Como escreve Manuel Loff, no Público (13/11), a segunda vitória de Donald Trump configura uma viragem histórica.
Esta vitória parece não encaixar nos modelos dos cientistas políticos da mesma maneira que a crise não existia nos modelos económicos neoclássicos. Abundam as análises, focando-se no papel da inflação e do custo de vida, no apoucamento, com décadas, de grande parte da classe operária americana, bem como o papel da desinformação e das redes sociais ou do jogo sujo da campanha baseada na mentira, no racismo, na xenofobia, na lgbtfobia, e num discurso populista reacionário, que pretende fazer retornar os EUA a um passado idílico que nunca existiu, contra uma suposta elite corrupta de que na verdade o próprio Trump sempre fez parte. Todos estes pontos, e outros, como o apoio demcrata ao genocídio, são válidos e cumulativos.
O facto é que Trump não ganha apenas nos EUA. Qualquer análise que se preze não pode esquecer que Trump faz, obviamente, parte de uma tendência generalizada nos países do norte dito global, onde a extrema-direita ganha ou, pelo menos, cresce de uma forma tal que influencia os termos do debate, extrema as posições da direita tradicional e coloca a esquerda na defensiva.
Trata-se, portanto, de uma viragem histórica com alcance internacional. Uma tendência óbvia é olhar para outras eras históricas semelhantes. Estamos, de facto, bem próximos do período após a Primeira Guerra Mundial, com a progressiva ascensão dos fascismos, a grande depressão, as guerras civis e que culminou na Segunda Guerra Mundial. As semelhanças são claras e têm sido notadas amiúde.
O que não tenho visto (e pode ser falha minha) é o encontrar das causas desta viragem na última viragem histórica de dimensões semelhantes – falo dos anos 70 e 80 do século passado.
A história é conhecida: um conjunto de conflitos imperialistas como a guerra do Vietname, choques petrolíferos ou a incapacidade do sistema monetário internacional para fazer face ao desemprego e à inflação, levaram a uma insatisfação geral que, em todo o lado, a começar nos EUA, levaram a uma grande viragem política.
Reagan e Thatcher são, reconhecidamente, os obreiros desta viragem em que as classes médias e setores das classes trabalhadoras votaram em quem desceu impostos, reduziu serviços públicos, reduziu a proteção ao emprego e acabou com a política de pleno emprego, fazendo cortes nas políticas sociais, privatizando e “partindo a espinha” aos sindicatos. Ao nível internacional, esta viragem seria conhecida como Consenso de Washington, com a imposição do livre comércio internacional, das taxas de câmbio flexíveis, da abertura e desregulação de mercados.
Como hoje, a viragem foi geral também. Em Portugal foi levada a cabo por Cavaco Silva e na UE acabou por se cristalizar no tratado de Maastricht em 1992. Desta viragem vem a obsessão com o défice e a dívida pública e o estado de austeridade permanente, a independência dos Bancos Centrais e o seu foco exclusivo na inflação, a substituição das políticas de desenvolvimento pelo foco nas (sempre pouco claras) políticas de inovação, a política económica reduzida às descidas de impostos para as empresas, ao auxílio emergencial para os mais pobres e aos salários como variável de ajustamento.
Esta viragem política corporizava o projeto neoliberal apresentado, principalmente desde a Segunda Guerra Mundial por economistas e filósofos políticos como Friedrich von Hayek ou Milton Friedman que, principalmente desde o fim da Segunda Guerra Mundial davam o aval teórico e ideológico ao projeto de expansão da exploração capitalista mercantil, de reconfiguração do Estado e rejeição de qualquer projeto coletivo.
Com isto, os projetos neoliberais de Reagan e Thatcher não se consolidaram como um conjunto de propostas político-económicas a apresentar ao debate democrático, mas antes como uma inevitabilidade económico-contabilística. Esta ideia ficou bem expressa na fórmula dada por Margaret Thatcher: Não há alternativa (a famosa TINA – There Is No Alternative).
Sabemos também que, quando questionada sobre a sua maior vitória, Thatcher respondeu: Tony Blair e o New Labour. É que os partidos de centro-esquerda adotaram a TINA e tornaram-na um consenso alargado. Aceitaram os seus pressupostos, aceitaram os termos da discussão e aceitaram, grosso modo, as suas políticas. O centro-esquerda tornou-se neoliberal. Em Portugal, foi com Guterres que tivemos grande parte do ímpeto privatizador, por exemplo.
Giddens tratou de codificar isto tudo na sua famosa proposta da terceira via: um Estado que promove a justiça social e a igualdade de oportunidades através dos mercados. Os Estados ficam reservados ao papel regulador ou assistencial. As questões do trabalho foram abandonadas, a não ser quando se tratou de reduzir direitos.
A principal diferença entre neoliberais de direita e neoliberais de esquerda, neste contexto, passou a ser na sua situação relativamente às políticas afirmativas de justiça social, ganhando então um papel determinante abordagens seletivas, ainda que relevantes, aos direitos das mulheres, das minorias raciais ou sexuais. Tudo o resto foi, ao longo de décadas, pouco mais do que um grande simulacro de democracia e onde os verdadeiros governantes eram o mercado e o capital, com os seus poderes disciplinadores de governos errantes.
Foram os anos do consenso neoliberal. Mais de um lado ou mais de outro, tem sido isto que tem governado no norte global. Funcionou particularmente bem para os 1% ou 0,1% mais ricos que viram a sua riqueza galopar de forma impressionante ao longo destas décadas. Mas também funcionou, ou parecia funcionar, para o resto das pessoas, ainda que de forma mais moderada. Funcionou enquanto, nos seus próprios termos, a menor geração de riqueza permitia redistribuir um pouco para “os de baixo”. Os mais pobres podiam perder o emprego, mas recebiam a sua assistência, garantindo-se mercados de trabalho ditos flexíveis. Quem mantinha o emprego perdia poder de compra, mas podia acreditar que as dificuldades eram passageiras e iam ser convertidas em oportunidades. Quem era jovem acreditava ainda no potencial do trabalho (de um bom emprego) para se ter uma vida desafogada (a crédito), típica de uma classe média próspera. Tendencialmente, as minorias, sempre habituadas à exploração, sentiam até um espaço real para a progressão nas suas vidas.
Havia problemas persistentes, claro. Mas eventuais dificuldades como desemprego, perda de poder de compra, serviços públicos degradados, eram facilmente justificados pela TINA. Ao Estado não sobrava mais do que regular, promover a competitividade ou a flexibilidade ou a assistência a quem ficava irremediavelmente pelo caminho. Mais, o neoliberalismo teve ainda a capacidade de esvaziar os problemas sociais e coletivos, tornando-os problemas individuais com soluções individuais. Noutra conhecida formulação de Thatcher, esta refere que “a sociedade não existe – há homens e mulheres individuais e há famílias e nenhum governo pode fazer nada a não ser através das pessoas e as pessoas olham primeiro para si próprias”.
É este sistema que tem sido derrotado um pouco por todo o lado. Por motivos vários, as pessoas estão descontentes. Principalmente desde a crise, as pequenas vitórias deste sistema tornaram-se particularmente voláteis e à crise económica somou-se uma crise política onde as propostas neoliberais convencionais começaram a ser recusadas. Os Governos sucedem-se e nada muda. Os Estados continuam indisponíveis para assumir uma política económica que de facto resolva os problemas sociais. As pessoas começaram a procurar alternativas.
Perante isto, de dentro do próprio sistema e da sua elite, brotou (ou ressurgiu) em força uma resposta reacionária à crise do neoliberalismo.
Esta alternativa dispara em vários sentidos: no ataque à classe política vista como essencialmente corrupta; ataque ao Estado, visto como uma máquina ineficiente que apenas serve para cobrar impostos; ataque às minorias que, apesar de tudo, viram as suas possibilidades e os seus direitos subir de uma forma consistente nas últimas décadas, tornando-se um ótimo bode expiatório; ataque ao exterior, visto como ameaça existencial à manutenção da nação e à sua segurança; ataque à suposta elite corrupta que controla tudo na sombra; ataque aos especialistas, cientistas, jornalistas e todos os que medeiam a informação que chega às pessoas, vistos como instrumentais para o poder dos políticos e para a manutenção da dita elite. A crise do neoliberalismo é causada pelos políticos, pelas minorias, pelos estrangeiros, pelas elites, pelas mulheres. Por tudo menos pelo próprio neoliberalismo.
Em cima disto tudo, está, portanto, uma rejeição do consenso neoliberal das últimas décadas. Uma rejeição ultraconservadora e fascista.
Aliás, importa mesmo não infantilizar os eleitores. Estes, de uma forma geral, fazem a sua análise da situação política, económica e social e compreendem que existem tensões que os neoliberais de vários tipos não souberam ou não conseguiram resolver nas últimas décadas. Votam na extrema-direita conscientemente e concordam com o grosso das suas propostas.
O que a extrema-direita não faz é combater a TINA de Thatcher. Essa continua bem estabelecida a ditar as possibilidades de políticas e assim vai continuar enquanto a verdadeira elite capitalista continuar a ditar o futuro dos países.
Por isso a esquerda não consegue capitalizar a crise do neoliberalismo. As propostas de Trump podem ser vistas como radicais, difíceis, arriscadas, discriminatórias, mas encontram-se no contexto das possibilidades deixadas pela TINA. Sendo vista como uma espécie de aritmética, de onde não se pode fugir para a conceção de políticas económicas e sociais, a TINA coloca a esquerda do lado de fora das possibilidades de política.
Mantendo-se dentro dos ditames da TINA, a extrema-direita é, principalmente, um instrumento do capitalismo mais medíocre na sua tentativa de garantir a manutenção do seu poder num contexto de crise do consenso neoliberal.
É muito claro que esta viragem histórica é apenas um acentuar de uma viragem à direita que começou há mais de três décadas. Por isso temos uma suposta luta contra as elites a vir de quem esteve sempre na elite, por milionários que, uma vez na política e no poder, se ladeiam de políticos profissionais que sempre foram de direta e que agora têm rédea livre para levar adiante as suas políticas. Por isso, as políticas propostas são apenas a continuação das políticas neoliberais de retirada de direitos, desmantelamento de serviços públicos ou redução de impostos para os mais ricos.
A elite capitalista, presa no labirinto das falhas do neoliberalismo, viu-se obrigada a fazer double down e intensificar os processos de acumulação de riqueza e de poder, de exploração e retirada de direitos, que já vinha a fazer desde Reagan e Thatcher.
Com o objetivo de acabar, o mais depressa possível, com o trabalho sujo do neoliberalismo, Trump, Bolsonaro ou Ventura foram paridos pela TINA de Thatcher. O trabalho de os derrotar tem de começar pela destruição dessa TINA que os pariu.
2 comentários:
Não põe na equação uma variável: o comércio livre, a globalização, a OMC e a ascensão da China. Basta olhar para o peso do PIB do G7 no PIB mundial há 30 anos e agora. E começa a ser visível a perda de superioridade tecnológica: é ver a Huawei, por exemplo, ou a VW. Como dizem os franceses, l'arroseur arrosé. E como se diz na minha terra, agora assobiem-lhe às botas. Não fossem parvos.
Trump ganhou porque obteve o resultado eleitoral para isso. Kamala e "as causas" não ganharam ao "dinheirinho no bolso". E quem se meter a tentar ganhar eleições com causas, sem perceber que se está tudo a marimbar para isso, não percebe nada. O crescimento da direita nas suas várias declinações é a prova disso. Entre o gay, o imigrante, o cãozinho, as alterações climáticas, o socialismo, o igualitarismo, o vencedor será sempre a barriguinha cheia. Não foi o Vladimir Ilyich Ulianov que disse que não se pregava a revolução a estômagos vazios? Também não se prega a bolsos vazios. Estas leições foram a Aljubarrota da Harris: tinha tudo para ganhar, como os Castelhanos, mas tomou as decisões erradas. E era demasiado "esquerdalha". Demasiado "causas". Trump foi Nunálvares e D. João I. Escolheu o terreno e aguentou. O resto, é História.
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