terça-feira, 17 de setembro de 2024

OE 2025: simulacro democrático

A 17 de Julho último, o Expresso noticiou que “por lei, o Governo tem de entregar todos os anos ao Parlamento os quadros com a despesa pública prevista para os próximos anos, fixando um valor para o ano seguinte que tem de ser replicado no Orçamento do Estado. A proposta de lei chegou, desta vez, sem os quadros. A Assembleia da República já o pediu ao Governo, mas ainda não foi entregue”. 

Cerca de dois meses depois, no fim da semana passada, o governo fez, finalmente, chegar aos partidos políticos o tal Quadro Plurianual da Despesa Pública que estava em falta. Este quadro. 


No entanto, apresentando contas não consolidadas, ou seja, não expurgadas do efeito de dupla contabilização de receitas e despesas, os números apresentados naquele quadro são de leitura impossível e, vítima incauta e preguiçosa desta impossibilidade, a imprensa noticia o absurdo ululante: “Governo prevê arrecadar 110% do PIB de 2023 em impostos no próximo ano”. 

Pedro Pratas já aqui tinha tratado este assunto de forma oportuna e cristalina enquanto, simultaneamente, denunciava com desassombro o desinformado e demagógico aproveitamento que a Iniciativa Liberal tentou fazer desta situação. 

Neste contexto, na sua última coluna de opinião no jornal Público, a 13 de setembro,  Susana Peralta, assinala oportunamente que “(...) o Parlamento devia aprovar em abril (digamos, de 2024) um teto de despesa que vincula o Governo no ano seguinte (digamos, 2025)”. 

No mesmo texto afirma-se também que “[a] cacofonia que inunda cada mês de setembro faz crer que o Orçamento nasce algures entre o primeiro e o último mergulho de agosto. Mas não devia ser assim. A Lei de Enquadramento Orçamental prevê que o Orçamento do Estado seja elaborado em duas etapas”, diz-nos a colunista logo a iniciar. 

A economista prossegue desta forma: “Assim, o processo orçamental começa em abril, quando o Governo apresenta à Assembleia da República a Lei das Grandes Opções, para discussão e votação, em conjunto com a atualização do Plano de Estabilidade. Um dos principais ingredientes desta lei é o Quadro Plurianual da Despesa Pública – QPDP para os amigos. O QPDP estabelece tetos de despesa para os cinco anos que se seguem, com a particularidade de o teto ser vinculativo para o primeiro destes anos.” 

“Já vimos este filme. Em 2021, a Lei das Grandes Opções não chegou a ser discutida e votada no Parlamento e acabámos sem Orçamento aprovado e em eleições”, diz-nos também Peralta. 

Neste último parágrafo, Peralta inclui uma ligação para outro texto seu, de 2021, onde reza assim: “O debate orçamental inicia-se em abril, quando o Governo submete ao Parlamento uma proposta de Lei das Grandes Opções. A LGO, tal como o OE, são da competência do Parlamento”.
 
Se leio apropriadamente o que Peralta afirma, do seu texto pode legitimamente inferir-se que este ano não está a acontecer nada de extraordinário e que este atraso e a desinformação que se lhe seguiu é apenas o desacerto habitual. 

É uma leitura que não acompanho. A meu ver, muito pelo contrário, pouco, ou nada, deste simulacro de debate é ordinário.

Repare-se que, como vimos acima, é da competência do Parlamento definir tetos de despesa e que esses tetos devem ser apresentados pelo governo ao parlamento até abril. 

Ora, com a reforma recente das regras de governação na União Europeia, o poder de decidir acerca do teto da despesa foi apropriado pela Comissão Europeia e esta instituição, à data da apresentação pelo governo do Quadro Plurianual da Despesa Pública ao parlamento, 6 de setembro último, ainda não tinha decidido quanto do nosso dinheiro podíamos usar, situação que volta a ser confirmada pelo governo a 8 de Setembro

Obviamente nada disto é habitual ou ordinário. Parte importante da soberania económica do país voltou a ser transferida para instituições não nacionais (o povo deu-se conta?) e, não sendo jurista, diria que a lei da Républica Portuguesa não está a ser cumprida. À falta de nova lei orçamental (será possível redigir alguma que respeite o imperativo constitucional da soberania nacional?), quem deve decidir o teto da despesa pública em Portugal continua a ser a Assembleia da República e esse teto deve ser apresentado ao parlamento em abril. Nenhuma das duas obrigações legais me parece estar a ser respeitada.  

Susana Peralta finaliza o artigo a que tenho estado a aludir afirmando que "(...) temos direito a um debate orçamental substantivo e escrutinável” e perguntando: “Onde está ele?”.

A sua questão leva-me a uma outra: como é possível ter um debate orçamental substantivo e escrutinável se estamos a discutir sem conhecer quanto do nosso dinheiro a Comissão Europeia nos autoriza a usar, ou seja, se estamos a discutir o orçamento sem conhecer o orçamento? 

O que já sabemos é que as ”[n]ovas regras orçamentais europeias retiram mais margem ao Governo do que as antigas”. E também sabemos que o país nunca saberá que pressupostos usou a Comissão para concluir acerca desta margem menor que atribui discricionariamente ao país. Recordemos que, em 2023, a despesa pública total, em percentagem do PIB, em Portugal, cifrou-se em 42,3% e na Zona Euro em 50%, uma diferença de 7,7 pontos percentuais. 

Como pode um debate orçamental substantivo passar ao lado destas questões?

1 comentário:

  1. O que posso dizer é que bem tenho tentado obter informação sobre o déficit em contabilidade nacional. Não consigo. O mais que vejo vai até ao primeiro trimestre de 2024, o que não serve pois o governo mudou.

    Como é prática antiga do Ministério das Finanças gostam de nos enganar - tomar por parvos - com os dados em contabilidade pública.

    Veremos o que sai primeiro: a informação do governo ou as projecções de Outono da Comissão Europeia.

    Devo dizer, não me lembro de tanta opacidade na divulgação estatística, pelo menos nesta área.

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