No que toca à Macroeconomia, muitos dos contributos mais relevantes para compreender o mundo contemporâneo têm sido produzidos por alguns dos herdeiros menos reconhecidos de Keynes.
John M. Keynes (1883-1946) é com certeza um dos economistas mais conhecidos do público em geral, se não mesmo o mais conhecido. É sintomático o facto de ter dado o nome não só a uma corrente (ou conjunto de correntes) do pensamento económico, como a algo ainda mais geral: um entendimento das economias modernas como sendo afectadas por crises e recessões que podem ser mitigadas ou ultrapassadas através da actuação das políticas públicas. Para qualquer leigo minimamente informado, "keynesianismo" significa, basicamente, activismo estatal em matéria de política económica.
Keynes adquiriu este carácter "metonímico", passando a designar algo de tão amplo, em parte devido ao seu brilhantismo e inovação teóricos, mas sobretudo devido a ter sido o homem certo na altura certa. Por outras palavras, devido ao seu pensamento ter permitido exprimir, entender e agir sobre a realidade social de um determinado tempo. Esse tempo foi a Grande Depressão dos anos '30.
O contributo de Keynes deu expressão teórica a uma evidência: que, ao contrário do que defendia a macroeconomia clássica, os mercados não estão necessariamente em equilíbrio e o desemprego generalizado existe. Avançou um mecanismo explicativo para esse facto: em economias com moeda e crédito, a procura não depende apenas da oferta, mas também da antecipação das decisões de consumo e investimento. E apontou as políticas públicas que permitem solucionar o problema identificado: a expansão da oferta de moeda e/ou do consumo e investimento públicos, conforme as circunstâncias.
A visão da economia esboçada no parágrafo anterior é hoje em dia considerada heterodoxa em termos de teoria económica, pois a visão clássica, para o qual o equilíbrio entre oferta e procura é um ponto de partida, reconquistou o predomínio na academia da década de 1970 em diante. Ao nível da política económica, porém, é tácita ou explicitamente aceite por todos: por mais conservador que seja, não há banqueiro central que não reconheça que a expansão da oferta de moeda estimula a economia; por mais que a sua actuação possa ser determinada primordialmente por outras considerações, não há ministro das finanças que não saiba que os aumentos de impostos, se não forem acompanhados por um aumento da despesa, têm um efeito recessivo.
Este desfasamento entre as visões dominantes a nível teórico, por um lado, e aplicado, por outro, é surreal mas verdadeiro: é como se os engenheiros desenhassem satélites com base no reconhecimento de que a terra gira em torno do sol, ao mesmo tempo que a astrofísica dominante insistisse que é o sol que gira em redor da terra.
Entre as décadas de '40 e '70 do século XX, porém, a macroeconomia de inspiração keynesiana foi dominante também na esfera teórica e académica. Foi o período da chamada "síntese neoclássica", cujo principal instrumento de divulgação foi o manual de Economia de Paul Samuelson pelo qual estudaram várias gerações de economistas. Essa "síntese" era um casamento contra-natura entre a microeconomia neoclássica, que assume agentes perfeitamente racionais e optimizadores, e uma certa versão da macroeconomia keynesiana, que assenta no reconhecimento de que a procura e a oferta não estão necessariamente em equilíbrio. O casamento era contra-natura porque as duas são logicamente incompatíveis: se a primeira for verdadeira, a segunda não o pode ser - e vice-versa. O pensamento económico caracterizou-se assim, durante várias décadas, por uma tensão em busca de resolução.
Essa resolução acabou por assumir três formas principais: a primeira consistiu em deixar cair a macroeconomia keynesiana e regressar à macroeconomia clássica. Foi a solução dos chamados novos clássicos e suas variantes, que se tornaria dominante ao nível do núcleo duro da produção teórica.
A segunda solução consiste em introduzir pequenas modificações (diversos tipos diversos de fricção, rigidez ou assimetria de informação) na microeconomia neoclássica, de modo a torná-la logicamente compatível com a macroeconomia keynesiana. É a solução dos chamados novos keynesianos, que incluem nomes como Stiglitz ou Krugman.
E finalmente, a terceira solução consiste em rejeitar integralmente a microeconomia neoclássica. É a solução dos chamados pós-keynesianos, que enfatizam antes aspectos como as consequências da distribuição do rendimento para a procura agregada ou o facto das decisões económicas serem tomadas em contexto de incerteza radical.
A maioria dos cursos de economia pelo mundo fora proporciona aos estudantes uma formação em macroeconomia que combina, em proporções diversas, três ingredientes principais: a macroeconomia keynesiana da síntese neoclássica, no caso dos curricula mais datados ou com uma maior componente histórica; o pensamento novo-clássico e suas variações, que reinam incontestados nas escolas mais ferozmente ortodoxas; e as teorias e modelos novos-keynesianos. Já os pós-keynesianos são ignorados ou rejeitados pela esmagadora maioria das revistas e curricula académicos: estão para lá das margens do reconhecimento pela ortodoxia.
E no entanto, é entre estes últimos que encontramos muito daquilo que de mais interessante e relevante se tem feito em termos de macroeconomia, sobretudo para quem queira compreender o mundo em que vivemos hoje em dia. É o caso dos trabalhos sobre instabilidade financeira, sobre a endogeneidade da moeda, sobre a deflação das bolhas de endividamento como explicação das crises, ou sobre a distribuição do rendimento como factor que constrange a procura.
Uma Economia plural deveria abarcar uma maior diversidade de correntes de pensamento. Uma Economia socialmente relevante deveria preocupar-se com a capacidade de explicação e actuação sobre a realidade.
Se os professores não forem capazes de garanti-la, então cabe aos estudantes exigi-la.
(a minha crónica de 4ª feira passada no Expresso online).
Algum estudo que possa recomendar sobre "A irracionalidade do agente económico Estado, ou a perversão de Keynes"?
ResponderEliminarZézito, veja leia antes a empírica captura do Estado por comissários do capital, o anulamento do risco na actividade empresarial e de como ainda assim se consegue falir bancos com décadas
ResponderEliminarA relação entre a queda com fragor de alguns dos heróis de jose , a saber junker, ricardo salgado e outros exemplares do vírus do capitalismo, terá algo a ver com a irritação e alguma incomodidade nos comentários deste mesmo jose?
ResponderEliminarÉ que o sentido dos comentários começa a ser de facto excessivo
De