quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Colateral e crise segundo Thorstein Veblen

Nos últimos textos que aqui escrevi (aqui, ali, acolá e mais este), o colateral, ou melhor, a sua insuficiência, aparece como central na explicação da perigosa turbulência que o sistema financeiro internacional, sobretudo nas suas componentes europeia e norte-americana, está a enfrentar. 

Com o propósito de continuar a discorrer sobre este assunto e, assim, contribuir para uma melhor compreensão das importantes questões que se nos colocam, socorro-me agora de Thorstein Veblen, um economista heterodoxo e institucionalista com produção intelectual situada no fim do século XIX e início do século XX, que é muito caro, senão a todos, pelo menos, a grande parte dos que escrevem neste blogue, e partilho um resumo breve do que me que parece ser o seu entendimento do papel deste colateral nas crises que economias capitalistas contemporâneas recorrentemente enfrentam. 



Em primeiro lugar, deve salientar-se que a avaliação de Thorstein Veblen das relações entre a finança moderna e as crises recorrentes na economia decorre da assunção de que a grande empresa é sobretudo uma instituição pecuniária. As empresas visam o lucro, a acumulação de dinheiro e não, necessariamente, a produção. Estas instituições têm como principal razão de ser o controlo e venda de ações, títulos de propriedade, cujo valor sobe com a expectativa do aumento de vendas e dos preços. A propriedade oligopolista dos ativos industriais - e dos recursos produtivos de uma forma geral - e o controlo do trabalho, são factores que, associados à prática de manipulação da procura através de métodos de venda progressivamente mais sofisticados - e que aproveitam toda e qualquer fragilidade, vaidade ou necessidade humanas -, dotam estas empresas (instituições pecuniárias) do poder para regular, ou sabotar, a produção e, assim, estabelecer quaisquer preços tolerados pelo mercado. 


Para Veblen, é este enorme poder empresarial de controlo da indústria e de manipulação da procura que sustenta a crença da banca de investimento na capacidade ilimitada das empresas para fazer subir preços, aumentar lucros e, assim, assumir mais endividamento; em tudo isto, o papel do Governo é substantivo sobretudo quando a crise deflagra em razão de uma diminuição do valor pecuniário dos ativos, o que normalmente está associado à não concretização de previsões demasiadamente optimistas. Nestes situações, diz-nos Veblen

[A] contração dos valores pode ser mais igualmente distribuída por uma sensata indulgência da parte dos credores ou por uma avisada e discretamente ponderada extensão de crédito pelo governo a certas secções da comunidade dos negócios. 

Nesta análise, crise é um período de liquidação, de anulação de dívidas, de altas taxas de desconto, de ‘vendas forçadas’ e contração dos valores e o seu resultado é geralmente uma severa e duradoura contração na capitalização dos negócios afectados. 

Contudo, se esta crise pode implicar o empobrecimento de alguns homens de negócios em termos de valor em dinheiro, também pode nada significar em termos de alteração da eficiência produtiva da propriedade que aqueles detêm. 

Ou seja, a crise torna a comunidade mais pobre em termos de valor de mercado mas não necessariamente em termos de capacidade produtiva. Esta ocorrência de contração é, assim, sobretudo pecuniária e não material e, usualmente, começa na riqueza intangível alastrando, posteriormente, aos bens tangíveis; para além de reavaliar (em perda) a riqueza, o efeito imediato mais substancial da crise consiste numa extensiva redistribuição da propriedade do equipamento industrial. 

Para Veblen, o ciclo económico inicia-se com um aumento de procura numa economia com capacidade produtiva subutilizada, como era o caso da economia Americana no contexto da guerra travada em 1898 com Espanha. 

Em resultado do incremento na procura de material de guerra, os preços sobem e, consequentemente, as empresas fornecedoras respondem aumentando as quantidades produzidas e, para que isto seja possível, aumentam a sua procura dos fornecimentos de que necessitam para produzir e compram novos equipamentos. Os seus fornecedores, confrontados com um aumento da procura, emulam o seu comportamento e aumentam a procura e compram novos equipamentos. Neste quadro, os investimentos realizados pelas empresas são resultado de lucros crescentes que valorizam o seu capital. 

A consequência é uma subida generalizada de preços em toda a economia. A subida de preços origina uma subida dos lucros e instala-se um sentimento de prosperidade generalizada que gera uma ‘excitada antecipação’ (lively anticipation) de adicionais futuros aumentos da procura e, consequentemente, de lucros. Um ‘hábito de leveza’, de ‘imprudência especulativa’ instala-se na comunidade empresarial. 

Está, assim, criada a situação para o florescimento da ilusão colectiva, ou seja, a ‘excitada antecipação’ de vendas e lucros, gera per si, uma situação de prosperidade – própria do período de exaltação - que perdurará até à crise seguinte. 

O crescimento dos lucros e a antecipação de lucros futuros, aumenta o valor do capital; dado que o endividamento se torna especialmente atrativo, o crédito expande-se. O incremento no valor do capital é usado como colateral para novos empréstimos e este ciclo continua sem cessar até que um evento muitas vezes aleatório gera desconfiança e as atenções recaem sobre as questões da solvabilidade. 

Para Veblen, repare-se porém, a crise não é, como afirma Marx, a crise no sistema de produção, baseada no declínio da taxa de lucro ou da mais-valia. É predominantemente a crise em mercados de preços e valores gerada por súbitas perdas de fé

 Neste ponto crucial, Veblen começa por explicitar a sequência de acontecimentos que geram um período de liquidação com as características supra referidas e oferece-nos das suas mais pungentes observações

Diversas empresas obrigadas, no curto prazo, ao pagamento de facturas de valores elevados, detêm, simultaneamente, créditos a receber de montantes igualmente significativos. Para fazer face à necessidade de pagar aos seus credores, aquelas empresas procuram receber dos seus devedores; estes podem, por sua vez, possuir facturas a receber ou ter concedido empréstimos com base em colateral. O acontecimento inicial na sequência de liquidação pode ser o pedido de reembolso de um empréstimo sujeito à possibilidade de rescisão imediata, ou o pedido de reforço do colateral que garante um empréstimo daquele tipo. A um dado momento, mais cedo ou mais tarde, na cadeia das responsabilidades a exigência recai sobre o detentor de um empréstimo garantido por colateral que, na avaliação receosa do seu credor, é insuficiente para assegurar a sua liquidação imediata. (...) Por outras palavras, há um receio que a propriedade representada pelo colateral esteja sobrevalorizada quando confrontada com as cotações do momento, ou com as cotações esperadas no futuro, dos valores em causa. A capitalização de mercado do colateral teve lugar num contexto de preços altos e optimismo típicos dos períodos de exaltação empresarial que sempre precedem uma crise acentuada. Quando um dado devedor é confrontado com este tipo de pedido de reembolso, o pedido é transmitido pela cadeia de responsabilidades e, assim, a sequência de liquidações inicia-se, com o efeito, manifestamente confirmado pela experiência, do valor do colateral no mercado declinar ao longo deste processo. A crise está, deste modo, em ação e as consequências ulteriores sucedem-se com uma bem conhecida inevitabilidade.

Como recentemente observámos na crise de sub-prime de 2007, a sequência de acontecimentos inicia-se com a negação de expectativas e a súbita desilusão com a fraqueza de uma, ou mais, grande instituição financeiras, Fannie Mae, por exemplo, ou Lehman Brothers. Veremos se não é o que estamos a observar em 2022

A situação transforma-se verdadeiramente numa crise, numa ameaça à continuidade do funcionamento do sistema, precisamente porque o sistema financeiro não tem a capacidade de gerar internamente uma resposta adequada ao seu fracasso. Dado que o ‘motivo dos negócios é o ganho pecuniário, o método é essencialmente a compra e a venda’ e ‘o objetivo e resultado normal é uma acumulação de riqueza’, esse ‘ganho, sendo o objectivo de todos os seus esforços’, é considerado ‘normal’, ‘enquanto uma perda (ou uma redução nos valores investidos) é sentida como um desagradável acidente que não pertence ao curso normal dos negócios’. 

Temos, pois, um quadro com grandes empresas, instituições pecuniárias, desenhadas exclusivamente para a operação em tempos de prosperidade, empresas que não constituem “provisões para uma redução do valor dos ativos mas apenas uma modesta e questionável provisão para a redução dos lucros”, ou, de outro modo, que “não foram desenhadas para singrar num mercado em queda”. 

Em situações com estas características, em crise, porque o sistema financeiro não tem a capacidade de gerar internamente uma resposta adequada ao seu fracasso, o estado entra em cena e uma ‘extensão de crédito cautelosa e discretamente ponderada do Governo a certos sectores da comunidade empresarial’ é a receita recorrente, o que é essencial para atenuar as “maleitas de coração” dos banqueiros e restaurar a sua confiança para novos ciclos de expansão autodestrutiva de crédito. 

Tem sido assim a crise do espírito pecuniário, mas outra economia é necessária e possível.

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