A agenda para a década de António Costa arrisca-se a colocar mais uma década perdida na agenda. Por que é que sou tão pessimista?
Em primeiro lugar, pelas palavras que não estão lá: renegociação e reestruturação da dívida, respectivamente como processo e como resultado da iniciativa corajosa de um governo que defenda os que por aqui vivem. A pirueta de Ferro Rodrigues na semana passada percebe-se melhor agora: o que está lá é uma conversa vaga e que alimenta todas as ilusões sobre a política possível no quadro de constrangimentos europeus de matriz retintamente regressiva e que serão, no fundo, aceites. Os “pilares” e as “acções-chave” da agenda tendem a esboroar-se e a deixar de abrir quaisquer portas. Algumas boas intenções e propostas e alguns princípios válidos não são suficientes neste contexto.
Em segundo lugar, porque no fundo o documento revela como o PS continua dominado por um social-liberalismo que teve na fracassada agenda de Lisboa uma das suas expressões. Na realidade, a palavra reestruturação aparece na agenda por duas vezes: a propósito da “modernização” da administração pública, previsivelmente na continuidade da promoção da “nova gestão pública” da era Sócrates, aproximando a lógica do público de uma lógica idealizada de empresa privada, e a propósito da reorientação da economia para as exportações, na senda da desvalorização da procura interna; a palavra procura aparece associada à escala, ou seja, à ilusão, europeia. Associando isso à conversa da promoção da concorrência, por exemplo na energia, à não reversão de grande parte da herança institucional da troika e ao compromisso com o Estado social, temos o esforço de sempre, em versão cada vez mais recuada dado contexto, ou seja, o esforço de Guterres a Sócrates para combinar neoliberalização na “economia”, temperada por uma economia da oferta progressiva apostada na formação, com a protecção e o investimento possíveis no “social” para corrigir os efeitos mais perniciosos de uma economia cada vez mais neoliberal.
O problema é que o modelo em que esta combinação assentou sempre foi precário e o contexto que permitiu a sua sustentação nos anos noventa e, com cada vez menos fôlego, no novo milénio desapareceu no meio do endividamento externo, do euro, da austeridade permanente inscrita em regras europeias cada vez mais rigidas e de um desemprego de massas sem paralelo histórico. A direita que, em certa medida, gerou este modelo no cavaquismo (entre privatizações, liberalização financeira e um certo tipo de Estado social) aposta no que é mais óbvio: aceitar e reforçar as estruturas desta economia que mata, fazendo com que as variáveis de ajustamento sejam o Estado social e o salário direto e indirecto que lhe está associado, sabendo que é isso que a europeização impõe e que esta separação entre o “económico” e o “social” seria sempre artificial em última instância.
O que fazer? O contrário, ou seja, manter e expandir o Estado social, colocando a economia ao seu serviço, reconfigurando-a através da recuperação de instrumentos de política económica - orçamental, monetária, cambial, comercial e industrial - eliminados pela neoliberalização sob tutela europeia. Sem instrumentos, as intuições desenvolvimentistas que assomam aquil e ali não passam de intenções, o necessário pleno emprego de uma miragem e o Estado social de uma herança permamentemente erodida no quadro de uma democracia esvaziada. Aqui, chegamos a uma das formulações mais espantosas do documento de Costa:
“[H]á quem, também em Portugal, explore politicamente a percepção de que a Europa não esteve à altura das suas responsabilidades. Contudo, a tentação de virar as costas à Europa seria um erro grave. Não podemos perder de vista que a criação do euro também devia servir para proteger os países face aos perigos da globalização financeira – e ter presente que esses perigos aumentaram ao longo dos últimos vinte anos.”
Está aqui muito: o truque que faz equivaler euro, UE e “Europa” e a inacreditável ideia de que o euro “devia servir” para nos proteger da “globalização financeira”, quando, como aliás implicitamente se reconhece no documento, o euro foi um dos principais mecanismos, nas suas intenções e nos seus efeitos, da mais perniciosa globalização financeira, a que gerou um endividamento externo recorde. Está aqui o resto: o medo da “exploração” da “percepção” (bem real) de que a UEM foi um fracasso colossal e irremediável.
É melhor “explorar percepções” reais ou continuar a “explorar percepções” ilusórias? Esta é a pregunta que se impõe.
A minha resposta é que a esquerda socialista deve explorar politicamente as primeiras. Face à ascensão de Costa, face à percepção fundada de mais uma década de pouco mais do que o que tivemos nestes anos de euro, face ao que isto implica para uma sociedade como a nossa, tem de haver espaço para uma aliança política que recupere o espírito do povo unido. Essa aliança terá de confrontar o status quo com as suas opções em nome de opções alternativas radicalmente distintas, forçando uma mudança da relação de forças, garantindo que o campo eurocéptico em ampliação fica ancorado à esquerda. Exploremos então as percepções.
Nota de rodapé: o indisfarçado entusiasmo do jornal Público desde sexta-feira é a expressão do seu investimento histórico no social-liberalismo e na bipolarização política que o gerou, mesmo depois das condições materiais para esta ideologia terem desaparecido. Este desfasamento é muito comum em tempos de crise, em tempos em que “o velho já morreu e o novo ainda não nasceu”...
Muito bom.
ResponderEliminarBom texto.
ResponderEliminarTambém questiono: mais uma década a marcar passo(s)?
Preguiçosamente, à espera da UE? E acompanhados de outros patéticos?
Bem sintetizado por João Rodrigues num discurso algo patético sobre tentações, deveres e perigos:
«Está aqui muito: o truque que faz equivaler euro, UE e “Europa” e a inacreditável ideia de que o euro “devia servir” para nos proteger da “globalização financeira”, quando, como aliás implicitamente se reconhece no documento, o euro foi um dos principais mecanismos, na suas intenções e nos seus efeitos, da mais perniciosa globalização financeira, a que gerou um endividamento externo recorde. Está aqui o resto: o medo da “exploração” da “percepção” (bem real) de que a UEM foi um fracasso colossal e irremediável.»
Essa percepção do tempo perdido, e que nos arriscamos a continuar a perder, sem qualquer perspectiva, essa percepção fundamental para a mudança de que fala João Rodrigues alinha-se bem com a realidade.
Idem,idem, aspas, aspas.
ResponderEliminarMuito bom
É um prazer ler um texto assim...
Para se antecipar o que será uma governaçâo com Costa, é favor olhar para Hollande e ver o que se passa em França.
De
Pessimismo da razão,falta coragem sobram piruetas,circo sem pão o espectáculo da política mediatizada,
ResponderEliminaro truque das percepções quando já é impossível esconder o cadáver que se continua a alimentar para gáudio dos guardas do panóptico de merkel - apetece dizer digam lá qualquer coisinha de esquerda...para a gente se divertir com o optimismo da vontade.
Quando é que nós "Podemos" O problema é q não se vê qualquer luz ao fundo do túnel de qualquer movimento político de cidadãos com a liderança de pessoas que tenham preparação política e coragem, detentores de um discurso popular (facilmente apreendido pelo povo) que dispa o senso comum do liberalismo. A solução mais célere seria uma frente comum entre CDU e BE a Livre, todos sem o PS (de q fui militante) mas, tal como refere o João Rodrigues, c/ o qual concordo, ñ podemos ter qualquer ilusão relativamente ao António Costa! É mais "estadista" q o anterior líder mas em relação ao atual poder, a "porcaria será a mesma" ainda que, admito, o cheiro possa ser menos nauseabundo, já q pior q os atuais é difícil!
ResponderEliminarPois é, vamos a caminho do nada, com o garrote enfiado. Entre as tradicionais piruetas, as palavras renegociação e/ou reestruturação continuam a ser “proibidas”. Com esse e outros estigmas papagueados, não vislumbro como dar o pontapé. Sejamos pragmáticos: no quadro representativo político actual não parece POSSÍVEL sair disto! Há que inventar…
ResponderEliminarBom postal e uma nota de rodapé que sintetiza o estado do sítio: a media a puxar os cordelinhos para a (aparente) bipolarização política.
Muito bem. Partilhei.
ResponderEliminarTambém sou pessimista e concordo que a década possa vir a ser perdida, mas não só pelo Costa, e para mim que o não olho com embevecimento messiânico, são as responsabilidades de quem com (ou sem) o Costa, deveria desde há muito perseguir política não neo-liberais, mas também não neo-maximalistas do tipo séculos XIX e XX e não me refiro só à linguagem. De facto renegociação e reestruturação não constam da resolução, mas o que está não me parece assim tão vago. Vejamos a resolução da Assembleia da República: ..."Atenta a pertinência e a relevância do assunto objecto do presente Projecto de Resolução no panorama nacional e no futuro de Portugal e dos portugueses, mas também a enorme complexidade da análise do mesmo, DESENCADEAR UM PROCESSO PARLAMENTAR DE AUDIÇÃO POR PARTE DESTA ASSEMBLEIA DE PERSONALIDADES RELEVANTES, ESPECIALISTAS NA MATÉRIA, tendo como objectivo a identificação de soluções responsáveis e exequíveis para o problema do endividamento, que permita simultaneamente um crescimento sustentado da economia do país" ... João Rodrigues, parece-me bem que renegociar e ou reestruturar a dívida é objectivamente um assunto relevante e que requer e necessite de soluções responsáveis e exequíveis. Se os nomes não estão pouco mal. O PS e o Costa conhecemos ou deveria-mos conhecer. O que me parece é que o colocar e demandar resposta a esta questão à Assembleia da República me parece uma muito hábil manobra do Costa. Sabe o partido que tem, e sobretudo sabe que a nível europeu uma qualquer proposta com chancela democrática tem outro peso que a de um partido ou mesmo de um governo. Já a esquerda neo-maximalista vislumbrou a oportunidade de poder condicionar a Assembleia da República (sabendo que há muitos posições transversais favoráveis a uma renegociação), propondo personalidades capazes, credíveis e com curriculum internacionalmente reconhecido? Se esta esquerda (que em geral prima pela ausência orgulhosa) souber bem agir podemos então acusar só o Costa por mais uma década perdida.
ResponderEliminarA chave da política enunciada é muito justamente "recuperar o espírito do povo unido".
ResponderEliminarMas esse espírito poderá afirmar-se sem grande ousadia que vigorou entre 25 de Abril e 1 de Maio de 1974. Uma semana!!!!
É certo que 'o verdadeiro povo unido' esteve em cena desde 11 de Março a 18 de Agosto de 1975 e até chegou, já moribundo, a 25 de Novembro de 1975...mas eram tão poucos!
Deêm-me ao menos um esquerdisno decente e anunciem as barricadas,
em vez de projectarem políticas em cenários de fantasia.
Considerando que o arco PSD/PS/CDS, tudo aponta, continuará a ter cerca de 80% dos votos do eleitorado e que é cada vez mais claro que o PS nada propõe para a próxima década de radicalmente diferente do que PSD e CDS executaram e propõem, será essa a legitimação eleitoral que falta para a continuação no euro, a continuação da austeridade, ...? Ou, ao fim de 4 anos, ainda se trata de falta de informação? É que se assim for ainda há 1 ano pela frente para esclarecer os indecisos e mal informados!
ResponderEliminarAqui há semanas jose afirmava que o "espírito de Abril" só durara mesmo o dia 25 de Abrl., A 26 já se estavam a perseguir pides, esses pobres tipos que ou estavam a cumprir ordens ou eram apenas sádicos quase inofensivos.
ResponderEliminarAgora jose muda de discurso porque necessita de classificar como fantasista este post muito bem estruturado de João Rodrigues.
Uma outra forma de "vender" o seu caminho único, de forma tão cansativa que já cansa mesmo
Pelo meio adivinha-se uma profunda perturbação pelo ano de revolução que atravessou o país.
Talvez a nacionalização da banca lhe tenha deixado marcas.
E talvez seja a altura de falar de novo abertamente destas coisas.
Sendo sarcásticos com estes arremessos de "quantos são, quantos são", travestidos de "barricadas" com que jose nos brinda em jeito de provocação quase que.
De
"Sejamos pragmáticos: no quadro representativo político actual não parece POSSÍVEL sair disto!" D.H.
ResponderEliminarÉ aqui que está o busílis da questão: não são as manifestações, as greves, os manifestos ... que vão alterar qualquer coisa. A única saída eficaz só pode ser através de um partido político. Mas para isso é necessário que se concentre pragmaticamente no mínimo denominador comum essencial e não se perca em discussões estéreis sobre purezas ideológicas, questões fracturantes, ... Ainda falta um ano para as eleições e vai ficar cada vez mais claro que o PS é apenas alternância. O que está a falhar são as elites à esquerda.
"12 de Novembro de 2014 às 21:02" e D.H.
ResponderEliminarNão é pela falta de partidos políticos que não se sai disto.
Há dois partidos a pensar exactamente nestes termos.
Não se vota neles pq?
É demasiado simples dizer que isso é culpa do quadro político-partidário que temos como fazem, por exemplo, os que fundam movimentos em nome da convergência com este PS para uma década
Eu não disse que “a culpa é do quadro político-partidário”…
ResponderEliminarOs partidos que considero de esquerda e que têm representação parlamentar, BE e PCP, são sistematicamente estigmatizados pelo poder, o que logo à partida condiciona e muito as suas propostas. A comunicação social nas suas diferentes facetas, encarrega-se de catalisar essa aversão. Vê-se isso diariamente. Por outro lado, há também uma crise generalizada de valores, enfim, um terreno fértil para a manipulação…
Mas sem falar só dos partidos de esquerda, vejo que há algumas pessoas ligadas ao PS, ou a outros quadrantes, cujas opiniões e posições são também muito válidas, no meu entender (não estou a falar dos Livres, dos Manifestos, ou de outros "fenómenos"). No quadro actual, penso que a mudança teria que partir por uma plataforma alargada de cidadãos que ponham em causa o rumo servil que o país tomou.
Caso contrário, vamos ter mais do mesmo, agarrados às nossas “crenças”, bem compartimentadas, enquanto nos vão servindo uma aparente bipolarização política, para nos entretermos.
(o espaço é curto, espero ter deixado uma opinião que seja clara)
D.H.
ResponderEliminarEm parte concordo consigo. Por acaso, acho que há no PS quem tenha ditos coisas interessantes.
São pouco mais que um par deles, mas bem podem andar para aí escrevendo coisas interessantes, sensatas e heterodoxas, que na hora de escolher o poder apoiaram todos António Costa,que nada tem de interessante bem muito pelo contrário. Junta autoritarismo ao neo-liberalismo.
Para não variar, os portugueses sondados parecem embevecidos por este tipo de gente, aparentando pulso. Foi Cavaco, é Costa, será Rio.
Depois, há aqueles partidos a que chama estigmatizados e que parece deixar de parte de uma solução. Paciência, como lhes colaram lepra, é deixá-los.
E há os movimentos de cidadãos, que eu não vejo capazes de em cada instante caminharem num sentido. Movimentos de cidadãos perfeitos são já esses Livres, Manifestos e Marinhos Pintos. Cidadãos comportando-se como cidadãos, de modo aleatório. Mesmo aí há quem faça boas análises, o pior são os caminhos que vaticinam (aliança com PS de Costa). Se eles nem com eles se entendem, como esperar que se entendam outros grupos de cidadãos, menos rodados numa série de coisas da vida cívica, cidadãos sem auto-disciplina, sem clara consciência de que o seu ponto de vista é apenas mais um e que não é necessariamente melhor do que o dos outros cem que se lhe opõem, sem convergência de convicções, sem cultura e práticas de negociação, de comprimisso, de imposição quando necessário.
Nesta fase a urgência é resgatar o país, libertarmo-nos do fardo da dívida, grande parte dela para sustentar rendas e tapar buracos de génese fraudulenta. Daí a necessidade de uma plataforma, onde deveriam caber não só o BE e o PCP, mas todos os outros, cidadãos e/ou partidos que também estejam para aí virados. Será isto possível?
ResponderEliminarO PS do Costa, Vitorino, Amado & Cª (Ah, o arco da governação!), obviamente que não está para aí virado. LIVRE(s) dele e de outras muletas é o que nós precisamos.
Foi uma década de retrocesso histórico , e que infelizmente há indicadores que mostram que a situação irá continuar a progredir.
ResponderEliminarAs mudanças no PS parecem não trazer nada de novo.
D.H.
ResponderEliminarParece-me que estamos de acordo. :)
Mas falha converter aquilo que não constitui uma relativa representação social -- os que já perceberam que este não pode ser o caminho: até os mais insuspeitos já o viram: http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2014/11/lets-take-look-at-this-chart-mr-subir.html -- numa maioria social e de seguida numa maioria política. Isso é de facto uma convergência CDU, BE, Sindicatos, Movimentos Sociais, Cidadãos e partidos que mudassem de leitura e de acção.
Infelizmente, Boa parte dos eleitores continua agarrado aos seus partidos de sempre, mesmo quando estes mais que se demonstram incapazes de responder ao problema. Caminho que é reforçado pelos críticos de esquerda com eco publicado, que embora descartem o Tratado Orçamental com que o PS alinha, defendem em simultâneo a convergência com esse mesmo PS (não há outro, por muito que eu gostasse que Pedro Nuno santos, Galamba, Delgado Alves, ou Cordeiro deixassem de andar a brincar ao costismo e pusessem em acção o que dizem)