Num artigo para o Financial Times, Wolfgang Schauble vem afirmar que apesar de ser apoiante do fundo de recuperação aprovado é agora (!!) tempo de “regressar à normalidade monetária e fiscal”. No essencial, a argumentação não é nova, mas sim errada e mesmo que não o fosse seria certamente prematura: é necessário reduzir o peso da dívida, caso contrário, mais tarde ou mais cedo teremos inflação.
Mais interessante é a escolha de companheiros de batalha. Para dar corpo ao fantasma da inflação, Schauble recorre a Keynes, o mesmo Keynes que introduziu o conceito de procura agregada, sendo que é esta, e não propriamente a quantidade de dívida (ou dinheiro), que contribui para uma eventual inflação.
Foi precisamente isto que Olivier Blanchard, outro companheiro de batalha escolhido por Schauble no referido artigo, veio já afirmar no seu Twitter, passando assim para o outro lado da barricada:
"Receio que o Sr. Schauble não me compreendeu. Fui contra o programa de estímulos de Biden, não por causa do aumento da dívida, mas pelo aumento da procura que este implica e o risco de sobreaquecimento e inflação. E não me preocupo com a inflação na União Europeia".Para recolocar Keynes no lado em que ele gostaria de estar, termino com um pequeno excerto de 1942 (perdoem-me a fraca tradução):
“Onde estamos a usar recursos, não nos submetamos à doutrina vil do século XIX que todos os empreendimentos devem justificar-se em libras, xelins e pence de dinheiro, sem outro denominador de valores, além deste...
Tudo o que pudermos fazer, podemos pagar. Uma vez feito, está lá. Nada pode tirá-lo de nós. Somos incomensuravelmente mais ricos que os nossos antecessores. Não é evidente que algum sofisma, alguma falácia, governa a nossa ação coletiva se formos forçados a ser tão mais miseráveis do que eles nos embelezamentos da vida?”
Já que o Finanacial Times dá voz ao Wolfgang Schauble já lhe devia ter perguntado sobre o resultado social das politicas que defendeu e defende para a zona Euro ou porque razão devem ser os pobres a pagar a divida dos ricos, podia também aludir à desigualdade que se vive na Alemanha e já agora e fora dela, tenho a certeza que iria ser absolutamente esclarecedor. Estes sábios são o máximo mas nunca respondem ás perguntas certas...
ResponderEliminarSeja bem-vindo Pedro Pratas é sempre com um enorme gosto que vemos chegar um dos nossos.
É mau e ridículo demais para levar o alemão a sério...
ResponderEliminarCaro Pedro Pratas,
ResponderEliminarÉ um excelente artigo, mas permita-me acrescentar, em jeito de comentário, não uma outra tradução, um refrasear da prosa da Keynes, para a nossa lusa língua (com algum contexto adicionado).
Não nos devemos deixar submeter à vil doutrina do século XIX, segundo a qual toda a empreitada que não seja monetariamente rentável, não deve ser executada. Existem outras formas de valor muito para além do valor monetário. Ou como diria o antropólogo -- infelizmente já falecido -- David Graeber, o valor social [subtende-se aqui de uma obra ou empreitada, mas não se aplica só a estas] -- é algo inerentemente subjectivo.
É claro que isto leva à questão óbvia: mas de onde vem o dinheiro? Pese embora os incessantes urros dos (neo)liberais em sentido contrário -- em particular o cada vez mais insuportável Schauble -- o dinheiro, já Aristóteles (!) o reconhecia, é uma ficção colectiva. Dito de outro modo, o dinheiro não interessa; o que interessa são os recursos. É precisamente isto que Keynes quer dizer com a frase: "Anything we can actually do we can afford." (Tudo o podemos fazer/construir, também podemos pagar.)
E como, continua o grande economista, as modernas gerações têm ao seu dispor muito mais recursos (e logo podem fazer muito mais) do que as que nos precederam, se uma cada vez maior quantidade de seres humanos consegue pagar cada vez menos coisas do que a geração dos seus pais, isso leva à inevitável de conclusão de que a nossa acção colectiva -- i.e., a actuação dos estados (mas não só) -- está a sucumbir a alguma aldrabice.
Essa aldrabice, acrescento eu, chama-se neoliberalismo. Simplificando um pouco (quiçá em demasia), eu resumo-a do seguinte modo: agora que existem recursos suficientes para garantir o sustento de todos, com um número de horas cada vez menor, os neoliberais, assustados com o aumento de liberdade das massas que isso acarretaria (a liberdade, segundo os arautos dessa corja, é só para a elite; cf. Losurdo, Counter-history), arranjaram um truque para manter tudo como estava: agarravam no único bem que hoje em dia é criado de modo totalmente artificial -- o dinheiro (cf. Graeber, Debt) -- e tornam-no cada vez mais escasso, com gritos de VEM AÍ A INFLACÇÃO, DESTA É MESMO A SÉRIO!!!! (Como diz Blanchard, não há risco de inflacção na UE, e mesmo que houvesse alguma (pouca), com o nível de endividamento que existe, isso seria até benéfico para a larga maioria da população -- bem como para os estados mais endividados.)
É, a meu ver, neste contexto que as afirmações de Schauble devem ser interpretadas -- e depois sumariamente enviadas para o caixote do lixo da história.
O citado artigo do Financial Times acaba por fornecer um exemplo que ilustra bem porque é que Schauble é, para mim, um aldrabão -- e de facto, um mentiroso crónico.
ResponderEliminarSenão vejamos: para tentar fazer passar a ideia de que Keynes seria a favor da austeridade, para combater a inflação, Schauble oferece o seguinte link: https://www.pbs.org/wgbh/commandingheights/shared/minitext/ess_inflation.html. Aqui é transcrito um pequeno excerto de um livro da autoria de Keynes, chamado "The Economic Consequences of the Peace", publicado em 1919 (um ano após o fim da primeira guerra mundial). E de facto, na passagem referida, Keynes explica, lucidamente, quais os perigos de uma inflação galopante, generalizada, e fora de controlo.
Contudo, consultando a obra original, e lendo desde o início o capítulo onde aparece esse trecho -- "Europe after the Treaty [of Versailles]", capítulo 7 na minha edição -- fica claro que a mentalidade de Keynes era muito diferente daquela que Schauble agora quer fazer passar. Na realidade, o que muito preocupou Keynes, era que o tratamento imposto pelo Tratado iria ter como resultado uma significativa parte da população da Alemanha (derrotada na WWI) ver-se privada do seu sustento. Escreveu Keynes (tradução minha): «A fome, que a alguns conduz à letargia e ao desespero resignado, leva outros temperamentos à incandescência, à instabilidade, e ao desespero que desemboca na loucura. E são estes últimos que, nas suas tentativas cada vez mais desesperadas de satisfazer as necessidades mais básicas do indivíduo, poderão acabar desmantelando o que ainda sobra da sociedade organizada, levando ao colapso da própria civilização.»
Fica claro então que o que preocupava Keynes era deixar as populações entregues à sua sorte, pois como ele previu (correctamente), nada de bom adveio daí. Em 1919, quando a Alemanha andava a imprimir dinheiro como se não houvesse amanhã, para conseguir pagar as dívidas punitivas impostas pelos Aliados vitoriosos, era natural que Keynes se preocupasse com a inflação. Mas em 2021? Na zona euro?! Quando o problema não é a inflação (até Blanchard o reconhece), mas sim a perda generalizada de rendimentos? Dizer que Keynes se preocuparia com inflação num cenário destes faz tanto sentido como dizer que Keynes se preocuparia com a inflação durante a Grande Depressão -- ou seja, não faz sentido nenhum, dado que a realidade foi exactamente a oposta: durante a depressão, Keynes advocou o endividamento dos estados, para contrabalançar a quebra do investimento privado.
É preciso muita lata para defender a "normalidade monetária e fiscal" (i.e., austeridade), por receio de uma inflação que ninguém consegue ver, e para mais vir dizer que Keynes concordaria!! O senhor Schauble devia era ter vergonha na cara.