Certamente. Mas não há cortes.
Chegamos ao terceiro argumento: "não há reformas estruturais". E perguntamos quais são as reformas estruturais. A eliminação de feriados é uma reforma estrutural? Os cortes nos salários, que o governo PSD e CDS diziam em Portugal serem temporários, mas que em Bruxelas apresentaram como permanentes (para serem incluídos no défice estrutural), é uma reforma estrutural? A mobilidade na função pública, para despedir funcionários públicos, foi uma reforma estrutural do PSD e CDS? Portanto também não temos o argumento das reformas estruturais, porque as reformas estruturais que os senhores deputados querem certamente não estarão neste Orçamento de Estado. Porque a ideia que nós temos de reformas estruturais está nos antípodas daquilo que os senhores querem fazer ao país e que é empobrecê-lo estruturalmente. E nós queremos o contrário, que é dar mais rendimentos às pessoas.
Chegamos ao quarto argumento. Quando tudo o resto falha, quando não há mais argumentos, o argumento de fim de linha: "o que os senhores estão a fazer é fácil, nós até já tínhamos começado esse caminho. Nós só não estamos a fazer o mesmo que os senhores estão a fazer porque não nos deixaram". E portanto, depois de criticar tudo e de perceber que não é possível criticar nada, chegam ao fundo a dizer que queriam fazer o mesmo mas não podem. Mas também isso é relativamente fácil de refutar, porque o governo PSD e CDS deixou-nos um documento onde felizmente escrevem, para memória, aquilo que pensavam fazer caso estivessem no governo. E o que pensavam fazer era cortar pensões, não era aumentar pensões. O que pensavam fazer era manter cortes nos apoios sociais, não era aumentar o abono, não era aumentar o RSI, não era aumentar o CSI. O que pensavam fazer era aumentar impostos, não era reduzir impostos.
Não há, portanto, argumentos de direita. E não há argumentos de direita porque a única crítica que se pode fazer a este orçamento, e a este governo, é uma crítica que o passado da direita não deixa que a direita faça de uma forma credível: é a crítica de que não vai tão longe quanto era necessário. A crítica que há para fazer a este governo é que devia proteger mais os trabalhadores e reverter as medidas da direita no Código Laboral. É que devia investir mais nos serviços públicos para compensar os cortes da direita. E essa é uma critica que, dê a direita as voltas que der, nunca vai poder fazer a este orçamento.

Mariana Mortágua (intervenção no Debate na Generalidade do OE para 2018)

Atirar barro à muralha


Deixo-vos o meu artigo no Público de hoje, aproveitando para fazer ligações aos trabalhos aí referidos:

A propósito do recente congresso da organização partidária do sistema mundial com mais membros, o Partido Comunista Chinês (PCC), Jorge Almeida Fernandes garantiu-nos, no Público, que o pensamento de Confúcio “ocupou o vazio deixado pelo marxismo”, mas na página seguinte deste jornal Carlos Gaspar asseverava que “Xi Xiping não tem dúvidas em defender a identidade marxista do PCC” (Público, 24/10/2017). Não é só a sabedoria convencional ocidental a atirar barro à muralha que é a China. No próprio marxismo ocidental, com muito investimento intelectual e político na análise das dinâmicas das formações sociais, as divergências são igualmente significativas.

Por exemplo, o geógrafo David Harvey, um dos mais influentes historiadores do neoliberalismo, considera que as reformas iniciadas por Deng Xiaoping no final dos anos setenta originaram um “neoliberalismo com características chinesas”, ou seja, um Estado autoritário ao serviço de um processo de acumulação capitalista, inserindo firmemente os trabalhadores chineses nos circuitos globais de exploração. Harvey coloca este dirigente chinês ao lado de Thatcher ou de Reagan, todos de alguma forma politicamente responsáveis pelo desencadear da grande e perversa transformação do nosso tempo numa economia política internacional de onde desaparecia o socialismo.

Pelo contrário, Domenico Losurdo leva a sério o socialismo com características chinesas propagado pelo regime. Sem deixar de assinalar a questões do crescimento significativo das desigualdades sociais, as múltiplas questões ambientais ou o problema da corrupção, Losurdo faz o paralelismo entre Deng e Lenine no momento da Nova Política Económica (NEP) dos anos vinte, ambos reconhecendo o papel instrumental dos mercados no processo de desenvolvimento de uma base material mínima para o socialismo, num quadro que não pode deixar de ter elementos de capitalismo de Estado. Retomando algumas das pistas de economista mista da experiência comunista antes e imediatamente depois da fundação da República Popular, Deng teria sido o iniciador de reformas económicas pragmáticas, em contraste com as prescrições neoliberais do Consenso de Washington. Recusando romper simbolicamente com uma experiência maoista, que de resto não pode ser reduzida aos desastres do Grande Salto em Frente e da Revolução Cultural, Deng beneficiou do seu legado positivo, em termos de uma população relativamente saudável e educada, quando comparada com países como a Índia. Mantendo o controlo político nas mãos do PCC, a China pós-maoista teria também assim evitado a “katastroika” russa do final dos anos oitenta em diante, tornando-se um exemplo de desenvolvimento das forças produtivas, num contexto de satisfação das necessidades básicas da grande massa, de redução da pobreza material sem precedentes históricos e de convergência: a China é de longe a principal responsável pela redução recente das desigualdades internacionais, considerada a prazo o mais consequente freio e contrapeso ao imperialismo ocidental num mundo desta forma a caminho de ser genuinamente multipolar.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Para quê?

Através do Público, confirmámos que também este governo continua a promover o parasitário capitalismo da doença que destrói o Serviço Nacional de Saúde, através de engenharias neoliberais de separação entre financiamento e provisão: “o Conselho de Ministros aprovou também a despesa inerente à celebração do contrato de gestão para a concepção, o projecto, a construção, o financiamento, a conservação e a manutenção do Hospital de Lisboa Oriental, em regime de parceria público-privada.”

O Estado a dar músculo ao poder capitalista é mesmo uma das definições possíveis de neoliberalismo, que só se torna hegemónico quando quem tinha a obrigação de o superar se limita a assegurar a sua reprodução num dos sistemas de provisão mais importantes. Este assalto, já com vários anos, pode e deve ser parado, como bem argumentam duas referências técnico-políticas e ético-políticas desta e de outras áreas fundamentais para uma sociedade decente, António Arnaut e João Semedo. A sua oportuna proposta de uma nova lei de bases de saúde, em defesa do sistema público de provisão, deve merecer a atenção de toda a esquerda e até de uma certa direita com consciência social, porque se destina, entre outras coisas, a bloquear a transferência de recursos do SNS para o perverso capitalismo da doença. Antes que seja tarde demais.

Salvar este sucesso da democracia, como argumenta Arnaut, deveria ser uma obrigação deste governo: “Entre o SNS e o PS, estou pelo SNS”, afiança. Sinceramente, gostaria que não tivesse de fazer esta escolha. É preciso uma ampla maioria para defender o SNS. Se não, é mesmo caso para perguntar: para que serve este governo?

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Corridas para o fundo


Depois de a Síria ter anunciado a sua adesão ao Acordo de Paris, os EUA de Donald Trump passam a ser o único país a ficar fora do compromisso para conter o aquecimento global. Para os defensores da concorrência sem regras nem limites, este isolamento poderá ser encarado como uma vantagem competitiva. É a lógica da corrida para o fundo. A mesma lógica em que assenta, num outro plano, a competitividade através de baixos salários, da desregulação das relações laborais, da destruição do Estado Social e do desprezo pelas pessoas e pela sua dignidade e bem-estar.

Hoje: «Pensadores da Economia» e debate sobre «Educação e Ciência»


Dois eventos à escolha nesta quarta-feira, 8 de novembro. Apareçam.

No âmbito do ciclo Pensar os Pensadores da Economia, promovido pelo Coletivo Economia Sem Muros e pela Cultra, Eugénia Pires orienta uma reflexão sobre John Maynard Keynes. É a partir das 18h00, na Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (Sala 117).

Promovido pelo Le Monde Diplomatique - edição portuguesa e pelo Observatório sobre Crises e Alternativas - CES, um debate sobre Educação e a Ciência no pós-troika, com a participação de António Avelãs (professor e dirigente do SPGL), Filipa Vala (investigadora), João Pedro Ferreira (economista e investigador) e Manuel Carvalho da Silva (sociólogo), com moderação de Nuno Teles. É a partir das 18h30, no CES Lisboa (Picoas Plaza).

Leituras: Revista Crítica - Económica e Social (n.º 13)


«Esta edição da revista Crítica é, excepcionalmente, dedicada a um único tema: a estratégia orçamental de curto e médio prazo. Um conjunto de economistas publicou recentemente um estudo propondo alternativas à proposta governamental de programa de estabilidade, demonstrando que seria possível um caminho distinto com menos constrangimentos orçamentais e com uma política expansiva ligeiramente mais acentuada. Retomamos o debate sobre essa questão, tendo pedido a diversos outros economistas (Alexandre Abreu, Eugénia Pires, Eugénio Rosa, João Rodrigues, Mário Bairrada, Nuno Teles, Ricardo Paes Mamede) que comentassem livremente o estudo e, depois, a um dos autores (Ricardo Cabral) que escrevesse uma réplica. O debate fica portanto exposto e convida os nossos leitores e leitoras».

Do editoral do nº 13 da revista Crítica - Económica e Social, que está disponível aqui, para download gratuito. Boas leituras.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Os dez dias que ainda abalam muita gente

Decreto-lei 27.003 de 1936. 

Para a admissão a concurso, nomeação efectiva ou interina, assalariamento, recondução, promoção ou acesso, comissão de serviço, concessão de diuturnidades e transferência voluntária, em relação aos lugares do Estado e serviços autónomos, bem como dos corpos e corporações administrativos, escolas que preparam exclusivamente para o funcionalismo, ao estágio pedagógico de qualquer espécie ou grau de ensino, a Exames de Estado e a alvará ou diploma de ensino particular, bem como dos leitores de português no estrangeiro, bolseiros e equiparados, e dos representantes oficiais de Portugal em quaisquer missões, congressos ou competições internacionais, os governadores, vice-governadores e membros dos conselhos de administração e fiscal dos bancos emissores, bem como das empresas concessionárias dos serviços públicos é exigido o seguinte documento, com assinatura reconhecida:
'Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933 com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas.'
A julgar pela alegria com que saúdam a suposta caducidade da primeira frase do Manifesto do Partido Comunista - "um espectro ameaça a Europa" - ; a julgar pela ansiedade com que se apressam a repetir muitas vezes que esse espectro se transformou em guarda de um Gulag e numa coutada de caça para meia dúzia de pessoas (esta parte omitida porque cai mal...); a julgar pelo tom alto da voz com que a direita profere no Parlamento as palavras esquerdas radicais (versão actual do conceito de subversivas); a julgar pelo ânimo com que falam mal de governos que visam endireitar um pouco as coisas e aplaudem chantagens externas que faça esses governos ou países voltar ao redil abandonado; a julgar pelo aplauso às medidas securitárias de Macron que sacralizou o estado de excepção, à pala de um terrorismo nunca combatido nas raízes e com fortes impressões digitais ocidentais numa guerra permanente; a julgar pela forma como desejam que os salários desçam para que a parte do capital se mantenha intacta em nome da manutenção dos empregos mal pagos; a julgar pela militância com que defendem que o Estado não dê mais recursos aos preguiçosos do RSI, não baixe o IRS, mas forneça subsídios/PPP à iniciativa privada que é aquela que cria emprego mal pago ou que faça outsourcings das suas funções públicas; a julgar pela fúria com que querem acabar com a banca pública em nome de um investimento estrangeiro bem-aventurado ou que tentam apoderar-se da gestão das receitas fiscais e das contribuições para a Segurança Social em nome de um empreendorismo privado mais eficaz, mas que passados anos acaba em inquéritos do Ministério Público que, por milagre, acabam por prescrever ou ser arquivados; a julgar pela raiva com que gritam contra um imposto sucessório (até tributam a morte!) ou sobre grandes fortunas (estão a tirar o pão da boca de todos os portugueses); a julgar pela forma como alegremente saúdam o repatriamento de capitais fraudulentamente saídos do país contra uma taxa 7,5% de imposto, que nem sujeito a englobamento foi, e ficou livre de processos judiciais por fraude fiscal; a julgar pela animosidade com que ouvem as propostas de acabar com os paraísos fiscais já!" e a hipocrisia com que dizem ah mas só se forem todos ao mesmo tempo;

etc., etc., etc...

... parece que ainda há muita gente que dorme mal a pensar o que acontecerá se, algum dia, esse espetro voltar a acordar. O que - aqui entre nós, que ninguém nos ouve - é precisamente uma das formas de sentir que esse espectro vive nessas almas atormentadas e que ainda os abala durante o dia, a ponto de estarem sempre a pensar como lhe passar a perna.

No fundo, ele está todos os dias convosco até que desapareça a desigualdade.

Quero o Estado de volta


Quando estive no Reino Unido, em 2009 e 2010, era notícia o medo que muita gente tinha de recorrer aos hospitais, tal o risco de se morrer por infecção de bactérias resistentes. Na altura, a razão de ser foi bem identificada. Limpeza deficiente porque era um serviço subcontratado, no âmbito da chamada gestão moderna ("empresarial") dos hospitais. Os trabalhadores/as da limpeza, contratados por empresas de trabalho temporário, muitíssimo mal pagos e com deficiente supervisão, permaneciam pouco tempo naqueles empregos. Naturalmente, a qualidade da limpeza, o cumprimento das normas de desinfecção, era mais que duvidoso. Tudo isto foi introduzido pelo Trabalhismo da 3ª Via (Tony Blair e seguintes). Em Portugal fizemos o mesmo caminho com o ministro Correia de Campos e discípulos, ao nosso ritmo e à nossa maneira. Mas o resultado é o mesmo.

Hoje, ao ver o telejornal, não pude deixar de pensar que as pessoas que faleceram, vítimas do surto de legionella no Hospital S. Francisco Xavier, para além de outros doentes em risco de vida, SÃO VÍTIMAS DO NEOLIBERALISMO.

Afinal, quem garante que as colheitas e as análises quinzenais às torres de refrigeração cumpriam as normas adequadas? Em boa verdade, ninguém do hospital controlou o seu trabalho porque, se o fizesse, isso teria custos e anulava a dita vantagem da subcontratação. E para a empresa, como é de esperar, o lucro é o objectivo; a qualidade do trabalho é a que for compatível com os níveis de rendibilidade fixados. O mesmo se passa noutros sectores da administração pública, como é o caso da subcontratação das refeições escolares. E o SIRESP? E os meios aéreos privados para combate aos fogos?

Tudo isto é imposto pelos Comissários da UE e o Eurogrupo, de forma indirecta, porque mesmo em tempo de estagnação continuam a forçar a redução da despesa publica. Começa a ficar à vista de todos que a degradação dos serviços públicos vai continuar, embora disfarçada com proclamações de que os "culpados" serão punidos. É uma forma de acalmar os cidadãos para que o paradigma político neoliberal se mantenha.

Apetece-me gritar: quero o Estado de volta. Há aí mais alguém que também queira?

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Traição


"A defesa nacional é um dos pontos nevrálgicos da soberania de cada país." (Teresa de Sousa, Público 5 Nov. 2017)

Ao assinarem o Tratado de Maastrchit e suas actualizações até ao Tratado de Lisboa, as elites portuguesas entregaram a soberania de Portugal com toda a tranquilidade, sem discussão pública e sem referendo para que o povo não percebesse o passo histórico, suicida, que estavam a dar. Precisamente o contrário do que fizeram os povos mais desenvolvidos da Europa.

Hoje, com a crise financeira, o progressivo declínio da nossa economia, a venda de empresas e infraestruturas estratégicas (bancos, telecomunicações, rede eléctrica, portos, aeroportos) e a perda total dos instrumentos de política económica, os portugueses minimamente instruídos têm obrigação de já ter percebido que pouco falta percorrer para que Portugal se torne uma província decadente de um continente dominado pela Alemanha. Agora sem ter precisado de usar armas.

E se for preciso usar a força militar contra uma rebelião no seio do império? Sim, falta um passo para a dominação se consolidar, pelo menos assim pensam os federalistas europeus. É por esse passo que Teresa de Sousa anseia, tornar a UE irreversível (à força), sob pretexto de que precisamos de um exército para enfrentar inimigos externos. Agora ou nunca.

Para esta gente, falta um exército "comum" que, protegido pela legalidade dos tratados - mas sem a legitimidade que só pode ser dada pelos portugueses a quem nada se perguntou expressamente - possa intervir também no interior da Europa, sob comando de um Estado-Maior desenhado pela Alemanha e de cujo controlo não vai prescindir através da nomeação da sua quota de generais e da institucionalização das missões e formas de intervenção. O BCE foi feito à imagem e semelhança do Bundesbank. O exército da UE será constituído da mesma forma, não tenho a menor dúvida.

A nota do governo português, em que recomenda à AR a entrega definitiva da soberania de Portugal (com uns floreados de retórica para embrulhar o essencial), é um acto com dimensão histórica. Significa traição.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Sempre a mesma cantiga

Depois de idênticas tentativas em relação aos Orçamentos de Estado de 2016 e 2017, a direita volta a ensaiar o truque no OE de 2018: na sua proposta para o próximo ano, o Governo estaria a preparar-se para «enganar as escolas» e proceder a mais um corte na Educação, a rondar desta vez os -182M€ (-2,9%). A lógica é a mesma: face a uma estimativa de execução a rondar os 6,4 mil milhões de euros em 2017, o Governo propõe uma dotação de apenas 6,2 mil milhões de euros para 2018.

Se aceitássemos por momentos como válida esta forma de comparar orçamentos (confundindo propostas orçamentais com execução orçamental), teríamos então que concluir que a direita cortou anualmente, em média, entre 2012 e 2015, cerca de 532M€ à Educação, muito acima portanto dos cortes imputados ao atual Governo desde 2016, na ordem dos 120M€, em média, por ano. Se a direita quiser colocar as coisas nestes termos, é com estes valores que tem que se confrontar.


Sucede porém que não faz sentido comparar propostas de orçamento com dados de execução orçamental. Por um lado, porque ao anteceder o debate e votação, uma proposta de orçamento consagra por excelência a intencionalidade política de cada Governo perante o exercício orçamental. Por outro, porque os dados de execução incorporam fatores exógenos a essa intencionalidade, refletindo alterações e dotações provisionais que tendem a tornar sistematicamente negativa, no caso da educação, qualquer comparação com a proposta inicial. Ou seja, propostas de orçamento comparam-se com propostas de orçamento; execuções orçamentais comparam-se com execuções orçamentais. Do OE de 2017 para o de 2018, o que se propõe é que a Educação tenha mais 150M€ (aumento de +2,5%) e não um corte de 182M€.

Quando se compara o que é comparável chega-se às conclusões a que faz sentido chegar. De 2012 a 2015 as propostas orçamentais apresentadas pela anterior maioria PSD-PP traduzem uma diferença negativa de 697M€ no Orçamento da Educação e, a partir de 2015 - já com o atual Governo e a maioria parlamentar que o apoia em funções - obtém-se um aumento na ordem dos 633M€, que demonstra uma clara recuperação da aposta e do investimento no setor. O mesmo se passa com a execução: com a direita no poder, verifica-se uma redução de 473M€ entre 2012 e 2015. Com a atual maioria de esquerda, um aumento de 431M€ entre 2015 e 2017. O gráfico lá em cima é claro sobre quem aposta de facto no Estado Social e na Escola Pública.