domingo, 27 de fevereiro de 2022

Bem-vindas ao Capitaloceno



Em 2011, a revista The Economist afirmava, em título de capa: «Welcome to the Anthropocene» (“Bem-vindos ao Antropoceno”). O termo “Antropoceno”, já aqui oportunamente introduzido e problematizado, foi cunhado por Paul Crutzen e Eugene Stoermer, em 2000, e procurava traduzir o papel central da espécie humana na geologia e na ecologia, particularmente desde o final do século XVIII – momento a partir do qual, segundo os autores, os efeitos das atividades humanas no sistema terrestre se tornaram por demais evidentes, o que justificaria a inauguração de uma nova época geológica. 

O conceito popularizou-se nas décadas seguintes – acompanhando o aceleramento e a intensificação das alterações climáticas – e extravasou, por completo, o foro restrito da Geologia. Embora seja muitas vezes apresentado como tal, o Antropoceno não delimita, oficialmente, a presente época geológica. Porém, mais importante do que a escala de tempo geológico, são as escalas do tempo (e do espaço) políticos. E, no que à política diz respeito, o Antropoceno é uma ideologia de pleno direito, particularmente no atual contexto de crise climática. 

A declaração do início do Antropoceno, entusiasticamente reproduzida pela The Economist, fixa um determinado curso da história, impulsionando e legitimando certas trajetórias políticas e económicas. Senão, vejamos: a humanidade é colocada no centro do problema e da solução, sendo entendida e, sobretudo, socialmente construída (qual profecia autorrealizável) enquanto ator coletivo, uno e indivisível. Fabrica-se, assim, uma narrativa simplista, mas linear e de fácil adesão: “A humanidade é responsável pelas alterações climáticas, logo, cada pessoa tem de fazer a sua parte para as combater”. 

Esta diluição das responsabilidades pelo conjunto da humanidade funde-se com uma culpabilização individual que se deve traduzir em ação, também ela individual, com uma especial predileção pela escala local. Este vaivém de escalas, contido no slogan desgastado “pensar global, agir local”, serve, com grande eficácia, um capitalismo que começa a maquilhar-se em tons de verde. A atomização dos indivíduos – distraídos pelo logro do consumo “verde” –, o consequente desencorajamento da ação coletiva, ou ainda a (conveniente) ocultação do papel do Estado, retiram as alterações climáticas da esfera política. E as alterações climáticas são, acima de tudo, uma questão política. 

A “humanidade”, interpretada como um todo monolítico e a-histórico, constitui uma noção perigosamente difusa e abstrata, que naturaliza as desigualdades inscritas nas relações de poder e de produção em que assenta o sistema capitalista. Com efeito, o intervalo geológico correspondente ao Antropoceno, principalmente desde o final da 2ª Guerra Mundial, coincide com o período de maior expansão do capitalismo. Para lá da relação da espécie humana com o sistema terrestre, o Antropoceno oculta a relação insustentável (e, sublinhe-se, imoral) que algumas classes sociais (em diferentes geografias) estabeleceram com o sistema terrestre através do capitalismo. Revela-se imprescindível, por isso, recuperar a interpelação de Jason Moore: estaremos mesmo a viver no Antropoceno – a “idade do Homem” –, ou no Capitaloceno – a “idade do capital”? 

A utilização da expressão “Antropoceno” para designar a atual época geológica gera uma dinâmica perversa: os impactos provocados por (e em benefício de) uma minoria são atribuídos a uma entidade homogénea e sem rosto – a humanidade –, negligenciando contextos históricos, políticos, socioeconómicos e ambientais. Este entendimento hegemónico do Antropoceno torna-se apelativo porque remove o capitalismo (mas também o imperialismo e o patriarcado) da equação, mantendo as causas estruturais da crise climática e ambiental completamente inquestionadas. O sistema capitalista adquire, portanto, um novo fôlego, desta feita sob a forma de “capitalismo verde”.

1 comentário:

  1. «Capitalismo verde» é um oxímoro dado que o capitalismo pressupõe a acumulação ilimitada e o crescimento infinito enquanto os recursos do planeta são finitos.

    «Capitalism in the web of life» do Jason Moore é um livro muito interessante. «L'événement Anthropocène» de Christophe Bonneuil e Jean-Baptiste Fressoz discute estes temas de forma interessante e sobretudo mais acessível do que o livro Moore.

    Para ter uma ideia dos problemas associados à exploração voraz dos metais essenciais às "tecnologias verdes" ver esta interessantíssima emissão de Thinkerview com uma geóloga chamada Aurore Stéphant que é especializada nos riscos sanitários e ambientais das explorações mineiras.

    https://www.youtube.com/watch?v=xx3PsG2mr-Y

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