sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

O debate não pode parar

A controvérsia em torno da questão de saber se a Economia é ciência revelou um conjunto de ideias muito contestáveis por parte de reconhecidos cientistas sociais. Destaco três ideias, que me parecem ser facilmente infirmadas, sem teste quantitativo, pela simples observação da boa prática científica. Em primeiro lugar, a ideia de que a previsão de acontecimentos futuros é o critério de demarcação entre o que é ciência e o que não é. Em segundo lugar, a ideia de que só é científico o que é quantificável. Se adoptássemos apenas estes critérios duvido que alguma ciência, social ou natural, passasse no crivo. Em terceiro lugar, a ideia de que a quantificação é pura e objectiva. Na realidade, a quantificação requer a criação de sistemas de classificação e de mensuração, a selecção de modelos a partir dos quais são deduzidas hipóteses testáveis, a selecção de variáveis ‘endógenas’ e ‘exógenas’, a selecção de indicadores, a selecção de métodos de tratamento e análise de informação. Posso continuar. Em suma, um conjunto de decisões que estão para além da lógica ou da evidência. Creio que estas três ideias são enquadradas pelo pensamento dicotómico, há muito ultrapassado, que opõe ciências sociais/ciências naturais, factos/ valores, e que parece presidir à selecção de uma imagem anacrónica da física como modelo de ciência. É consensual que não há métodos universais. Existe uma pluralidade de métodos em cada área disciplinar. Os problemas com que as ciências se confrontam são variados e exigem ferramentas adequadas.

Não tenho uma visão idealizada da ciência. No entanto, considero que a ciência, na sua pluralidade metodológica, e sobretudo por causa dela, produz, apesar de tudo, o conhecimento mais fiável que é possível obter. A validade do conhecimento produzido é conferida sobretudo pela sujeição das teorias à crítica e ao escrutínio público. É este o traço distintivo das várias ciências. É por isso que recorremos à ciência e não à bruxaria. É por isso que sabemos fundamentar a exclusão do criacionismo dos curricula escolares e defender a inclusão da teoria evolucionista. É isto também que dá uma responsabilidade especial aos cientistas, e talvez ainda mais aos cientistas sociais que participam no debate público, como é o caso de Vasco Pulido Valente (VPV). Muitos cientistas sociais têm, aliás, desenvolvido um trabalho valioso, sem teorias abstracto-dedutivas, e com estudos empíricos não quantitativos, que mostram o poder «performativo» das teorias sociais, isto é, a capacidade das teorias em transformar à realidade à sua imagem e semelhança. A ciência económica é obviamente o melhor exemplo disto. Cientificas ou não, as teorias sociais que em cada momento são mobilizadas podem afectar a vida de muito boa gente. Considero que os cientistas sociais têm a obrigação de, pelo menos, chamar a atenção para o facto de estarem disponíveis teorias mais ou menos adequadas. Não vale tudo. E a crise revela que durante muito tempo foram hegemónicas más teorias que acabaram por ter consequências desastrosas. Isto não pode ser escamoteado. Se as teorias enquadram, de forma mais ou menos explicita, as decisões políticas é desejável que sejam as melhores teorias a fazê-lo. Penso que também foi isto que os cinco economistas críticos procuraram argumentar e que eu salientei na minha crítica à insustentável posição de Vasco Pulido Valente sobre a ciência económica.

No final da sua posta, Pedro Lains insinua que eu tenho intentos censórios. Um processo de intenção totalmente infundado. Basta ler com atenção o que eu escrevi. Deve ser evidente para todos que o debate só progride com pluralismo, até porque só o debate plural, como John Stuart Mill defendeu melhor do que ninguém, permite identificar o erro. Os economistas tendem, infelizmente, a ser muito pouco liberais neste campo. Como o José Maria já aqui indicou, a coisa funciona por exclusão. O debate plural pressupõe escrutínio e crítica intelectuais que não são obviamente indiferentes à posição, de maior ou menor destaque e responsabilidade, que os diferentes protagonistas ocupam. Simples questão, secundária certamente, mas não totalmente irrelevante, de direitos e deveres. Enfim, a crítica de VPV pareceu-me profundamente incorrecta. A defesa que Pedro Lains fez da posição de VPV também. De resto, o debate não pode parar. Só assim é que se progride.

4 comentários:

  1. I.O facto dos proponentes máximos da ortodoxia na ciência eeconómica se apresentarem sempre como virgens ofendidas quando algum esboço de crítica consequente vem a terreno não pode deixar de merecer algumas considerações.

    II. Eu li evidentemente o artigo no Púbico e acho que ele só peca por jogar excessivamente na defensiva. A crítica que se tem de trazer a terreiro tem de ser deveras mais acutilante, e o artigo no fim apenas se limita a referir nomes como "pós-keynesianos" e não sei que mais e a repetir meros chavões como "racionalidade limitada", teorias que afinal também a ortodoxia oficial já acabou por integrar.

    III. Em última análise estaria em saber o que é que se pode esperar da ciência económica. Mesmo que os diversos paradigmas que hoje a enformam não sejam todos uma imitação da física nos mesmos moldes que o neoclássico, acho que a grande maioria deles ainda partilham a mesma fé de a partir da teoria "poder dispor da realidade": se a quantica produz televisores, se a mecanica manda foguetões para o espaço, sabe-se lá o que pode vir das económicas... Aí V.P.V. não está mal, porque afinal qual foi o paradigma económico que pôde ver preto no branco, antecipadamente o eclodir da crise actual? Talvez só marxista, mas mesmo assim ainda só algumas interpretações... Mas eis qualquer coisa que V.P.V. nunca iria conceder!

    IV. Mas a realidade social não é estática. E os paradigmas são o que são. O mundo humano brota de intencionalidade e a mecânica das teorias têm muita difiiculdade, assim, em seguir o seu curso. Corolário: crítica por todo o lado. Não acho que se possa atribuir ao paradigma dominante (neoclássico) a crise do subprime em específico, e seria negar a realidade dos factos e da história pensar em contrário. O que criou a crise é tanto a configuração histórica do capital internacional como os processos ideológicos que a gerem (onde a fé neoclássica é só um momento em vez de ser uma realidade totalizante)... Os maiorais das finanças afinal já fizem a sua auto-crítica: Greenspan - "é um problema de alinhamento de interesses", mas a gente tem dificulade em encaixar isto em qualquer paradigma em particular; Trichet - "é um problema sobre alocação última dos riscos", e mais uma vez não encaixa em nenhum paradigma em particular.

    V.Nos dois casos, técnica e moral confundem-se; mas isso é uma coisa que os paradigmas têm muita dificuldade em formalizar e, diria, nem sequer podem fazê-lo, porque senão recaímos numa visão totalizante da ciência que queremos justamente evitar. O problema económico é extra-teórico; é um problema da prática ("não se trata de interpretar o mundo, mas de transformá-lo" - Marx); a teoria é só um momento no revolução da realidade (mas não uma revolução para ficar tudo na mesma)... A economia, enquanto ciência, só daria... para... "um afinamento teórico" do discurso; essa era é a sua poesia-poiesis, e a acabar já pareço o José Barata Moura.

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