Num artigo no "Público" (Copérnico, Galileu, o PS e a reposição de salários na função pública, 2 Novembro), Paulo Trigo Pereira (PTP) apresenta uma crítica à nova liderança do PS com um preâmbulo que sugere grande profundidade analítica. Para a generalidade dos leitores, provavelmente passará por boa fundamentação, mas não para os economistas que são críticos do paradigma da teoria económica dominante no meio académico. Sobre a falta de pluralismo, reduzida capacidade explicativa e escassa relevância social da economia que se ensina nas universidades, o essencial foi dito por Alexandre Abreu no Expresso-diário (Keynes e os seus herdeiros, 5 Novembro).
PTP procura fazer passar as suas opções teóricas e ideológicas por análise científica, conhecimento testado pelo confronto com a realidade e imune às ideologias. Estas serão "importantes e úteis para enquadrar as políticas económicas", mas estão excluídas da análise económica. Errado! A análise económica trabalha sempre com pressupostos impregnados de escolhas valorativas. Por exemplo, a racionalidade calculatória e optimizadora, um dos pilares do paradigma dominante, assume um indivíduo desvinculado de instituições, um átomo autocentrado, ou seja, uma ficção do liberalismo que a psicologia moderna rejeita. Outro exemplo, o equilíbrio do sistema solar, a que se refere o artigo de PTP para invocar uma realidade que se nos impõe, inspiraram Leon Walras e o seu modelo de equilíbrio geral, um dogma dos economistas que ainda permanecem ancorados no século xix.
Dito de outra maneira, é na ideologia do liberalismo que se enterram os pilares da teoria económica de PTP: individualismo metodológico, o todo como soma das partes, causalidade linear, modelos a-históricos, ausência de incerteza radical. Por isso, a sua análise dos actores políticos e dos eleitores é a da corrente da "escolha pública", uma manifestação colonizadora da ciência política pelo pensamento económico dominante. PTP argumenta que António Costa faz mal em repor os salários da função pública na totalidade porque "os eventuais ganhos de apoio político dos trabalhadores do público seriam anulados pela perda de apoio dos trabalhadores do privado, que sentiriam, e bem, a ameaça de novas medidas despesistas". Este princípio, o das expectativas racionais da moderna microeconomia, também sustenta a ideia de que a política orçamental não tem eficácia, e é até contraproducente. Outras teorias, apoiadas na realidade, há muito desmentiram este pensamento dos novos clássicos e estão disponíveis para o grande público no conhecido blogue do economista Lars Syll (exemplo: What to do to make economics a relevant and realist science). Assim, quando PTP nos exorta a "aceitar a realidade como ela é", está de facto a propor-nos a sua visão da realidade, a da sua escola de pensamento.
PTP sugere também que a "consolidação orçamental" (eufemismo de opção política de redução do Estado social) é uma inevitabilidade, uma realidade que acabará por se impor ao PS quando estiver no governo. Trata-se de uma concepção das finanças públicas que esconde a natureza endógena do saldo do Orçamento do Estado, como se a despesa pública e os impostos não tivessem consequências no volume e na composição da actividade económica e, em retroacção, esta não tivesse consequências sobre o saldo orçamental. Invocando o contributo do economista Abba Lerner, nos anos 40 do século passado, os pós-keynesianos que PTP ignora defendem que o orçamento é um instrumento ao serviço de uma política económica que se propõe alcançar o pleno emprego, ao contrário dos novos clássicos que fazem do equilíbrio orçamental um dogma. Como é evidente, está fora do horizonte analítico de PTP que Portugal algum dia venha a recuperar a soberania monetária e orçamental para promover o emprego e viabilizar um Estado social robusto. Imagina-se num qualquer fim da história em que já nem Fukuyama acredita. De facto, contra o que nos quer fazer crer, a teoria económica de PTP é pré-keynesiana, "da idade das trevas", na expressão de Krugman. É tudo menos neutra e deve ser contraditada.
(O meu artigo no jornal i)
Uma pessoa quase que fica mal disposta depois de ler o artigo de PTP. Enfim.
ResponderEliminarCansa um bocado sempre o mesmo argumento ad hominem: estes pressupostos da econonomia são tão maus que a única maneira de explicar como é que alguém pode acreditar neles é patologizando, dizendo que sofrem de cegueira ideológica... Tem a sua plausibilidade... Mas não chega.
ResponderEliminarGostei particularmente desta parte: "Dito de outra maneira, é na ideologia do liberalismo que se enterram os pilares da teoria económica de PTP: individualismo metodológico, o todo como soma das partes, causalidade linear, modelos a-históricos, ausência de incerteza radical. "
Sugiro que leia os artigos do Oskar Lange, do Abba Lerner, ou mesmo a Teoria do Valor do Debreu... Depois fale-me do liberalismo em que se enterram esses pilares....
Chang coloca a questão da recepção das teorias cuja complexidade seria prejudicada pelos objectivos praxiológicos dos seguidores-
ResponderEliminare se assim for e eles se submetem perdem a sua razão de ser porque a razão também é uma escolha.
Caro Jorge Bateira,
ResponderEliminarSou engenheiro e portanto, no que diz respeito a assuntos de economia (e logo deste calibre) tenho de aceitar alguns argumentos com base no "argumento da autoridade". E é nesse sentido que naturalmente tenho de considerar a opinião de Krugman. Mas, da mesma forma e pela mesma lógica, dificilmente poderei aceitar a qualificação da opinião de outro prémio Nobel da Economia (Eugene Fama, citado no artigo que linka de Krugman) como teoria económica da "idade das trevas".
Dito isto, percebo o que quer dizer com "a natureza endógena do saldo do Orçamento do Estado" (que consigo associar ao conceito de sistema complexo em engenharia). Mas ainda assim, há ou não limitações exógenas ("a realidade como ela é") a saldos orçamentais persistentemente (desde 74) negativos? E que conclusão podemos retirar da experiência destes 40 anos (repito 40 anos) em que vivemos maioritariamente na posse de todos os instrumentos de política económica e em "regimes não-neo-liberais"?
Se calhar era boa ideia recordar que o BdP e todos os bancos centrais europeus são entidades públicas (o accionista é o respectivo estado) a quem é concedido pelo Estado o monopólio da criação de dinheiro. O BCE tem como accionistas os bancos centrais dos países do euro. Depois, recordar que a todos os outros é vedado esse privilégio. Se a todos os outros é vedado esse privilégio então, logicamente, o Estado tem que primeiro gastar esses euros para poder cobrar esses euros em impostos. E que portanto a razão porque têm poupanças na sua conta bancária é porque as contas públicas estão em défice. E pelo caminho, recordar que se temos impostos por pagar em euros não é com dólares ou kwanzas que os pagamos. E por ultimo, o dinheiro que entra na economia quando os bancos concedem um empréstimo é tirado com juros da economia quando o empréstimo é pago. Logo a política económica ortodoxa é inerentemente deflacionária e destruidora do capital privado. A inflação é boa para quem tem ativos produtivos e a deflação não é boa para quem tem ativos financeiros porque esses só são tão bons quanto a capacidade de pagar do devedor.
ResponderEliminarEu também sou engenheiro e não percebo como é que dez engenheiros apresentam cem soluções diferentes para um mesmo problema (por mais complexo, não linear e pejado de variáveis que seja) e quando pedimos soluções de um problema a cem economistas cem por cento dos neo-clássicos e neo-liberais nos apresentam a mesmíssima solução: austeridade e ruína.
ResponderEliminarA economia não tem sistemas complexos, mas assentes em varáveis físicas e químicas mesmo quando caóticas, tem é sistemas incomensuráveis assentes em infinitas variáveis sociais, humanas, corporativas, pessoais e psiquiátricas.
Os modelos e números da economia não se podem dissociar de uma lei que permita não inspeccionar chaminés de arrefecimento, de outra que conceda um privilégio à banca, de uma terceira que que baixe os custos do despedimento, ou de uma quarta que entregue a um privado a gestão sem risco de um bem público não transacionável.
Caro engenheiro,
ResponderEliminarSem presumir responder pelo autor do post o seu comentário suscita-me o seguinte comentário:
Os prémios Nobel da Economia não são todos iguais. Há uns que ganharam e depois aplicaram as suas teorias na realidade com grandes prejuízos para muita gente, e há outros que (krugman o melhor exemplo) viram o tempo demonstrar a sua razão.
Quando aos 40 anos de déficit, lembro que Portugal teve de recuperar muito tempo perdido. Uma boa parte desses anos foram de investimento numa série de estruturas e instituições que aproximaram (durante algum tempo) portugal dos padrões europeus. Mas ainda ficámos longe, o trabalho ficou a meio, ou menos. É possivel que estivessemos a chegar ao ponto em que, pela renovação das gerações, iriamos ver o fruto desse investimento. Não o saberemos tão cedo, ou talvez nunca. As gerações partiram.
De facto, contra o que nos quer fazer crer, a teoria económica de PTP é pré-keynesiana, "da idade das trevas", na expressão de Krugman. É tudo menos neutra e deve ser contraditada."
ResponderEliminarPerfeitamente de acordo.
( e uma excelente intervenção do anónimo de 13 de Novembro de 2014 às 19:46:
"Os modelos e números da economia não se podem dissociar de uma lei que permita não inspeccionar chaminés de arrefecimento, de outra que conceda um privilégio à banca, de uma terceira que que baixe os custos do despedimento, ou de uma quarta que entregue a um privado a gestão sem risco de um bem público não transacionável."
De
L. Rodrigues,
ResponderEliminarParece-me que responde ao engenheiro das "13 de Novembro de 2014 às 18:31" e não a mim, que sou o engenheiro das "13 de Novembro de 2014 às 19:46" e contesto fortemente o raciocínio do primeiro.
Os sistemas complexos das ciências regem-se por leis naturais, que nunca em instante algum se desviam daquilo que são.
Na economia, há regras, regras humanas, cujo cumprimento continuamente se recria em aplicações e desenvolvimentos criativos, acumulando-se, anulando-se, amplificando-se em modos dependentes do humor, habitus e práticas de quem as segue ou não quer seguir.
Depois, num sistema complexo, das ciências, se eu quiser provar qualquer coisa, não posso matar ninguém na experiência, pelo que sempre vou concluindo coisas e podendo usá-la. Na economia, o empirismo mata populações à fome ou com a doença do legionário.
L. Rodrigues,
ResponderEliminarOutra coisa. Quase todos os "Nobel" da Economia dizem a mesma coisa. Aquilo é um premiar de neo-clássicos e neo-liberais, com escassas excepções fora dessas correntes.
Caro Segundo Engenheiro,
ResponderEliminarDe facto o meu comentário dirigia-se ao Primeiro Engenheiro, tendo sido escrito quando o seu comentário ainda não estava escrito.
Estamos portanto, essencialmente, de acordo. O meu comentário quanto aos Nobel, que como se sabe não são atribuidos pelo comité Nobel, mas pelo Banco da Suécia, significava na realidade que o argumento de autoridade conferido pelo prémio de pouco vale.
Krugman terá o seu mérito pelas teorias que lhe valeram o prémio, mas tem muito mais por ser (como verificado por uma universidade americana) o comentador económico que mais vezes esteve certo na sua opinião publicada na última década, ou coisa parecida. Essa é para mim a verdadeira fonte de autoridade.
Para o amigo Bateira, e para aqules que dizem maravilhas sobre a saida do euro, aqui fica o que escreveu um economista de esquerda insuspeito:
ResponderEliminar"A recuperação da soberania e, por essa via, dos instrumentos fundamentais de política macroeconómica não resolve de uma forma automática os grandes problemas estruturais que enfrenta atualmente o país, pois já tivemos esses instrumentos no passado e os problemas mantiveram-se. Cria apenas condições para isso. Existem muitos países fora do euro com crescimento anémico (ex. Inglaterra, Suécia, Dinamarca). Para além disso uma eventual saída do euro terá lugar num quadro muito mais difícil do que no passado. Nunca tivemos um país, um Estado, empresas e famílias tão endividadas como atualmente, e nunca tivemos uma economia e uma sociedade tão dominado por grandes grupos económicos e financeiros estrangeiros como agora. E não tínhamos no passado uma globalização capitalista dominante e uma tão grande concorrência internacional. Como procuramos mostrar no nosso estudo anterior, a saída do euro, se abre possibilidades de crescimento económico e de desenvolvimento que não existem enquanto se mantiver o "Novo Memorando" que é o chamado "Tratado orçamental", também coloca questões, que tornamos a enunciar no inicio deste estudo, que se não forem devidamente estudadas, debatidas e controladas poderão determinar, a nosso ver, custos muito elevados para o pais e para os portugueses, com reações muito grandes".
Escrito por Eugénio Rosa.
Para o Unabomber,
ResponderEliminarSe bem leio Eugénio Rosa, ele diz que a saída do Euro implica uma série de problemas. Ainda não ouvi ninguém dizer que seria uma coisa simples e sem dor.
O que me parece consensual é que essa dor será, se tomadas as devidas providências e cautelas, bem mais breve que a agonia infinita que este Euro promete.
Pessoalmente eu preferia que o Euro mudasse, e a Europa com ele, ou vice-versa. Mas o pragmatismo reduz as minhas espectativas à esfera em que a nossa democracia (ainda) mal ou bem funciona.
L. Rodrigues,
ResponderEliminarEu também gostava que o euro e a UE mudassem. Não vai acontecer, a julgar pela Agenda da Década.
Isto só lá vai quando um país partir a corda que o ata. Será doloroso, como bem lembra Eugénio Rosa e outros, mas menos do que isto e com mais probabilidades de futuro.
Prefiro lixar já a economia dos outros para que deixem de ser uns canalhas egoístas, do que ficar à espera morrendo lentamente e pensando em mudar para o Sudão para poder ter médico e educação.