Temos insistido que uma das dimensões centrais do neoliberalismo, como conjunto de ideias que inspiram as políticas públicas de transformação institucional, é a sua aposta numa profunda reconfiguração do Estado e das suas funções. O objectivo, sobretudo nos países mais desenvolvidos, é agora encontrar soluções institucionais e de financiamento que favoreçam a progressiva entrada dos grupos privados nas áreas tradicionais da provisão pública, associadas não só ao chamado Estado Social (saúde, educação ou segurança social), mas também à gestão e controlo de equipamentos e infra-estruturas públicas. Usar o Estado e os recursos financeiros que este controla para abrir novas áreas de negócio, onde os lucros estão relativamente garantidos, é a orientação de fundo.
Pois bem, o “Estado-Garantia”, que Passos Coelho adoptou como grande desígnio estratégico, como alternativa ao que designa por “Estado-Prestador”, é apenas a expressão portuguesa de uma tendência que aproveita a crise. O Nuno Serra tem exposto esta técnica neoliberal para desmantelar serviços públicos, comparando-a ao “corte de uma árvore de tamanho razoável”. No fundo, trata-se de assegurar que se continua a ir ao pote, de consolidar a lógica perversa da ideia do cheque-ensino que o Nuno tem identificado com grande detalhe. A proposta de usar recursos públicos para favorecer a transformação das impossíveis tarefas dos centros de emprego num negócio para as empresas de “recursos humanos” que cirandam por aí é um outro exemplo que tem de ser escrutinado. Não é necessário dizer que são muitos os grupos económicos que estão interessados em promover esta tendência de política pública e que, havendo imaginação e engenho, e também muitos intelectuais bem financiados em Fundações Pingo Doce, há muitas formas de o fazer. Os efeitos são, no entanto, previsivelmente semelhantes: menos transparência e mais desperdício no uso dos recursos públicos, desarticulação dos serviços públicos, cada vez mais residuais e reduzidos a pobres serviços para pobres, aumento das desigualdades, da captura privada do Estado, da corrupção.
Curiosamente, o mesmo Passos Coelho, na sua moção ao Congresso do PSD, fala da necessidade de uma política industrial que promova a transição empresarial do sector dos bens não-transaccionáveis para o dos transaccionáveis. É claro que o seu Estado-Garantia promove o oposto, já que abre aos privados áreas que cabem nos não-transaccionáveis. A protecção dos serviços públicos, a manutenção do tal Estado-Prestador, universal, que é a única forma de estar protegido contra estas predações, envia uma mensagem consistente aos grupos privados: ide trabalhar para os transaccionáveis dirigidos aos mercados interno e externo e larguem a fruta doce do Estado social, seus malandros.
É claro que as coisas são como são feitas: no contexto de uma moeda forte e sem flexibilidade e de uma globalização irrestrita, a facção dominante do capital nacional e a sua expressão política foram para onde puderam ir, dados os sinais cambiais e outros, e agora querem continuar nessa senda. Sem instrumentos de política económica adequados na escala adequada, torna-se muito mais difícil resistir. É claro que podemos sempre denunciar a imoralidade deste processo. No cenário deste euro é o que nos resta. Não chega, claro…
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