Quando entrámos nos confinamentos causados pela pandemia umas das minhas decisões foi a de procurar colmatar uma falha grave no meu percurso académico. Decidi dedicar-me a aprender economia marxista. Li algumas coisas e continuo a sentir-me profundamente ignorante no assunto. Mas ajudou-me imenso, em particular, a organizar o meu foco da análise económica para aspectos como relações de poder, exploração, sistemas de produção, circuitos e acumulação de capital, taxas de lucro, contradições internas, etc. A partir daí, qualquer análise, por exemplo, sobre a economia portuguesa, me parece profundamente coxa sem ter estas coisas em conta.
Isto tudo a propósito das recentes polémicas com os grandes grupos de distribuição.
Uma análise a este setor não pode focar-se apenas nos recentes aumentos de preços e recentes resultados dos respetivos grupos empresariais. Uma análise séria tem de começar umas décadas atrás, na constituição destas empresas, no seu modelo de crescimento, na sua relação com produtores, consumidores, concorrentes, Estado e sua política económica (ou ausência dela).
Não é sequer preciso ser muito exaustivo para perceber coisas simples que gosto de explicar aos meus amigos não economistas: Não é um acaso que seja ali que estão os grupos económicos de maior crescimento. Não é um acaso que seja ali que estão os portugueses mais ricos (e não na indústria, e ainda menos na agricultura). E se ligarmos isso com coisas como o nosso fraco investimento em I&D, a nossa balança comercial cronicamente deficitária e a crescente dívida pública, percebemos que não há mesmo ali acaso nenhum.
Percebemos o modelo de negócio deste setor. O seu modelo de crescimento consiste em reduzir os custos, esmagando margens dos produtores, aproveitando o poder negocial imenso que detém e comprimindo ao máximo os custos salariais, e a seguir maximizar receitas, explorando ao máximo a capacidade de impor preços de oligopólio aos seus consumidores, a que se junta a capacidade de induzir o consumo através de um marketing agressivo. É esta a vantagem que apresentam, por exemplo, relativamente a pequenas mercearias e é por isso que este setor, ao contrário de outros está tão concentrado em apenas uns poucos grandes grupos.
Diga-me, quem tiver coragem, de onde mais podem vir os lucros num setor como este onde não há espaço para grande inovação, para melhorias de produtividade ou criação de novos produtos. Não é preciso ser revolucionário. Experimentem comparar com uma empresa farmacêutica ou com um construtor automóvel onde a inovação e o risco colocam de facto oportunidades e desafios (que estas empresas bem se esforçam para resolver, nem sempre com os meios mais aceitáveis).
Este modelo de negócio foi fortemente beneficiado pela abertura ao exterior, por uma taxa de câmbio sobrevalorizada, pela ausência de uma política industrial, pelo foco na financeirização da economia. O verdadeiro mérito de Belmiro de Azevedo e Alexandre Soares dos Santos foi terem percebido, antes de outros, que a economia portuguesa levava esse caminho. Outros souberam, no entanto, apostar em setores parecidos: no imobiliário, na banca, ou nas empresas privatizadas em monopólios naturais ou quase naturais, sempre longe da concorrência, sempre perto das ótimas rendas. Outros ainda apostaram na saúde privada aproveitando a falta de investimento do Estado no setor público. É seguir o dinheiro.
Este tipo de relações gera fluxos de capital que dependem de todo um conjunto de condições da economia e que levam a acumulação em determinados setores e grupos empresariais em detrimento de outros. O capital, como organismo vivo, mexe-se sempre para onde possa prosperar e multiplicar-se.
Depois os nossos "liberais" acham estranho que o cidadão comum não celebre os lucros avultados de empresas rentistas. Lucros que assentam de forma óbvia na capacidade que essas empresas têm de impor o seu poder de mercado sobre os consumidores. Outro exemplo são as petrolíferas. É quase como se eu, consumidor, devesse felicitar o restaurante aonde vou por me cobrar mais 20 ou 30% pelo meu almoço só porque estou a contribuir para o seu lucro.
Sem sair de uma perspetiva capitalista, isto não era assim tão problemático se não identificasse aqui um modelo de crescimento da economia extremamente precário, dependente do exterior, dependente das condições do setor financeiro, dependente de um contínuo esmagamento dos setores mais frágeis sujeitos ainda mais a concorrência internacional, e necessitado ainda mais de um contínuo esmagamento dos trabalhadores, dos seus salários e direitos laborais, deixados como única variável de ajustamento da economia sempre que uma porta entreaberta deixa entrar uma pequena corrente de ar.
Perante tudo isto, metade da discussão dos últimos dias (obviamente importante e necessária no curto prazo) passa para segundo plano. E se quem é prejudicado nisto tudo são principalmente os trabalhadores (também como consumidores que são), também são prejudicadas tantas empresas de setores concorrenciais e tantos pequenos e médios empresários, a quem apenas uma completa alienação faz identificar-se mais com estas empresas rentistas do que com quem é prejudicado às suas mãos.
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