terça-feira, 25 de outubro de 2022

A história e as consequências sociais da inflação

  

A inflação, análise das suas causas e as políticas prosseguidas para a combater estão na ordem do dia e com todos os motivos para isso.

No entanto, queria apontar um aspeto que me parece fundamental para compreender os efeitos sociais da inflação, como os que estão explicitados, por exemplo aqui ou aqui. Esse aspeto é o de que o problema não está, na inflação em si, mas sim na arquitetura do sistema económico, financeiro e monetário em que estamos que transfere os custos da inflação para os trabalhadores. Para o ilustrar vou socorrer-me da história.

Quem estuda a história da moeda dá-se conta de que essa é, de uma forma simplificada, a história de uma luta secular entre devedores e credores sobre o que é e quanto vale a moeda, e sobre quem o decide. Sendo que os devedores desejam uma moeda abundante e de baixo valor, enquanto os credores lutam por limitações à quantidade e moeda de alto valor. Isto acontecia porque, historicamente, episódios de inflação eram sempre vistos como muito benéficos pelas classes mais baixas que eram endividadas e pagavam rendas nominalmente fixas enquanto as classes aristocratas ou o clero eram credores e recebedores dessas rendas fixas e saíam, portanto, fortemente prejudicados.

Um exemplo de um debate de grande importância para a história da Economia e deu-se quando no contexto do início da Guerra dos 100 anos o Rei de França impôs a quebra (debasement) da moeda, que consistia em decretar a redução na quantidade de prata contida nas novas moedas cunhadas, mantendo no entanto o seu valor nominal, com o objetivo de obter um lucro para si próprio com o aumento da senhoriagem (o valor pago pelos particulares para cunhar a moeda e que era dividido entre o moedeiro e o soberano, e que consistia na diferença entre o valor do metal entregue para cunhar e o metal cunhado recebido).

A quebra da moeda consistia assim, na prática, numa desvalorização da moeda. No médio/longo prazo, acabava por levar a uma subida dos preços, embora essa subida fosse normalmente mais lenta e de menor dimensão do que a própria desvalorização da moeda.

Passando à frente dos aspetos técnicos desta desvalorização, o seu efeito mais palpável era, exatamente, a distribuição de rendimentos que operava na sociedade medieval. O mais comum era que a inflação prejudicasse as classes mais abastadas da aristocracia terratenente e do clero e favorecesse a classe mais pobre dos camponeses.

Perante uma inflação que na verdade operava como um imposto progressivo a incidir sobre as classes mais ricas, estas reagiam tentando impor ao soberano a impossibilidade de decidir a quebra da moeda ou a defender a tese de que o verdadeiro valor da moeda corresponde à quantidade de metal nele contida (o valor intrínseco) e não o valor nominal imposto pelo soberano. É exatamente essa a tese defendida naquela que Schumpeter considera a primeira obra da história dedicada unicamente a um tema económico, o Tractatus de Origine, Natura, Jure, et Mutacionibus Monetarum de Nicolau de Oresme.

Talvez o mais interessante da leitura do tratado de Nicolau de Oresme, que era um membro do Clero, é como se percebe a parcialidade dos seus argumentos em favor das classes mais ricas, como explica Peter Spufford. Muitos dos argumentos nos soam familiar afirmando a injustiça de, através da quebra da moeda o príncipe tomar a posse "do dinheiro dos outros", enquanto compreende e assume que o problema afeta principalmente os proprietários e credores - "os melhores da comunidade" ou "os melhores dos súbditos" e dificulta as importações (o que prejudicava principalmente as classes consumidoras de bens de luxo vindas do estrangeiro). 

Oresme foi recompensado pelo seu trabalho sendo nomeado Bispo de Lisieux e as classes mais ricas conseguiram ir fazendo valer a sua posição e acabaram por provocar uma transformação fundamental nos sistemas monetários conseguindo equivaler inequivocamente a unidade monetária a uma determinada quantidade de metal precioso.

Como explica David Graeber, esta luta entre devedores e credores está por detrás de uma grande história de criação de instituições que procurava defender os devedores de que o jubileu bíblico é um exemplo conhecido, mas também toda a história da condenação da usura e até uma boa parte da explicação para o antissemitismo que se disseminou ao longo de séculos na Europa. No entanto continua Graeber, a era em que estamos é marcada exatamente pela criação de instituições concebidas para proteger, não os devedores, mas os credores.

Daí que, hoje, a inflação, que na sua natureza não é diferente de outrora, encontra-se num cenário institucional que aperta as classes mais baixas como uma garra. Na atualidade é a classe trabalhadora que recebe salários nominalmente rígidos e o capital que tem rendimentos variáveis que consegue ajustar ao cenário de inflação. Os Bancos e outros credores também impõem nos créditos que concedem instrumentos que garantem a manutenção do seu valor real como a indexação das taxas de juro.

E se isto nos faz ter vontade de que se tomem medidas para acabar com a inflação, essas medidas passam, no cenário atual, por provocar um ainda maior prejuízo à classe trabalhadora, aumentando taxas de juro ou impondo o desemprego para limitar a procura. Podia dar-se o caso de isto significar uma mera inversão dos papéis e que a classe trabalhadora beneficiasse hoje de uma hipotética deflação, mas tal não é, obviamente, o caso, como ficou bem visível na última década. O que aconteceu foi que a classe trabalhadora se tornou a única variável de ajustamento macroeconómico e qualquer crise ou problema económico é canalizado para ela.

Entramos então naquela situação em que se lança a moeda ao ar e se calhar “cara, o capital ganha, e coroa os trabalhadores perdem” como explica este artigo que bem aponta que a atual luta contra a inflação é na verdade um campo da luta de classes.

Assim se nota que nenhum dos efeitos sociais da inflação que tanto nos preocupam se devem à inflação em si, mas sim, à arquitetura institucional que, por exemplo, impede que os salários cresçam consentaneamente. No fim de contas, bastaria não deixar de olhar para a distribuição funcional do rendimento e exigir políticas que garantam uma repartição dos custos da inflação entre trabalho e capital. E na verdade, isto é apenas exigir o mínimo. 


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