Quanto mais o tempo passa, mais razão dá a quem afirma que a reestruturação da dívida pública portuguesa é urgente e inevitável.
A chamada equação da dinâmica da dívida pública diz-nos que a evolução da dívida pública (expressa em percentagem do PIB) num determinado ano é igual à soma de duas componentes. A primeira dessas componentes é o saldo orçamental primário (i.e., excluindo os juros sobre a dívida), também ele expresso em percentagem do PIB. A segunda componente é igual ao stock da divida existente no início do ano, multiplicado pela diferença entre a taxa de juro média associada a essa mesma dívida e a taxa de crescimento do PIB nominal.
Trocado por miúdos, isto quer dizer que se a taxa de juro implícita for igual à taxa de crescimento do PIB, então o aumento do stock da dívida será directamente proporcional ao défice orçamental primário. Se, em contrapartida, o saldo orçamental primário for perfeitamente equilibrado (=0) no ano em questão, então o stock da dívida pública aumentará ou diminuirá consoante a taxa de juro associada à dívida existente seja superior ou inferior à taxa de crescimento da economia. Os aumentos decorrentes desta segunda parcela – não resultantes da acumulação de défices orçamentais primários adicionais mas da existência de uma diferença entre os juros suportados e o crescimento da economia – são aquilo que se costuma designar pelo “efeito bola-de-neve”.
Esta decomposição permite perceber que são quatro os factores que determinam a evolução do rácio dívida pública/PIB: o stock da dívida pre-existente, a taxa de juro média que lhe está associada, o saldo primário e a taxa de crescimento do PIB. E passando da mera contabilidade para a economia propriamente dita, permite também perceber que, a partir de determinado nível de divida acumulada, assegurar a sustentabilidade da divida (isto é, conseguir de forma sustentada que o rácio não aumente) comporta um dilema fundamental. Quanto mais positivo for o saldo orçamental primário (o que contribuirá para reduzir o stock da divida), tanto menor será tendencialmente a taxa de crescimento do PIB, pois estar-se-á a subtrair à procura agregada (o que tenderá a fazer aumentar o efeito bola-de-neve). Se, em contrapartida, se der mais folga à procura através de saldos primários menos positivos, o stock da dívida pública tenderá a diminuir pelo lado do efeito bola-de-neve mas tenderá a aumentar pelo lado do efeito directo.
O que isto quer dizer é que a partir de um certo stock de dívida acumulada, torna-se cada vez mais difícil – e a certa altura impossível – assegurar a sustentabilidade da mesma, seja pela via da austeridade ou pela via inversa, de estímulo orçamental à procura. Em tais circunstâncias, as soluções reduzem-se a duas: ou surge alguma fonte exógena de procura que alimente o crescimento da economia; ou o stock da dívida tem de ser reduzido por via de uma reestruturação.
O comportamento destes factores no caso português nos últimos anos ilustra perfeitamente este problema. Entre 2011 e 2014, segundo a AMECO, a taxa de juro implícita sobre a dívida pública portuguesa variou entre 4,4% (2011) e 3,9% (2014). No mesmo período, a taxa de crescimento do PIB nominal variou entre -4,4% (2012) e 2,2% (2014). Consequentemente, a diferença entre estas duas variáveis (i.e., o efeito bola-de-neve) não cessou de fazer aumentar a dívida em todos estes anos, independentemente da baixa dos juros induzida pelo “efeito Draghi”. Ao mesmo tempo, a outra componente determinante da evolução do saldo dívida/PIB, o saldo primário, foi também ele sempre deficitário, oscilando entre -3% (2011) e -0.3% (2014)... apesar de todos os cortes realizados em contexto de austeridade.
Em suma, em cada um dos últimos quatro anos, o rácio dívida pública/PIB aumentou tanto por via directa (saldo primário) como indirecta (bola-de-neve). Não admira, pois, que nestes mesmos últimos quatro anos a dívida pública portuguesa tenha passado de cerca de 108% do PIB para perto de 130%: é um resultado directo da conjugação destes dois efeitos, apesar de todo o sofrimento e desestruturação social associados à austeridade. E é a isto mesmo que se referem todos aqueles que há muito falam da insustentabilidade da dívida pública portuguesa e da incontornável necessidade da sua reestruturação. A cada ano que passa, o Estado português gasta tanto em juros como em educação – e tal sangria de recursos serve apenas para adiar o inevitável.
A recusa em aceitar esta evidência, que espantosamente é ainda dominante em Portugal, só pode ser explicada pelo facto da dívida desempenhar um papel instrumental central na legitimação da agenda política conservadora que tem vindo a ser aplicada. Mas é também explicada pela desinformação a que os portugueses são sujeitos de forma recorrente – como voltou a suceder ainda há dias quando António Costa, ex-director do Diário Económico, afirmou na entrevista a Jerónimo de Sousa que a dívida pública portuguesa seria detida “em cerca de 60%” pelas famílias portuguesas (o valor real é inferior a 7%, sendo a vasta maioria da dívida detida por empresas financeiras ou pelos credores oficiais que constituem a troika; e o erro de António Costa é igualmente grave quer seja fruto da ignorância ou de má-fé). Infelizmente, os tempos em que nos encontramos são tristes tanto pela regressão social a que temos sido sujeitos como pelo obscurantismo que domina o debate público.
(publicado no Expresso online em 02/09/2015)
não poderíamos já passar á fase seguinte da renegociação, à fase do crescimento a 7% do PIB/ano? pleno emprego, saúde, educação e segurança social ao nível da Noruega ( pelo menos)? que chatice haver eleições...deveríamos votar num algoritmo...
ResponderEliminar(se é com artigos deste calibre, que no curto prazo, pretendem mudar qq coisa, deus nos livre do futuro) até lá, boas utopias.....
ResponderEliminar“…nestes mesmos últimos quatro anos a dívida pública portuguesa tenha passado de cerca de 108% do PIB para perto de 130%”.
Enquanto a sangria continua, os spin doctors como o António Costa (ex-director do DE) continuam na sua senda manipuladora. Ou é isso, ou as “encomendas de pizza do Sócrates”…
Faz parte da agenda da cambada: não querer tocar no assunto da reestruturação da dívida!
A dívida pública, além de estar distribuída como títulos do Tesouro ou certificados de aforro, também é detida pelo Fundo da Segurança Social (este Governo aumentou a sua exposição à nossa dívida a mando da Troika, de modo a tornar a sua renegociação mais difícil, presume-se). Qual é a exposição corrente desse Fundo em percentagem dos seus activos totais?
ResponderEliminarSei que a economia e´ uma ciência importante para a vida das pessoas e, por consequência, os economistas o são também. Todavia, outras ciências serão tão importantes, e, de tal forma, que não poderão, umas sem as outras, funcionar regularmente!
ResponderEliminarOs técnicos que tratam da economia, tal como outros técnicos que tratam de outras ciências, não estão excluídos das contingências que assolam os demais cidadãos.
Ate´ que quase sempre o economista e´ também “politico” e por vezes, o “politico” nada percebe do “social” (estamos a falar de ciências não puras) o que torna as coisas menos fáceis de compreensão aos lugares comuns da “actividade social” Dai o estado caótica das contas publicas e privadas.
Dai pensar que uma senhora, ex-ministra do arco da governação se lembrasse de uma ditadurazita só por seis meses ou de um ex-dirigente partidário de “esquerda radical”, prof. de economia exortar ao granel social. São coisas da vida!
De o “Catraio” com respeito
A preferência pela renegociação da dívida e a aversão a mexer no saldo primário não é questão aritmética mas ideológica.
ResponderEliminarO facto de ser ideologia constitucional não a faz certa, fá-la danosa!
O dinheiro que o Estado ganha na reestruturação permite-lhe capitalizar adequadamente a Segurança Social.
ResponderEliminarÉ uma falsa questão principalmente quando a grande maioria da dívida é detida por estrangeiros.
E a existir reestruturação seria não só da dívida pública mas também da dívida privada.
O plano do das 18:02 parece-me incompleto, não contempla a transferência do país para um outro planeta.
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