segunda-feira, 29 de junho de 2009

Quando o neo-liberalismo cega

Em editorial do Público (27 de Junho), José Manuel Fernandes (JMF) compara o “manifesto dos 28 economistas” que apelam à reavaliação dos grandes investimentos públicos com o manifesto “O debate deve ser centrado em prioridades” de que alguns dos Ladrões são subscritores (texto aqui). Deixo para outra ocasião um comentário àquele manifesto e fico-me hoje pelo editorial de JMF porque ele ilustra bem como “as dúvidas, pertinentes ou não, acerca de alguns grandes projectos podem ser instrumentalizadas” para a defesa de uma política económica neo-liberal, mesmo contra toda a evidência do seu fracasso.

1) Para valorizar a sua posição argumentativa, JMF não demora muito a recorrer ao ‘argumento de autoridade’: “apesar de, entre os signatários, estarem os mais respeitados economistas portugueses”. Mas respeitados por quem? E a que título? Custa a perceber que JMF, um assumido liberal, mostre tanta reverência perante um grupo de personalidades que, certamente de boa fé mas com um texto de rigor muito duvidoso, entendeu dar um contributo para o debate eleitoral sobre a política de investimento público. Até acredito que alguns deles não se sintam à vontade com o argumento de que quem mais tempo ou mais vezes foi ministro, ou mais vezes foi entrevistado nos telejornais, deve ter mais razão que um economista que escreve num blogue. Será que para JMF as ideias já não valem por si mesmas?

2) Queixa-se de que o “manifesto dos 28 economistas” foi acolhido na blogosfera com comentários a “tentar desvalorizar os seus signatários”, “destruí-los na sua reputação em vez de debater as suas ideias”, afirmando mesmo que ocorreram “múltiplas tentativas de assassinato de carácter”. Paradoxalmente, JMF não resistiu à tentação de (pretender) desvalorizar o manifesto de que discorda: [entre os signatários] “abundam os sociólogos, os politólogos, os geógrafos e há até um psicólogo social e um engenheiro agrónomo.”

De facto, há 16 signatários que não são economistas num total de 52. Pela minha parte, acho que é pouco tendo em conta que, sendo o desenvolvimento do País a sua preocupação comum, está em causa um processo complexo e multidimensional cuja discussão requer forçosamente saberes de diferentes disciplinas, e não apenas teóricos mas também práticos. De resto, é natural que JMF não tenha consciência do reducionismo monodimensional da tão promovida ‘análise custo-benefício’ porque os próprios economistas que reverencia partilham essa mesma inconsciência, tal é a cegueira que a ortodoxia da economia produz mesmo em respeitáveis economistas de orientação social-liberal.

3) Mas JMF não fica por aqui em matéria de desvalorização dos seus adversários. Referindo-se à política económica defendida em “O debate deve ser centrado em prioridades”, afirma que os seus objectivos, “como o “pleno emprego”, só foram alcançados de forma duradoura nos países comunistas mas à custa da pobreza geral.” Assim, em desespero de causa, conclui o editorial com um ataque ideológico que convoca o fantasma do comunismo e, de caminho, tenta desvalorizar intelectual e moralmente aqueles de quem discorda. Bravo!

4) Já quanto ao “manifesto dos 28 economistas” diz JMF: “O argumento central era simples: tais investimentos agravariam a dívida externa e, ao recorrerem ao crédito de forma intensiva, criariam dificuldades às empresas privadas para se financiarem numa época de escassez de crédito”, a que acrescem dúvidas quanto aos resultados futuros da exploração de alguns dos projectos e à respectiva criação de emprego.

Acontece que Vital Moreira garantiu na sua coluna no Público (23 de Junho) que “os referidos investimentos recorrem essencialmente a capitais privados e serão em grande parte suportados com a remuneração pelo uso das infraestruturas durante a sua vida útil.” Por outro lado, é do domínio público que também há financiamento comunitário nestes projectos. Assim, fica-se com a sensação que os grandes projectos não vão custar nada aos cofres do Estado. Como não será bem assim, era de esperar que JMF tivesse feito algum trabalho de casa e, recorrendo aos excelentes jornalistas de economia de que dispõe, nos tivesse apresentado uma posição mais informada.

Agora, vir repetir o argumento da expulsão do investimento privado pelo investimento público só mostra que JMF não é capaz nem de confrontar essa teoria com a realidade nem de ponderar opiniões que caem fora do seu paradigma. Não consegue ver que numa gravíssima recessão há muita poupança que, por receio quanto ao futuro da parte de banqueiros, empresários e famílias, não está a ser investida na “esfera real” da economia. Se o investimento privado já está ultra-deprimido, como é que nestas condições o novo investimento público vai expulsar o investimento privado que ainda se faz? Bem pelo contrário, como diz James K. Galbraith (aqui), “a despesa pública vai atrair, em vez de expulsar, o investimento privado.”

Para os leigos: a expulsão do investimento privado pelo público refere-se a um processo de ajustamento da procura agregada simulado num modelo esquemático que trabalha com o pressuposto de que a capacidade produtiva da economia está próxima do pleno emprego. Infelizmente, mesmo os economistas esquecem com frequência que os seus modelos têm pressupostos e que estes nem sempre correspondem à situação em discussão. Como Paul Krugman bem lembrou há dias (aqui), além de não fazer sentido invocar aquela ideia no actual contexto, a sua popularização nas actuais circunstâncias pode mesmo ter efeitos perniciosos.

Concluindo. Dado que as autoridades têm pudor em intervir a sério nos bancos, as dificuldades de acesso ao crédito persistem por toda a Europa. No geral, a União Europeia continua ‘a dar o seu melhor’ para que vários Estados da Zona Euro (para além de alguns membros da UE fora do euro) cheguem ao fim do ano com gravíssimas dificuldades de financiamento (vulgo ‘bancarrota’) sem que tenham executado programas significativos de estímulo à economia. O que nos levará, noutra oportunidade, a uma discussão sobre o que está realmente em causa neste debate: a insustentabilidade da actual configuração da Zona Euro, algo que os 28 economistas não tiveram a coragem de explicitar como sendo a verdadeira preocupação que a todos congrega mas que está bem presente no europeísmo de um manifesto que, segundo JMF, aponta para o “comunismo”.

PS: “a globalização é um facto da vida – tal como a gravidade é outro facto da vida” (JMF dixit!)

7 comentários:

  1. É só indicar dous pontos. Acho especialmente interessantes dous pontos aqui. O primeiro é a teima da maioria dos economistas liberais (e até de alguns outros), e não só de JMF, em considerar que a economia é cousa só de economistas. Isso recupera uma ideia de tecnocracia que prologa apenas uma apoteose dos argumentos de força que o JMF parece mostrar à partida. O segundo é que esses argumentos de força dão cabida para argumentos como o destacado finalmente por Jorge Bateira do discurso de JMF: de ser a globalização tão natural quanto a gravidade!

    Parabéns.

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  2. Enquanto geógrafo, estou manifestamente indignado com tamanha pequenez patente no discurso de JMF. Alguém que não percebe que a ciência económica é um meio e não um fim em si, tratando-se de uma ferramenta útil na consecução do desenvolvimento e qualidade de vida, não merece ser jornalista, quanto mais director de um jornal de referência como o Público.

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  3. Estes srs do "Ladrões de Bicletas" estão a começar a desiludir-me.
    Então os srs têm o descaramento de ligar, de dar tempo de antena a sabujos da pior espécie como o JMF.!!!!!
    Mas quem é afinal esse JMF senão um oportunista neo-liberal-nazi-fascista.!!!!!

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  4. "Para valorizar a sua posição argumentativa, JMF não demora muito a recorrer ao ‘argumento de autoridade’:“apesar de, entre os signatários, estarem os mais respeitados economistas portugueses”"

    Lol, também apanhei essa. Basta uma falácia destas para deitar por terra qualquer argumento subsequente. Empiricamente, dá-me a entender que estes "cegueteas" neoliberiais estão cheios deste tipo de argumentos.

    Como a realidade já não consegue justificar a validade e o valor das suas ideias - ou de pelo menos a sua adequação ao paradigma - estes senhores têm que arranjar subterfúgios no seu argumento. Triste... muito triste.

    De qualquer forma algo me diz que só uma pequena parte da população sabe o que é um 'argumento de autoridade', muito menos o que são falácias de argumentação.

    Sociedade do conhecimento my ass ...

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  5. MAMARACHOS 2+? vs MAMA-ROSA 0+?
    estádio do Bessa
    estádio do Algarve
    derrapagens, terraplanagens!!!

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