quarta-feira, 7 de março de 2012

Um país submerso? (I)

No costumeiro horário nobre, o «Prós e Contras» do passado dia 5 de Março ofereceu-nos mais um episódio eloquente do «romance da austeridade» com que se procura dissimular a situação económica e social em que o país se encontra. Desta vez, como se as soluções estivessem confinadas a um dilema simples e sedutor: «emigrar ou empreender».

Perante um painel dominado por comentadores que vivem na estratosfera do pensamento mágico em Economia, com os pés, de facto, muito longe da terra, teceram-se loas inanes à emigração (com frases de um patético senso comum, sobre o que é «ser brasileiro» e o que é «ser português», por exemplo) e sugeriu-se, repetidamente, a prodigiosa ideia de que o empreendedorismo é a grande e salvífica saída para a crise. Como se não estivéssemos a braços com um número astronómico de activos sem emprego (mais de um milhão) e com indicadores historicamente reduzidos de consumo privado e de confiança na economia.

Seria pedir muito, aos delirantes entusiastas do milagre empreendedor, que nos digam quais são os promissores nichos (pelos vistos «grandes nichos») de actividade económica a que os relapsos desempregados se podem dedicar, uma vez treinados e imbuídos das fantásticas virtudes da «atitude empreendedora»? E que nos digam também, já agora, onde está o poder de compra que assegura o consumo dos inovadores bens e serviços que esse potencial exército de «self-made men» irá produzir?

Felizmente, a presença do Jorge Bateira (e também de Rui Pena Pires) permitiu esbater um pouco o êxtase onírico que pautou este «Prós e Contras», lembrando o óbvio (ver, em especial, o início da segunda parte): a importância das condicionantes sócio-económicas e a necessidade de enfrentar as políticas que se têm empenhado em destruir emprego, obrigando de forma redobrada a retomar os termos em que a discussão se deve concentrar: estratégias e políticas públicas capazes de reactivar os tecidos produtivos, o consumo e a própria economia.

Em contra-mão, portanto, com a lógica de um programa desenhado para apresentar a emigração e o empreendedorismo como as soluções disponíveis, o que resta ao nosso alcance, para ultrapassar a crise. Isto é, como se de repente, submerso pela austeridade, o próprio país se tivesse tornado irrelevante e deixado de existir.

8 comentários:

  1. Inteiramente de acordo. O programa é confrangedor desse ponto de vista e pior: cada exemplo, em TV,torna-se exemplar!
    A ideologia do empreendedorismo não foi, portanto, desmontada e, se não fora Jorge Bateira, a ideia com que o público mais distraído ficaria é que é tudo uma questão de "atitude pro-activa" !!!
    Maria Augusta Babo

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  2. O Jorge Bateira esteve muito bem, a oposição a certo tipo de ideologia deve ser feita de forma clara, o tipo de discurso deve ser adequado ás inanidades que são proferidas sem qualquer receio de se passar a ideia de pouca moderação.

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  3. Vi alguns minutos do programa com um alucinado a falar de empreendorismo. Peguei num livro ... muito mais interessante!

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  4. Alguém viu por aí um yupi? Não eram eles que iam fazer "disto" um grande país? Ou emigraram todos? Ou não passam de anjos que nunca se materializam? Ao menos a Angela, materializa!

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  5. Nuno, só para manifestar como estou inteiramente de acordo com a tua análise. Nem mais. Aquele «prós e contras» está a precisar de ser tomado de assalto :-P

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  6. Se há coisa corajosa (e sacrificial) é o Jorge Bateira ir a um programa daqueles. É preciso muito amor ao género humano para suportar, estoicamente, mais de duas horas de banalidades e "bom senso" sobre os méritos do empreendedorismo.

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  7. Temos de fazer um survey para mudar o mindset e potenciar os nossos skills...

    ... e direi também mandar estes pedantes a um cero sítio.

    Bute lá *todos* fazer a nossa própria empresa! Espera... näo era Portugal o 2.o país (só atrás da Grécia) em % de pequenas empresas no total? Ah, e tal, espírito empreendedor parece que afinal já há que sobre! Nos EUA a % de trabalhadores por conta d eoutrém é bem maior que em Portugal... ah, pois, porque uma Ford sozinha emprega milhöes.

    E claro, o betinho da Católica que já nasceu rico e a quem tudo lhe foi oferecido de bandeja por conhecimentos e cunhas é um ganda herói, um "self made man". Outra que os pariu!

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  8. Sim, claro, a mobilidade social vertical por cá é baixíssima e estas história dos "self-made men" são uma treta ignóbil...
    Sim, é claro, o programa é lavagem ao cérebro em estado puro e este pessoal que canta de galo sobre "empreendedorismo", a começar pela apresentadora, precisavam mais é de... bom, "outra que os pariu", claro que sim.
    Sim, também é verdade que nós e os gregos é que, bem vistas as coisas, somos estatisticamente exemplos mesmo de "empreendedorismo de rosto humano" e à "escala humana", etc., porque toda essa retórica "pós-fordista" da treta... sim, também é verdade: deitemos quanto antes tudo isso para o lixo.
    Pois, e é claro que só mesmo o Jorge, seja por estoicismo, por catolicismo ou pelo que for, é capaz de aturar de forma composta um ambiente tão grotesco sem se (e os) descompor de imediato...
    Pois, tudo isso é verdade. E também é verdade que uma sociedade estar a discutir as vantagens de se "ir embora" é prova provada de que essa sociedade já deixou em boa verdade de existir como tal. É de facto (performativamente) já só um somatório ou agregado de indivíduos mais ou menos racionais...
    Bom, mas por outro lado "eles" é que mandam, não é? Só o "empreendedorismo social" destas media stars... já viram bem como ele mete facilmente no bolso o de todos nós, outros?
    Esse é que é verdade fundamental.
    O resto, meus caros (incluindo estas minhas linhas), é conversa.
    "Words, words, words", como desabafava o outro...

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