Também em 1936, John Maynard Keynes, escreveu a Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Como se sabe, trata-se de uma peça incontornável do pensamento económico moderno. Nela Keynes dá-nos conta de todo um novo continente até ali, senão por descobrir, pelo menos, insuficientemente mapeado: a macroeconomia. Do meu ponto de vista, um dos aspetos centrais desta nova geografia económica é precisamente a negação da atávica, falsa e contraprodutiva ideia da necessidade de manter orçamentos de Estado permanentemente equilibrados. Mais detalhes acerca da falácia da composição em que incorre aquela errada assunção podem ser encontrados, por exemplo, aqui, aqui ou aqui.
De forma muitíssimo breve, como envelheceram estas ideias?
O ponto de vista de Keynes prevaleceu de forma quase generalizada em todo o mundo e foi fundamental para retirar as economias capitalistas avançadas do atoleiro em que se encontravam em resultado da crise de 1929 e da subsequente aplicação de políticas subordinadas ao princípio de orçamentos equilibrados. Permitiu o New Deal nos EUA e permitiu, mais tarde, que a Inglaterra se reerguesse e encontrasse os meios necessários para financiar a economia de guerra que derrotou a Alemanha na II Guerra Mundial, um inimigo empoderado também por ter compreendido primeiro que os outros que o desemprego não é inevitável, que um Estado soberano, querendo, encontra sempre os meios financeiros para o debelar. No caso da Alemanha nazi-fascista, o novo emprego serviu para criar canhões, mas poderia ter servido para criar manteiga. Com o fim da guerra, a orientação Keynesiana tornou-se hegemónica. Portugal foi uma das tristes exceções. Com o ditador Salazar, durante décadas, a gerir as finanças do nosso país como se de uma paróquia se tratasse, o orçamento passou a ter despesas iguais às receitas e o país atolou-se na miséria material. O resto do mundo capitalista ocidental avançou, Portugal não acompanhou. Ainda hoje pagamos a factura.
A hegemonia Keynesiana manteve-se intocada até meio da década de 70 do século passado, momento em que começou a ser progressivamente substituída pelo neoliberalismo. As razões pelas quais isto aconteceu continuam sujeitas a uma tremenda disputa. Do meu ponto de vista, pouco, ou nada, têm a ver com o esgotar da solução que sustentou o período mais próspero e redistributivo da história do capitalismo - o período 1945-73. Essas razões devem antes ser procuradas, numa combinação de fatores, que incluem o reajustamento económico à escala mundial forçado pelo fim do regime monetário saído em 1945 de Bretton Woods, ou seja, da morte definitiva do padrão-ouro e da sua substituição por um regime monetário inteiramente fiduciário. Combinação de fatores aquela que inclui também a crescente dificuldade de continuar a extrair de uma classe trabalhadora progressivamente robustecida, justamente pelo sucesso do compromisso redistributivo Keynesiano, o consentimento para a sua exploração.
Assim como assim, se é certo que o neoliberalismo impôs as suas falácias, entre elas a da semelhança entre orçamentos públicos e familiares, e se com elas fomos sugados para um modo de produção e distribuição altamente regressivo que gerou por todo o planeta uma desigualdade sem precedentes históricos, também não há como negar que, a partir da grande crise de 2008 todo este edifício começou a apresentar brechas.
Com a crise pandémica e a enormidade do desafio que esta impôs à humanidade, ninguém quis usar um edifício danificado para suportar o embate. Subitamente, um pouco por todo mundo, voltou a ser claro que o Estado não era como uma família. Que os impostos, a emissão de obrigações e a "impressão de dinheiro" não eram uma hierarquia moral, mas simplesmente formas alternativas de financiamento da despesa pública com diferentes implicações para os balanços privados. Que o verdadeiro limite da despesa pública não era um teto artificial de dívida, ou o risco de "ficar sem dinheiro", mas a capacidade produtiva da economia e o risco de desencadear inflação, ou uma multiplicação ruinosa de estrangulamentos e atrasos disfuncionais de encomendas não satisfeitas. Por todo o lado voltou a ser possível encontrar Keynes citado. Mais uma vez pudemos constatar que podemos dar-nos ao luxo de tudo o que, de facto, podemos fazer.
O texto vai longo. Muito do que aqui se escreveu não é novidade neste blogue. O que tem isto a ver com o título do post?
Tudo isto é uma tentativa de mostrar porque me sinto perplexo com a quantidade de respeitáveis intelectuais de esquerda da nossa praça que, a propósito da discussão do orçamento de Estado e das implicações políticas do seu chumbo, cai no logro e vem, em 2021, defender que, estando as finanças da mercearia e as do Estado, essencialmente, sujeitas a idêntica necessidade de equilíbrio, então, consequentemente, as exigências de maior despesa da esquerda do PS são irrealistas e irresponsáveis.
Sentem-se ‘chocados’, é o clamor que grassa. Pessoalmente, sinto-me, não só perplexo e chocado com o seu choque, como também incrédulo com aquilo que me parece ser – desculpem, mas é mesmo o que me parece - a sua captura intelectual e ideológica. Assim não vamos lá.
"necessidade de manter orçamentos de Estado permanentemente equilibrados"
ResponderEliminarFelizmente essa ideia Salazarista foi completamente abandonada em Portugal, como mostra este gráfico https://www.cfp.pt/pt/dados/series-temporais/anuais
Defende orçamentos de Estado desequilibrados (défices)? Então não percebo de que se queixa (com exceção de 2019) ...
Não me queixo de nada. Defendo que a lógica da mercearia não serve ao país. Agora que partilhou dados que ninguém conhecia, faça lá o esforço de imaginar o que teria sido das finanças privadas na ausência daqueles défices públicos mas não se esqueça que as despesas de uns são as receitas dos outros.
ResponderEliminar"Agora que partilhou dados que ninguém conhecia"
ResponderEliminarAqui reside precisamente a dissonância cognitiva do seu post: por um lado, partindo do princípio que esta sua afirmação é irónica, já sabia que em Portugal houve sempre défices orçamentais desde 1995 (e até antes, com exceção de 2019); por outro insurge-se contra a geografia económica neoliberal a que Portugal tem estado sujeito que exige manter orçamentos de Estado permanentemente equilibrados.
Facto: Portugal nunca teve orçamentos de Estado equilibrados (desmente?).
Conclusão: Portugal não foi sujeito a uma geografia económica neoliberal que impõe a "necessidade de manter orçamentos de Estado permanentemente equilibrados".
É com gosto que leio os posts deste blog, os quais expõem ideias e formas de pensar que fogem ao "pensamento comum" regularmente veiculado na praça pública.
ResponderEliminarMas acreditar que se mudam mentalidades e ideias preconcebidas, sem se perceber que há um caminho a ser feito, que tem de passar por cedências e, por vezes, à aceitação de um "mal menor", é ser sectário e radical.
Por muito que se critique este orçamento, não é difícil imaginar com grande grau de certeza, que um orçamento elaborado pela direita rangelista apoiada pelo cotrim, melo e ventura será algo bem pior.
E o que pensam os eleitores do BE e do PCP sobre isso? Será que pensam que é melhor um pássaro na mão do dois a voar?
Sim, porque não pode haver ilusões, se este orçamento não passar, haverá eleições e a direita vai ganhá-las.
A meu ver, trata-se menos da minha dissonância cognitiva e, talvez, mais do seu Alzeihmar. Deve ter-se esquecido do que diz o mal chamado pacto de estabilidade e crescimento. E, mais importante, deve ter-se-lhe varrido o que o país passou quando, em 2012, tentando conter o défice nos limites que nos são impostos externamente o governo de então provocou o maior recuo do PIB que as estatísticas de então registavam. Ainda mais importante, parece também não se recordar dos correspondentes 25% de desemprego real e do muito significativo crescimento simultâneo da dívida pública e privada. Por fim, deve custar-lhe a perceber o que significa que o défice é uma variável endógena, mas, se quiser entendê-lo, não é difícil de explicar; significa apenas que o Estado pode decidir apontar para todos os superávites que quiser que, no fim, o saldo orçamental será ditado pelo andamento global da economia. Economia essa que não costuma crescer, quando, havendo recursos produtivos ociosos, a opção é cortar, cortar. Mas eu percebo que uma vez viúva de Salazar, sempre viúva de Salazar.
ResponderEliminarCaro Rasputine,
ResponderEliminarAgradeço as palavras de apreço que dirigiu a tod@s que fazem este blogue.
Relativamente às questões que coloca, as respostas que poderia dar-lhe, grosso modo, pode encontrá-las algures entre o que já foi dito por Paulo Pedroso e por Ricardo Paes Mamede. As ligações abaixo:
https://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2021/10/paulo-pedroso-sobre-negociacao-politica.html
https://ladroesdebicicletas.blogspot.com/2021/10/barbaros-sao-os-outros.html
Eu li esse esse posts e respeito a opinião e até concordo com muitas coisas que são ditas.
ResponderEliminarContinuarei "a vir aqui" e espero que continuem a vossa "batalha", mas a minha opinião a respeito desta situação especifica mantém-se! É um erro o voto contra do PCP e do BE neste orçamento e o preço a pagar poderá ser muito alto.
Folgo que planeie aqui regressar. Pessoalmente, gosto de ser lido por todos que, concordando ou não, se mantêm disponíveis para pensar em alternativas não só ao capitalismo mas sobretudo à sua agressiva forma neoliberal. Quanto ao resto, como podia eu deixar de respeitar a sua legítima perspectiva? Concordamos em discordar? Agora, se Marcelo marcar eleições, o que é necessário é combater o derrotismo e voltar a ganhar a uma direita desorientada, minada por guerras internas de protagonismo e sem qualquer programa para o país.
ResponderEliminar"faça lá o esforço de imaginar o que teria sido das finanças privadas na ausência daqueles défices públicos"
ResponderEliminarConcordamos portanto que em Portugal, desde 1995, houve sempre défices públicos (excepto em 2019). É um facto.
Decorre desse facto um outro facto: Portugal não "manteve orçamentos de Estado permanentemente equilibrados".
Também escusa de me insultar com o epíteto "viúva de Salazar: voto PS e defendo contas certas como o atual Primeiro Ministro. Com défices, mas limitados.
Aposto que esses intelectuais de esquerda(?) que se insurgem contra as posições do BE e PCP não sofreram com a austeridade nem com a falta de mudança substancial nos anos da Geringonça.
ResponderEliminarQual é a solução?
Mais festinhas num Partido "Socialista" que, apesar da oportunidade para mudar de vida e rejeitar o neoliberalismo, continua a tentar fazer de parvos aqueles que lhe estenderam as mãos para o salvar e, mais importante, tentar fazer de parva muita da população que precisa de um Estado que as sirva bem.
Ser um poucochinho menos mau que o governo PàF não chega, já escrevi isto antes, é preciso parar imediatamente com esta deriva lunática neoliberal e começar a seguir outro trajecto.
É inacreditável passados estes anos todos de austeridade, de decadência e sacrifícios enormes ainda haver gente que se diz de esquerda não sentir a urgência da mudança.
Estou a ficar sem opções para me fazer entender. A questão não é se o país registou, ou não, défices. Todos sabemos que registou. A questão é se o país está, ou não, obrigado a procurar o equilíbrio orçamental e se é essa obrigação faz sentido económico e se serve à economia portuguesa. Como já tentei explicar-lhe, o défice é uma variável em grande medida endógena. O que significa que o saldo orçamental reflecte tanto as decisões dos restantes agentes económicos como a opção discricionária da política orçamental de aumentar ou diminuir a despesa. Para um exemplo bastante gráfico e não menos doloroso, repare, repito, no que aconteceu no período do ajustamento imposto pela troika. O governo da direita tinha como objetivo - externamente imposto - eliminar rapidamente o défice público. Cortou em tudo. No subsídio de desemprego, com o desemprego a aumentar. Na saúde com o SNS a estilhaçar de desinvestimento. E aumentou brutalmente os impostos dos trabalhadores. E o resultado qual foi? Uma queda sem memória do PIB e a revisão sistemática em baixa do saldo orçamental. É isto que significa endógeno. Conseguiram o almejado superávite? Não conseguiram. Era esse o objetivo? Era. Assim sendo qual é o facto afinal!? É que também nestes anos o país teve défice? Ou que a procura a todo o custo de superávit, por imposição estrangeira e sem qualquer racionalidade económica, destruiu economia e agravou a posição orçamental pública?
ResponderEliminarQuanto ao resto, sabe como é, dar a outra face não é a minha praia, não sou pacifista e muito menos cristão, e dissonância cognitiva não é exatamente um elogio. Se quer urbanidade mantenha-se urbano. E, já agora, se quer participar em debates complexos e carregados de história e nuances faz muito bem. Mas não se deixe convencer que estudar não é necessário, que tudo é evidente e vale pelo seu valor facial, que, evidentemente, se não há dinheiro, não devia haver despesa. Porque pura e simplesmente não é assim que a coisa funciona.
Saudações a TINA's Nemesis, por vir expor o óbvio: que o Partido "Socialista" tem horror à política de esquerda, ou a qualquer coisa remotamente socialista.
ResponderEliminarFicam bem é com o Partido "Socialista" Dois.
Mensagem para Jaime Santos,
ResponderEliminarO seu comentário encontra-se a repousar por direito no lugar onde também jaze a propaganda ‘não há alternativa’ e a barragem-cassete à ideia de soberania monetária e orçamental e da associada autonomia política nacional: o spam. Mas não desista. Se decidir engajar na discussão que o post propõe e não naquela outra que lhe convém, os seus comentários serão publicados. Mantendo o nível, claro.
Caro Paulo Coimbra,
ResponderEliminarEm termos de urbanidade, a referência a "dissonância cognitiva" pode não ser um elogio mas não é um insulto e está a milhas de distância de uma referência a "mas eu percebo que uma vez viúva de Salazar, sempre viúva de Salazar".
Quanto ao principal da questão.
Sendo o défice uma variável endógena, e o saldo orçamental ditado pelo andamento global da economia, as ações de um governo não têm impacto no saldo orçamental? Recorrendo a cativações que procuram adaptar o ritmo da despesa ao ritmo da receita, por exemplo?
E eu não me esqueci dos limites do pacto de estabilidade. Por ser um pacto a que Portugal aderiu não se pode dizer, sem mais, que nos é imposto. Para além de que, no caso deste governo, não me parece que a procura de "contas certas" resulte dessa imposição mas de uma convicção (que eu partilho) de que é necessário/útil procurar limitar o défice orçamental. Desde logo no momento em que projeta um orçamento. O que não significa que seja zero e que o limite do pacto de estabilidade não seja um limite artificial.
Claro que as acções do governo têm impacto, não se pode é determinar, com uma simples análise de balanço sectorial, qual é esse impacto, nem sequer o sinal; mais, não só num ano, como nos seguintes.
ResponderEliminarPreocupa-me muito mais um SNS e sitema de educação com trabalhadores desmotivados a querer fugir, bem como o resto dos técnicos especializados a levar ao decair do país, por ex, mas não só, como as paisagens turísticas ao abandono ou exploração destrutiva, do que uma conta para a qual há sempre financiamento havendo vontade política.
"defendo contas certas como o atual Primeiro Ministro. Com défices, mas limitados"
ResponderEliminar"uma convicção (que eu partilho) de que é necessário/útil procurar limitar o défice orçamental"
E essa convicção que partilha é sustentada em argumentos que rebatem aqueles que apresentei ou é uma clubista profissão de fé? Se há argumentos, faça o favor.
Mensagem para José,
ResponderEliminarVer mensagem para Jaime Santos.
Sendo este blog tão povoado de estatísticas, onde as que exprimem a falta de crescimento económico resultante da política orçamental do Estado Novo?
ResponderEliminarToda a política económica se define a partir de um 'ponto de partida' (La Palisse)
ResponderEliminarTomemos 1926 como esse ponto.
O que diria Keynes se estivesse no endividado e rural Portugal e não no país líder da revolução industrial, potência militar e imperial?
José,
ResponderEliminar1. Assim, pelo menos, já não é soez. Custa assim tanto?
2. Essas estatísticas estão logo a seguir aquela parte do texto onde se afirma a 'falta de crescimento económico'. Não reparou?!
José,
ResponderEliminarKeynes diria:
1. "Não sejam estúpidos, o fascismo nunca resolve nada"
2. "Estão num buraco. Parem de cavar. Esqueçam o endividamento interno. Não se esqueçam que afinal de contas também têm um banco central. Reverter o endividamento externo é necessário mas isso não se faz destruindo a economia e condenando o povo à miséria. Pelo contrário, faz-se usando plenamente todos os recursos à disposição do país, assegurando emprego e criando riqueza. O que precisam é de investimento e não de moral serôdia. Proteger os negócios dos amigos é má ideia. O que tem que ser protegido é o saldo da balança corrente. Como fizemos aqui na Inglaterra. Essa ideia do livre comércio é um engano promovido pelos países exportadores".
3. "Compre botas novas; o sapateiro precisa de trabalho. Pare de criar galinhas em São Bento; compre galinhas pela mesma razão das botas; para além do mais é uma porcaria, se saísse do país sabia que os francesas já inventaram a higiene”.
4. “Pare de me fazer perguntas. Não dou conversa a fascistas, sobretudo se são pacóvios. Largue a bíblia e o silício e leia a Teoria Geral”.
5. “Também eu tenho falhas momentâneas de raciocínio. Os fascistas são todos pacóvios”.