Já aqui e aqui abordamos a crescente centralidade do património imobiliário na reprodução de desigualdades. Esta semana saiu um estudo, patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian, que defende a mobilização do Património das famílias como activo estratégico nacional.
A proposta consiste em “[o]lhar para a economia com o foco no património”, o que implica, por um lado, “valorizar a poupança das famílias portuguesas a médio e longo prazo”, e por outro, “rentabilizar e utilizar de forma eficaz a poupança interna como alavanca do crescimento”.
Com três quartos das famílias proprietárias da residência familiar, que é o principal e mais valioso ativo que detêm, não é de estranhar que o património das famílias portuguesas esteja no centro das atenções. Em 2019, em termos líquidos (isto é, deduzida a dívida), a riqueza das famílias ascendia a 686 000 milhões de euros, dos quais 413 000 milhões em ativos imobiliários. Este montante corresponde a 60% do seu património total, a 283% do rendimento disponível e 205% do PIB. Um montante muito significativo.
Num contexto de austeridade orçamental permanente, o património imobiliário das famílias adquire enorme relevância do ponto de vista económico e social. Como o estudo reconhece, “quando os preços das casas desvalorizam, 3⁄4 dos portugueses empobrecem, ao invés, quando se valorizam, toda a economia nacional beneficia”.
Resultado de uma política de habitação centrada no apoio à compra de casa própria a crédito, o relevante peso da riqueza patrimonial das famílias adquire importância estratégica, quer pelo seu efeito amortecedor em contexto de crise, quer pelo seu papel de estímulo económico. Como o estudo esclarece:
“Em situações de crise, a poupança imobiliária pode funcionar como ‘amortecedor de último recurso’, como ‘almofada de reserva’, que se pode hipotecar ou transacionar, mitigando as consequências económicas, sociais e políticas das crises. Ao invés, em períodos de expansão, atua como ‘alavanca’ do crescimento, financiando directamente o investimento das famílias ou, indirectamente, como colateral para potenciar a expansão do crédito.”
Se a propriedade imobiliária sempre desempenhou estas funções, há agora uma mudança estrutural que importa sublinhar. Se, até à crise financeira, o crédito à habitação sustentou um modelo de keynesianismo privatizado, estimulando a economia por via dos efeitos sobre os setores da construção e imobiliário, o crescimento da propriedade residencial ao longo de décadas permite agora instituir um brutalmente desigual regime de bem-estar patrimonial privado, segundo o qual as famílias recorrem ao seu património para lidarem com o desemprego, a quebra de rendimentos e outras contingências pessoais e sociais perante a retração do Estado Providência.
Mas não haja ilusões. Tal não significa a demissão do Estado. Este é convocado para garantir a rentabilização e valorização do património imobiliário, como a sua ‘monetarização’, isto é, a possibilidade de este gerar “um aumento efetivo e sustentado de rendimento das famílias proprietárias sem implicar a venda do ativo”. Como tudo isto se poderá operacionalizar não é explicitado no estudo, mas certamente passará por novos e mais engenhosos produtos financeiros. Aposto que não tardará que outro estudo nos venha esclarecer a este respeito.
Já não será tão expectável que venhamos saber o que fazer quando, de crise em crise, a ‘almofada patrimonial’ das famílias mais vulneráveis for encolhendo. Tão pouco se poderá esperar que venhamos saber que ‘almofada’ caberá ao quarto das famílias que não dispõe de património imobiliário para se proteger neste regime de bem-estar patrimonial em construção ao mesmo tempo que enfrenta custos habitacionais acrescidos.
Muito bom!
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