sábado, 19 de julho de 2008

Vital Moreira, socialista e liberal (em economia)

No artigo "Hostilidade assimétrica" Vital Moreira (VM) repetidamente qualifica de “antiliberal” tudo o que está à esquerda da direcção do PS. Ao mesmo tempo, assume a actual social-democracia europeia como o “fim da História” do movimento socialista. Percebe-se que VM pretenda atribuir à versão portuguesa da Terceira Via credenciais de genuína esquerda socialista. A verdade é que as ideias de VM, e da Terceira Via em geral, não respeitam os princípios históricos do socialismo. Aliás, não foram mais que uma caução intelectual para estratégias de sobrevivência de organizações partidárias em crise.

O património histórico da esquerda socialista rejeita três princípios subjacentes à doutrina liberal do século XIX sobre a economia: “que o preço do trabalho é fixado pelo mercado; que o dinheiro deve ser criado através de um mecanismo que se auto regula; que as mercadorias devem circular livremente entre os países quaisquer que sejam as consequências” (Karl Polanyi, "A nossa obsoleta mentalidade de mercado", 1947: p. 68). Numa formulação pela positiva, diríamos hoje que a esquerda socialista defende: a) mercados de trabalho regulamentados a favor dos assalariados, e eficazmente fiscalizados; b) apertada regulamentação da esfera monetária da economia e controlo democrático da política monetária; c) regulamentação do comércio e dos pagamentos internacionais que tenha em conta a especificidade do desenvolvimento de cada país e a autonomia da respectiva política económica.

É verdade que as políticas de redistribuição do rendimento através de uma tributação progressiva, e o conjunto das políticas sociais que caracterizam o essencial do Estado Social europeu, integram o património da esquerda socialista. No entanto, situam-se num segundo anel em torno do núcleo central acima enunciado; são uma aquisição histórica decorrente das lutas sociais, culturais e políticas em torno de princípios que visam moldar a própria economia. Muitas dessas políticas sociais foram assumidas por governos europeus de diferente matriz ideológica durante a segunda metade do século XX e hoje fazem parte da chamada Estratégia de Lisboa.

Quer isto dizer que hoje somos todos socialistas? Evidentemente que não, e a explicação é simples: as políticas de redistribuição do rendimento e as políticas sociais são políticas de reparação dos efeitos do funcionamento da economia segundo princípios mais ou menos (neo)liberais. No essencial, as políticas sociais são compatíveis com os três princípios liberais acima enunciados. O próprio VM o reconhece em "Adeus socialismo"? ao defender que o socialismo contemporâneo também é liberal na economia.

Como Karl Polanyi bem mostrou, a mercantilização do homem, da natureza e da moeda na primeira metade do século XIX criou na Grã-Bretanha uma “economia de mercado”, um sistema de mercados totalizante que impôs as suas exigências (e ideias) ao resto da sociedade. O desastre económico, social e ambiental que se seguiu deu origem a um poderoso movimento social de sentido contrário que rapidamente se estendeu ao Continente europeu. Desde então os socialistas lutam contra a mercantilização geral das relações sociais e procuram, através de reformas democráticas, reinstitucionalizar a economia colocando-a ao serviço da sociedade. Nunca defenderam a abolição dos mercados e a estatização da economia. Mas VM tem parcialmente razão: sempre foram antiliberais no que toca aos mercados do trabalho, dos recursos naturais e da moeda.

As crises que hoje vivemos (internacional, UE) vão certamente impulsionar uma actualização do pensamento socialista sobre o modo como nos nossos dias a economia deve estar ao serviço do bem público. Nesse processo, o núcleo ideológico originário continuará a ser inspirador: trabalho humano, natureza e moeda não são mercadorias. E, mais cedo ou mais tarde, VM vai ter de reconhecer que o seu “socialismo liberal” não é mais que um liberalismo com sensibilidade social, um social-liberalismo.

3 comentários:

  1. Não referindo, claro, que ele acha que "oposição ao Tratado de Lisboa" é a mesma coisa que "hostilidade ao aprofundamento da UE" como resalta logo no primeiro parágrafo.

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  2. qualquer dia para ultrapassar vital pela direita só sendo anarquista

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  3. excelente. por coincidência estou a reler a grande transformação. o prefácio da minha edição também foi escrito pelo stiglitz. esse homem está a ir a todas. para quem dizia há uns 10 anos que era contra o socialismo democrático (obviamente, também não era a favor do não democrático)...

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