terça-feira, 13 de junho de 2023

Há livros que mudam algo

Há coisas sobre as quais não se pode escrever como sempre se escreveu. Algo muda. Primeiro os olhos, depois o coração – ou os nervos ou aquilo a que os antigos chamavam alma – e finalmente, as mãos. 

Assim começa. Tinha-o comprado na feira do livro de Lisboa no ano passado, mas o título – Agora e na Hora da Nossa Morte – e o tema – os cuidados paliativos domiciliários no planalto mirandês – talvez expliquem porque ficou por ler durante meses a fio, apesar das pouco mais de cem páginas. É possível recear um livro. 
 
Lançado em 2012, é fiel à sua primeira frase: nunca se escreveu assim, ou, pelo menos, nunca li nada assim. Um livro inclassificável – reportagem, aforismos, tangentes à poesia – e que realmente muda algo, ainda estou a tentar descobrir o quê, questão de vida e de morte. 

Susana Moreira Marques escreveu depois sobre “as experiências de maternidade” – Quanto tempo tem um dia, de 2020 – e acabou de lançar um livro – Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro – que parece prolongar o argumento que escreveu e protagonizou para o maravilhoso documentário – Um nome para o que sou –, realizado por Marta Pessoa, sobre a descoberta de Maria Lamas e do que ficou de As Mulheres do meu País. Já estão ali para ler. 

Entretanto, o Público teve a boa ideia de reeditar As Mulheres do meu País em fascículos: “olhei à minha volta e comecei a reparar melhor nas outras mulheres”, afirmou Lamas, com aparente simplicidade. Infelizmente, nenhuma das introduções – de Ana Catarina Mendes a Pedro Adão e Silva – nos informa que foi comunista, sendo antes encaixada num anacronismo – “ativista feminista”. Maria Lamas foi mais persistente do que isso, arrisco, foi militante

Como sublinhou o historiador José Neves em Comunismo e Nacionalismo em Portugal, a aproximação a esta visão do mundo explica a aposta em dar a ver as realidades das mulheres portuguesas pelo prisma das relações sociais de produção e de reprodução. Partiu à descoberta de um país por emancipar, um gesto inspirador, Susana Moreira Marques que o diga. Hoje, apesar de tudo, o contexto é bem menos sombrio. E sempre sem o luxo da desesperança. Há um povo, há um país que é nosso.

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