quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Equívocos básicos das autoproclamadas criptomoedas (3)


O Banco de Portugal postou no twitter um vídeo onde explica que "as moedas virtuais não são verdadeiras moedas".

Primeiro, não devia referir-se às autodenominadas criptomoedas como moedas virtuais. Moedas virtuais são todas, mesmo que eventualmente acabem por se apresentar sob um suporte físico. Como escreveu Mitchell Innes no início do século XX, "o olho nunca viu nem a mão alguma vez tocou num dólar".

Mas enfim, é meritório informar toda a gente que, de facto, as "criptomoedas" não são nem podem ser moedas e apenas as acha como tal quem tem uma visão completamente aberrante sobre a história e a natureza da moeda.

Como seria de esperar quando se coloca em causa qualquer seita, as reações ao tweet são inflamadas. Decidi então fazer uma pequena seleção representativa que acompanho com alguns pequenos comentários meus:
«Este tweet faz-me lembrar que devia comprar mais Bitcoin. Obrigado»
Se estás com confiança, força. Afinal, o mercado está cheio de irracionalidades que às vezes permitem ganhar dinheiro. Isso não faz das "criptomoedas" moeda.
«É pena que estejam a lutar contra economias descentralizadas em vez de lutarem contra a verdadeira razão desta inflação, os EUA e o abuso na produção do dollar.»
É claro que os entusiastas das "criptos" leram algumas coisas de economia. São sempre defensores acérrimos de que "a inflação é, sempre e em qualquer lado, um fenómeno monetário." É normal que assim pensem porque os equívocos de base são os mesmos, a fé anarcocapitalista é a mesma.
«O euro é virtual (baseado na fé dos políticos), #Bitcoin é digital baseado em matemática»
A moeda é sempre baseada na confiança. Não é impossível a existência de uma moeda puramente privada, mas a história mostra que têm sempre uma circulação limitada. Apenas o soberano ou o Estado consegue impor essa confiança graças, em particular, ao seu poder coercivo (que lhe permite, por exemplo, cobrar impostos, forçando assim a procura pela moeda). Por outro lado, toda a moeda é baseada em matemática. Aliás, as duas coisas surgiram a par na antiga civilização Suméria.
«Como é que se chama a uma moeda que perde 98% do seu valor desde que foi criada?»
Isto eu já expliquei aqui. É suposto uma moeda depreciar no longo prazo. Ninguém gasta uma moeda que aprecia logo esta deixa de circular. A apreciação significa deflação, significa entesouramento, significa falência do sistema monetário, desemprego, crise, depressão.
«Agora façam um sobre os riscos reais de ter euros parados no banco durante uma vida.»
Os euros parados no banco durante uma vida são um investimento. Em condições normais oferecem uma taxa de juro ligeiramente acima da inflação. O retorno tende a ser baixo porque o risco também é mínimo, principalmente quando falamos de depósitos enquadrados na Garantia de Depósitos. Se alguém tem uma poupança e quer uma maior rentabilidade, deve investir noutra coisa e lida com o risco. Não é suposto o entesouramento dar lucro.
«Sabiam que o dinheiro que está no banco também não é dinheiro verdadeiro mas sim coisas que são impressas a bel prazer dos governos?»
Há aí umas confusões entre o que é impresso por quem. Mas é exatamente isso que é dinheiro desde há pelo menos 5000 anos: dívida emitida e aceite pelos Estados.
«Poderiam fazer um vídeo explicativo de reserva fracionária!»
A reserva fracionária consiste simplesmente em permitir aos Bancos privados a tal emissão de moeda sob a forma de depósitos à ordem, mantendo uma reserva de moeda de alta potência, ou seja, moeda emitida pelo Banco Central, que como tal, tem aceitação generalizada. É nesta moeda de alta potência que se garantem as transações entre diferentes bancos. Se estes fossem obrigados a manter uma reserva de 100% eram incapazes de financiar e fazer mover a economia. A incompreensão do que é um Banco é um dos pontos fortes dos entusiastas das "criptos".
«Sabia que todas as moedas são "virtuais"?»
Sabia que o BCE sempre que lhe dá na mona acrescenta dígitos numa base de dados?
Sabia que quem fala em "proibição" de transações de valor entre seres humanos é tirano?»
O BCE pode acrescentar dígitos numa base de dados. É esse o poder de emitir moeda. Qualquer Banco o pode fazer. Graças a isso, conseguem financiar projetos rentáveis que vão obter rendimentos que permitem pagar o empréstimo concedido fazendo girar aquilo que é uma Economia Monetária de Produção. Ninguém que proibir transações, mas deve ser uma frase vinda das mesmas fantasias libertárias anarcocapitalistas.
«Euro e o dólar não são verdadeiras moedas desde que deixaram de ser “backed” por ouro.»
Verdadeiras moedas não precisam de ser "backed" por coisa nenhuma que não a confiança. O ouro (entre outras coisas) pode ser e foi sempre apenas uma contragarantia em economias onde a confiança por vezes escasseava. Apesar disso, não era o ouro nem a promessa do ouro que constituíam a moeda. A moeda era sempre a unidade de valor virtual. Basta ver, por exemplo, que na idade média, uma moeda cunhada valia, sistematicamente mais do que o ouro ou prata de que era constituída. Quando calhava a valer menos, era fundida e o metal vendido a peso, normalmente para o estrangeiro.
«Então se n sao verdadeiras querem me explicar pk a vão taxar a 28%?»
Posso explicar. Os lucros taxados a 28% são os lucros em moeda fiduciária, que é aquela cujo valor e estabilidade vocês são obrigados a usar para contabilizar os lucros e perdas das vossas carteiras de "criptos".

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