Soube anteontem, através do Público, que faleceu Barbara Ehrenreich (1941-2022), uma grande ensaísta crítica da economia política e imoral norte-americana. Por coincidência, comprei na última Festa do Avante, pela módica quantia de um euro, o seu único livro editado em Portugal – Salário de Pobreza, editado pela Caminho, uma editora que faz falta. Recensei-o, em 2005, para o Le Monde diplomatique – edição portuguesa. Deixo aqui a recensão, singela homenagem a uma intelectual imprescindível:
“Uma estranha propriedade óptica da nossa sociedade altamente polarizada e desigual torna os pobres quase invisíveis aos seus superiores económicos”. O objectivo deste notável ensaio-reportagem é dar visibilidade à pobreza que se esconde no trabalho assalariado mal remunerado que ocupa nos EUA tantos trabalhadores, sobretudo no sector dos serviços. Isto num período (1998-2000) em que este país, em virtude dos seus ritmos de crescimento económico e da sua capacidade para gerar emprego, era apresentado pelo neoliberais de todas as latitudes como o modelo de resolução de todos os problemas socioeconómicos.
Um “mercado de trabalho” desregulamentado onde os despedimentos são fáceis e a precariedade está instituída, a que se junta um movimento sindical altamente enfraquecido e uma reforma na assistência social que se traduziu num corte profundo das prestações sociais, geraram um caldo de cultura que explica o decréscimo, desde a década de setenta, dos salários reais auferidos pelos trabalhadores mais vulneráveis nos EUA. A pobreza que “cheira demasiado a medo” é o resultado inevitável da instituição desta ficção grosseira que aprofunda a mercadorização do trabalho.
Abandonando uma vida desafogada de jornalista e ensaísta premiada, Barbara Ehrenreich decidiu muito simplesmente “verificar se conseguiria fazer corresponder rendimentos e despesas, como as pessoas verdadeiramente pobres fazem todos os dias”, engrossando o contingente de trabalhadores que se dedicam a executar tarefas mal pagas.
Servir à mesa num restaurante, trabalhar num lar de idosos, numa empresa de limpeza doméstica, num grande armazém, foram alguns dos empregos experimentados. Procurar emprego e ter de se sujeitar a testes humilhantes que, no fundo, funcionam como um mecanismo disciplinar. Procurar uma casa para viver e ter de suportar condições por vezes bastante duras. Em suma, experimentar viver com um orçamento apertado que obriga a escolhas tantas vezes trágicas – a que a autora pode escapar porque este exercício não poderia ser mais, como honestamente reconhece, do que um vislumbrar das condições de vida suportadas por quem vive duradouramente e realmente no mundo que é parte escondida do tão propalado american way of life.
A exclusão dos cuidados de saúde e a absoluta carência de um conjunto de serviços públicos, o número excessivo de horas de trabalho e a necessidade de acumular vários empregos, o esforço físico e os perigos para a saúde que muitos destas actividades encerram, a pressão de viver na fronteira da miséria e da fome, as estratégias quotidianas de sobrevivência e de rebelião ou as múltiplas formas que os trabalhadores têm para, apesar de tudo, afirmar a sua dignidade são descritos e muito bem enquadrados ao mesmo tempo que são estilhaçados preconceitos de classe que racionalizam a situação social dos mais vulneráveis atribuindo-a a algum defeito de carácter.
A conclusão que se segue é inevitável: “Algo está errado, muito errado, quando uma pessoa sozinha (...) mal consegue sustentar-se com o suor do seu rosto. Não é preciso ser economista para constatar que os salários são demasiado baixos”.
No fundo, encontramo-nos novamente perante a contradição central do discurso liberal que reside na afirmação de princípio acerca da inviolabilidade dos direitos cívicos, ao mesmo tempo que permite e fomenta a sua real negação na esfera do trabalho. A superação desta contradição exige quebrar uma representação fortemente enraizada que funda a separação entre a esfera política e pública – a dos direitos de cidadania – e a esfera económica supostamente privada – a das relações contratuais entre indivíduos autónomos – através da extensão da lógica dos direitos políticos à economia em geral e ao mundo do trabalho em particular.
De facto, a denúncia feita neste livro confronta-nos com esta questão ao dar visibilidade à violação sistemática da dignidade humana e dos direitos políticos que ocorrem nos locais de trabalho: “Aprendi esta verdade no início da minha carreira como empregada de mesa, quando me avisaram de que a minha carteira poderia ser revistada pela gerência a qualquer momento”. Este exemplo é apenas um das múltiplas situações que a autora teve a oportunidade de observar.
No actual regime neoliberal, como é muito bem sublinhado, a pobreza não é necessariamente uma consequência do desemprego. Pelo contrário, nos EUA, em plena expansão económica, com taxas de desemprego reduzidas, uma continuada quebra real dos salários mais baixos produziu aceleradamente uma subclasse – os “pobres que trabalham”. Esta realidade, talvez melhor do que nenhuma outra, demonstra a natureza intrinsecamente injusta e desumana de um sistema capitalista sem freios assente como não poderia deixar de ser na intensificação da exploração do trabalho humano.
Uma fracção dos trabalhadores norte-americanos tem em Barbara Ehrenrich uma notável cronista dos seus padecimentos e aspirações. E em Portugal? Quando é que os nossos repórteres decidem seriamente desvendar os dramas humanos que se encerram nos “segredos íntimos” do trabalho no capitalismo português?
A pobreza é entendida à luz da moral de gente imoral, não por acaso se fala demasiadas vezes do carácter dos pobres, o julgo é sempre do alto da respeitabilidade de alguém que não conhece a sua indecência e muito menos tem consciência da sua admirável ignorância. A sociedade da irresponsabilidade é isto, a sofisticação da sociedade moderna assenta na perversa capacidade de passar para o outro a responsabilidade que não lhe pertence. O liberalismo proclama um indivíduo que não só não existe como não é possível de existir, a sociedade é um lugar inevitavelmente colectivo.
ResponderEliminarTrabalhadores em tarefas mal pagas maioritariamente realizadas em empresas marginais, tantas delas prestando serviços marginais na distribuição de produtos marginais.
ResponderEliminarUma cultura avessa à aprendizagem de ofícios, desloca milhares para esse manto informe de empresas não raro construídas como mero expediente de emprego para o 'empresário', sem capital, sem mercado que valha e sem outro futuro que não o da sobrevivência dos que neles se envolvem.
A contratação do assalariado pode não raro ser associada às motivações do serviço doméstico.
Definir um sistema pelas suas margens, desprezando o que motiva a sua existência e dimensão, não é uma análise séria.
Quanto é que os jornalistas em Portugal vão fazer o seu trabalho? Provavelmente nunca...
ResponderEliminarÉ crucial relembrar que foi com a classe profissional dos jornalistas que a mentira da "bancarrota" passou tão bem entre a população portuguesa, esta classe foi crucial em transformar uma crise da Banca em uma crise das dívidas soberanas.
Ainda hoje jornalistas passam a ideia que houve uma bancarrota neste país, tudo isto para defender o europeísmo e a classe dominante a qual servem.
A comunicação social convencional está há muito tempo a contribuir para o empobrecimento da maioria da população portuguesa.
A pobreza individual é a visão conveniente da miséria.
ResponderEliminarTexto muito bom, que nos aproxima de realidades que mal vislumbramos
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