Em 2020, Rui Tavares garantia no Público que “a Sociedade das Nações teve um início bem acolhido por grande parte da população mundial”, referindo os infames “mandatos”, uma tecnologia de controlo imperialista já criticamente escrutinada na história da economia política.
Reparai que “grande parte da população mundial” estava, em 1919, sob o jugo do imperialismo, sob a forma colonial ou semicolonial e assim permaneceu. Para um historiador liberal, a “grande parte” é, implicitamente, a opinião pública ocidental. O liberalismo está sempre a confundir “género humano com Manuel Germano”.
Wilson, o seu incensado líder, tinha recusado a inserção de uma clausula de igualdade racial, proposta pelo Japão, na Conferência de Paris, em linha com a aceitação da expansão dos impérios coloniais vencedores.
Os que, logo em 1927, fundaram, em Bruxelas, a Liga contra o imperialismo e a opressão colonial, com a ajuda da Internacional Comunista e inspirados no seu Congresso dos Povos do Oriente de 1920, também discordariam de Tavares, mas deles não reza a história dominante ocidental, embora reze cada vez mais a história do Sul que não é global, porque é soberanista.
Chegou-me há pouco às mãos uma outra crónica de Rui Tavares, agora no Expresso em papel, um luxo garantido a poucos políticos pelo quase-falido Grupo Impresa, o da sociedade indigente de comunicação.
Tavares coloca aí Nicolás Maduro no mesmo saco do genocida de Israel e do seu apoiante húngaro (EUA-UE, na realidade). É o seu enésimo uso da teoria liberal da ferradura, incapaz de atentar em tudo o que importa na avaliação política, da intenção à consequência, do contexto nacional às mortíferas sanções imperialistas internacionais, sem esquecer os erros e efeitos não-intencionais de política. Só não erra, quem não tenta.
Obviamente, temos de ter toda a paciência para o relativismo sonso de quem foi à embaixada israelita, estava o genocídio a começar; de quem acha que a perigosa belicista verde alemã dos negócios estrangeiros é o suprassumo do ecologismo; e nem sequer falo, olha, já o estou a fazer, da invenção de um Marx ao serviço da sua utopia federalista (ou será distopia?). Confesso que esta última é a minha preferida, já que fez escola entre intelectuais do Livre.
Isto anda mesmo tudo ligado no euro-liberalismo. A Primeira Guerra-Mundial foi um lamentável acidente, já ouvi dizer Tavares, fruto de atavismos conservadores e nacionalistas. Afinal de contas, o progresso liberal estava a correr tão bem. A contingência é tudo e a estrutura nada. A palavra imperialismo está banida, sobretudo quando associada a uma economia política à la Lénine que foi à raiz da rivalidade, como de resto reconheceu, numa nota de rodapé metida a medo, Thomas Piketty, em Capital e Ideologia.
Limito-me por agora a deixar duas questões puramente políticas, com hipóteses puramente políticas associadas: se os militantes do Livre estão em geral bem à esquerda de Tavares, como explicar o controlo férreo que este tem do pequeno aparelho do partido, como se viu nas últimas eleições; e como explicar os inconsequentes números públicos em torno da unidade da esquerda em que é useiro e vezeiro e nos quais ninguém sério pode acreditar, até dados os precedentes históricos relevantes?
Para que não pensais que só critico: considero até que o intelectualmente muito capaz Tavares faz mais sozinho do que muita esquerda acompanhada para levar a água ao seu moinho ideológico; pelo menos, Tavares compreende o papel da luta das ideias e da persuasão e é aí que radica parte do seu, espero que temporário, sucesso relativo. Mas só parte: ele é a esquerda que a direita adora, afinal de contas.
Entretanto, o meu jornal de sempre, o Público, com sinais de decadência inequívocos, chega e sobra para ter acesso ao extremo-centro para onde converge quem já disse querer dialogar com a direita: despolariza, filho, despolariza; complexifica, filho, complexifica.
Diz que foi uma espécie de anti-Tavares, porque Rui Tavares não é Karl Dühring e eu definitivamente não sou o tão subestimado Friedrich Engels, o gigante de A situação da classe trabalhadora em Inglaterra, regressado a Manchester, vindo da Ucrânia, há uns anos, numa memorável intervenção artística e política de Phil Collins.
As tentativas do Livre em "unir" as esquerdas apenas vem para reforçar o estado de coisas atual: diminuir as alternativas políticas de esquerda, para abrir espaço a que hajam apenas alternativas de direita, na perspetiva do eleitor médio. Isto é, temos assistido aos "debates" públicos serem pautados pelos programas de direitas (claro, com muita conivência um tanto criminosa dos principais órgãos de comunicação social). Não é por acaso aumentaram em número de partidos. Por isso, as tentativas do Livre apenas vêm para colocar lenha na fogueira que está acesa.
ResponderEliminarNeste aspecto, o PCP, como de costume, sabe o que realmente está se passando, e não se deixa levar pela espuma; ao contrário do ingénuo BE e do cínico PS. Este último, mantém-se passivo, à espera de cometer o mesmo erro do PT, no Brasil, que tudo quer abocanhar, "unindo" tudo e mais alguma coisa, e com resultados cada vez piores. Era importante que o PS estivesse mais interessado em querer pautar o debate (isto é, ter um campo de batalha mais favorável) do que querer ser a única alternativa à "esquerda".
Realisticamente, um PS abocanhador ou uma frente ampla de esquerda, contra CH, IL, PSD, CDS, etc tem alguma hipótese de fazer progredir alguma coisa neste país? (não estou a falar de vencer eleições; que são coisas diferentes)
Eu gosto de uma esquerda plural. Não gosto de ver partidos de esquerda a apoiarem ditadores como Maduro, agressões imperialistas como a de Putin, massacres de palestinianos ou indiferentes face aos reféns israelitas.
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