As ameaças da economia das trevas estão por todo o lado, mas em especial nos apelos a subidas de taxas de juro que irracionalmente até se ouvem numa periferia endividada, com elites complacentes e conformadas, na melhor das hipóteses. Estão presas a uma sabedoria convencional que ignora ou finge ignorar, hesito, um facto inescapável: a taxa de juro é um preço político.
Ontem, o BCE deixou ainda muito em aberto, apesar das análises enviesadas que por cá se fazem. Pudera. Uma palavra: Itália. O míope rentismo financeiro pode levar a melhor, claro, mas ainda não ganhou nesta contraditória conjuntura, numa instituição tão opaca quanto pós-democrática e da qual tanto desgraçadamente depende. Os treinadores de bancada, com táticas políticas sempre prontas para os ignaros, ignoram estas coisas incómodas, como se fizessem parte da natureza.
Neste contexto periclitante, deixo aqui uma secção do artigo que Paulo Coimbra e eu escrevemos para o Le Monde diplomatique – edição portuguesa de Janeiro (referências e notas omitidas):
Os economistas da idade das trevas têm insistido num espectro e numa solução: inflação galopante e subida inevitável das taxas de juro para a debelar. É caso para dizer que o apocalipse viria a galope num país endividado e com inflação bem abaixo dos valores tépidos registados na zona euro: medida pela taxa de variação anual do índice harmonizado de preços no consumidor, a taxa de inflação, que esconde realidades setorial e nacionalmente diferenciadas, terá atingido em 2021, segundo a informação disponibilizada pelo Banco de Portugal, o valor mais elevado dos últimos 25 anos, 5,1%. Em Portugal, não passará dos 0,9%.
A discussão sobre o aumento moderado e provavelmente temporário dos preços ganha em partir das recentes declarações do Governador do Banco de Inglaterra, onde as questões parecem ser tratadas hoje com relativa clareza, apesar de aí se ter, contraditoriamente, começado a subir a taxa de juro de referência para 0,25%: «a política monetária não nos dá mais gás, mais chips ou mais condutores de camiões».
Realmente, o potencial problema está nos bloqueios na oferta, gerados por uma excessiva dependência em relação a cadeias de valor demasiado globalizadas e logo frágeis, na especulação imobiliária ou nos mastodontes privados na área da energia, que aproveitam todas as oportunidades para subir os preços, particularmente em Portugal, onde se cometeu o erro de privatizar um sistema de provisão vital, dando grande margem de manobra às empresas para fixarem os preços. A inflação é realmente puxada pelos custos e, apesar das queixas suspeitas do patronato em relação à falta de trabalhadores, a verdade é que não há qualquer tendência para a subida dos salários reais acima da produtividade real, antes pelo contrário, como se vê no gráfico, até porque a taxa de desemprego permanece elevada e os sindicatos enfraquecidos. O trabalho tem perdido as lutas de classes, conseguindo no máximo manter posições ou obter ganhos localizados.
Para resolver os eventuais problemas reais subjacentes à inflação, a política monetária não tem qualquer serventia direta. Aliás, a política monetária só serve eventualmente para jugular de forma rude algumas formas de que os processos inflacionários se revestem, através de mecanismos tão reais quanto evitáveis, dados os grupos sociais atingidos: quebra do investimento e da procura em geral e aumento do desemprego. Pode até acontecer que a elevação do custo do crédito, um dos principais fardos para as empresas e que estas podem eventualmente passar para jusante, tenha efeitos perversos ao nível da inflação. Hoje em dia, no campo da procura, a questão é mais de mudança do seu perfil do que de qualquer pressão macroeconómica, até porque estamos longe de ter recuperado da crise pandémica e dos efeitos globais na capacidade produtiva instalada que está a ser utilizada em demasiados setores. As respostas têm de ser mais finas e delicadas, setoriais, de resto como a pressão nos preços.
Assim, se queremos atenuar a especulação e os seus impactos deletérios em tantos sectores, então instituamos mecanismos regulatórios e fiscais adequados: dos controlos de capitais à direcção do crédito, passando por uma fiscalidade mais assertiva, por exemplo em relação a mais-valias mobiliárias e imobiliárias ou ao consumo conspícuo. Se queremos ter menos perturbações nas cadeias de valor, então desglobalizemos, confiando em cadeias mais curtas e territorialmente mais ancoradas, através de uma política industrial adequada. Se queremos ter energia mais barata, então controlemos publicamente este sistema de provisão, insistamos no controlo de preços, na senda das tarifas elétricas reguladas, e invistamos maciçamente nas energias renováveis.
No fundo, a mensagem geral resume-se a isto: deixe-se as taxas de juro nominais em paz e continue a controlar-se bem esse “preço”, garantindo a eutanásia dos rentistas, através de taxas de juro reais negativas, uma bênção para os devedores. É claro que esta política geral é particularmente útil para Portugal. Uma inflação moderada, desde que acompanhada pelos cuidados acima registados no controlo de preços e pela garantia do poder de compra das classes populares, tem a virtude de erodir o valor real da dívida, tornando o seu fardo menos pesado. Uma taxa de inflação relativamente mais alta nos países do centro tem a virtude de nos fazer ganhar competitividade pelo preço. A crise pode ser uma oportunidade, desde que as coisas sejam bem organizadas.
«...desde que as coisas sejam bem organizadas»
ResponderEliminarSempre e só todo o poder resolve todos os problemas...