De uma forma gradual, por vezes quase imperceptível, o ministro Nuno Crato está a levar a cabo uma transformação profunda do sistema educativo. Trata-se de uma estratégia que articula três eixos fundamentais: encolher a oferta estatal; subtrair recursos indispensáveis a um ensino de qualidade e proceder a uma dualização da escola pública.
O objectivo último desta transformação parece ser claro: criar condições que favoreçam a expansão da oferta educativa privada, cedendo-lhe progressivamente o espaço desocupado pela erosão, delapidação e desqualificação da rede pública de ensino. Pelo caminho, o ministro de um partido que ainda ousa designar-se como social-democrata, desfere um golpe violentíssimo naquela que é uma das funções primordiais dos sistemas educativos próprios de sociedades democráticas: garantir a todos igualdade de oportunidades, criando e favorecendo condições de ascensão económica e social a grupos mais desfavorecidos.
Só ao arrepio deste princípio se pode compreender, de facto, a sucessão das medidas já tomadas e o anúncio gradual das que se pretendem implementar. Para além dos cortes orçamentais (muito para lá da troika) e do encerramento consecutivo de escolas, desprovido de fundamentos pedagógicos credíveis e cujos impactos territoriais se negligenciam, a contracção da rede pública de educação assenta numa redução substantiva do número de docentes (através da supressão de ofertas curriculares e do aumento do número de alunos por turma), num país em que os persistentes défices de escolarização e qualificação impedem qualquer comparação com os seus congéneres europeus.
Simultaneamente, abrem-se as portas à possibilidade de as escolas poderem vir a contratar de forma directa os professores e insinua-se no horizonte a implementação generalizada do famoso «cheque-ensino», embalado na perversa ficção do «direito de escolha do estabelecimento escolar» por parte dos alunos e seus encarregados de educação. A par do reforço da margem de autonomia das escolas para constituir turmas homogéneas (agregando os alunos em função dos resultados escolares obtidos), estas opções enformam no seu conjunto as bases de uma espiral de dualização e divergência no seio da rede pública de educação. As melhores escolas passarão a ser ainda melhores e as que enfrentam mais dificuldades (que reflectem essencialmente os meios socio-económicos em que se inserem) são deixadas à sua sorte.
Os impactos socio-espaciais destes processos de contracção, degradação e dualização da escola pública são evidentes, permitindo antever um aprofundamento dramático das desigualdades de acesso e sucesso escolar. Estamos a recuar décadas, às mãos de um governo que é o primeiro, no Portugal democrático, a considerar que a escola não é, afinal, para todos.
(Este texto, hoje publicado no Diário Económico, faz parte do frente-a-frente «esquerda vs. direita» que o jornal manterá até ao final de Agosto. O texto «da direita», de André Azevedo Alves, pode ser lido aqui).
É bom que se escrevam textos como este para abrir outros horizontes a muitos que ainda não entenderam o que se está a passar na educação e ensino.
ResponderEliminarNa verdade, não vejo incompetência ou amadorismo em tudo o que se está a passar nesta área. Longe disso, está tudo pensado - a privatização da escola pública, deixando algo de residual para quem não pode. Tal como na saúde.
A aparente "confusão", quanto a mim, serve muito bem esta estratégia - cria medos, ansiedades e angústias nos professores, potencia a divisão entre os docentes (que, a bem dizer, não é preciso ser muito "trabalhada"...).
Quem não entende o enredo em que está a escola pública, não pode combatê-lo.
O que tenho lido em alguma blogosfera docente não ajuda. Algumas propostas de "luta" são quase hilariantes. Falha-se o alvo em toda a linha. E não é difícil entender que assim sendo, pouco resulta e mais desânimo aparece.
Desgraçados dos alunos - metidos em turmas enormes cujo objectivo é o do "rigor", ou seja, serem preparados para exames. Desde o básico ao secundário.
Sai mais barato. Quem não acompanha o "rigor", segue por uma via diferente após o 1º ciclo e o 4º ano.
A escola pública residual será para estes. Alguns destes. Porque também aqui os interesses privados podem considerar aliciante este "nicho" de mercado.
Fernanda Costa
"constituir turmas homogéneas (agregando os alunos em função dos resultados escolares obtidos)"
ResponderEliminarTenho muita pena que isso não existisse na minha altura. Quando eu estava no ensino básico o ritmo era demasiado lento para os bons alunos (que se aborreciam com as facilidades), mas mesmo assim muito rápido para os maus alunos (que não conseguiam evoluir e aprender).
Resultado: metade da turma estava ou a aprender menos do que podia, ou a ser-lhe exigido mais do que conseguia dar.
Caro Rafael Ortega,
ResponderEliminarA discussão sobre o critério de constituição de turmas em função dos resultados escolares dos alunos, optando por soluções mais homogéneas ou mais heterogéneas, é um debate pedagogicamente muito respeitável. Isto é, há bons argumentos de um lado e de outro. Pessoalmente inclino-me para as vantagens das turmas heterogéneas (sobretudo por entender que a educação é mais do que adquirir conhecimentos: é também uma formação que passa por conhecer e saber lidar com as diferenças). Mas reconheço que - pedagogicamente - há também bons argumentos para defender a constituição de turmas homogéneas.
Dito isto, o meu ponto é essencialmente outro e assenta na percepção de que - atrever-me-ia a dizer na generalidade das escolas portuguesas - a jusante das «turmas homogéneas» encontramos efeitos cumulativos perversos. As melhores turmas tendem a ter os melhores e mais experientes professores de uma escola e, também tendencialmente, os melhores horários. O que gera um dualismo inaceitável, neste sentido não em termos pedagógicos mas sim em termos dos princípios que deverm nortear a escola pública.