domingo, 14 de novembro de 2021

Mau viver


Quem é que dá o litro pelo país? Nós é que produzimos, nós é que trabalhamos, e o que é que nos dão em troca? Mau viver e humilhações.

Rosa Maria Brito, operária têxtil

Se é verdade que não convém esquecer a questão - afinal de contas, quem cozinhava as refeições a Adam Smith? - também é verdade que este economista político não deixou de assinalar que a tendência para idolatrar os ricos e para desprezar os pobres é uma causa da corrosão dos sentimentos morais. Entre estes sentimentos encontra-se a capacidade de nos colocarmos no lugar da outra e de tentar ver o mundo pelo seu prisma. Uma certa economia ajuda a cultivar a antipatia, como se viu quando se começou a discutir a sério a questão do aumento do poder de compra do salário mínimo há uns anos atrás.

Lembrei-me disto a propósito de uma reportagem de Natália Faria no Público, infelizmente rara em sociedades tão desiguais e tão corroídas: “Metemo-nos na pele de uma operária têxtil, de uma funcionária num hospital e de uma assistente operacional num centro de acolhimento de jovens em risco, para perceber como é possível viver com os 665 euros ilíquidos do salário mínimo. As vidas de Rosa, Isabel e Ana Cristina mostram que não é: sobrevive-se.”

No centro das preocupações políticas devem estar estas vidas, as que criam tudo o que tem valor na produção económica e na reprodução social: quase um terço das mulheres trabalhadoras está submetida por cá a este mau viver.

2 comentários:

  1. O modelo em vigor é urbano, solitário/convivial: um salário, uma renda de casa, uma vida social requerendo sair de casa e encontrar gente ou acontecimentos tipo vário.
    É fácil verificar que um salário mínimo não viabiliza o modelo.
    Dobrando o salário ainda fica escasso.

    A questão, e é económica, é saber se é o modelo ou o salário que está errado.

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  2. Mas, José, é o modelo que está errado, obviamente! O salário mínimo, esse, está sempre demasiado alto, estratosférico até!, etereamente pesando sobre a inovação e a competitividade das empresas. Aliviemo-nos pois desse lastro modelar, que é justamente o empurrãozinho que faltava para que florescessem mil gafams nesta Califórnia esquecida.
    O modelo, esse, uma vez corrigido, convidaria a trabalhar mais, partilhar a casa com mais umas famílias e suas proles (por um fim à solidão, reavaliemos a promiscuidade sob o prisma convivial), e a não sair dela senão para o estritamente necessário: abaixo de mínima a remuneração maximiza a economia do conhecimento e o gosto pelo risco, acima alimenta o convívio fútil. Enfim. Em fim. O fim. Fim.
    Onde iríamos parar se qualquer bicho careta com o salário mediano fosse capaz de sacar uma vida decente?


    Porque, sejamos sérios,
    Pour faire une bonne dame patronnesse
    Il faut organiser ses largesses
    Car comme disait le duc d'Elbeuf
    "C'est avec du vieux qu'on fait du neuf"

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