Há um cartaz dos liberais (novos neoliberais) em que um homem sobrecarregado de impostos é exortado a libertar-se... do socialismo.
Não há maior cinismo do que o de alguém que sabe que, desde a década de 80 do século passado - sim, há quase 40 anos! - se tem vindo a realizar uma integração europeia e mundial à bruta, acompanhada de uma rápida transformação político-institucional colada à UE e de políticas alinhadas com um ideário neoliberal, as quais redundaram em Portugal numa estagnação da riqueza produzida (desde 2000), numa subida exponencial do desemprego (ainda mais, dos trabalhadores considerados subutilizados*) e, consequentemente, numa estagnação salarial. E desemprego e maus salários são as causas da pobreza em Portugal, uma pobreza que, por isso, dura há décadas e se mantém nos 20% da população. Quem nasce pobre, pobre fica e, entretanto, alguém lucra com os seus baixos salários.
Como foi que isso aconteceu? Não se disse que a globalização traria mais riqueza para todos? Não se defendeu que Portugal deveria habituar-se a viver em mercado e, como tal, nada melhor do que vivê-lo sem protecções? Não se disse que as empresas que nesse processo se tornassem insolventes deviam falir e que, se calhar, Portugal deveria ser um país de serviços? Não se disse que, se Portugal fosse mais competitivo (com mais baixos salários), todos tinham a lucrar com isso?
Observe-se o gráfico seguinte e veja-se no que resultou essa estratégia. E sinta-se a urgência do governo actual em retomar rapidamente o funcionamento da "monocultura" do turismo, como forma de resolver a profunda dependência externa, nunca assumida.
Pois, perante este monstro adormecido, estas pessoas, por ignorância ou desfaçatez, culpam, antes, a existência do Estado Social - sobretudo a educação, saúde e a protecção social públicas - que tem de ser financiada por impostos. Vêem o ratio (Impostos + Contribuições sociais) / PIB - vulgo carga fiscal - e esquecem simplesmente que, se esse ratio sobe, isso se deve mais à estagnação ou queda do denominador - o PIB. Mas sobre esse fenómeno essas pessoas ou nada dizem - porque lhes custa assumir a ineficácia dos seus argumentos teóricos; ou argumentam precisamente que a estagnação se deve ao peso dos impostos (no PIB) e não saiem disto.
Ainda hoje o deputado Cotrim de Figueiredo - durante uma interpelação do PCP sobre a defesa dos direitos dos trabalhadores - voltou a insistir na asneira de que melhores salários se conseguem se forem menos tributados. Tudo em nome dos "interesses dos trabalhadores" que, a prazo, ficariam sem escola, sem saúde, sem protecção social... Tudo para que o rendimento disponível dos trabalhadores possa subir, à custa do Estado, sem que o patronato pague mais!
Eis a enorme dependência externa da nossa burguesia nacional, pobremente visionária, sempre tão permeável aos argumentos que vêm de fora e que geralmente favorecem... as empresas estrangeiras.
Por desfaçatez ou ignorância, essas pessoas omitem que foi nesses décadas que as confederações patronais foram pressionando e conseguindo a redução de mínimos legais, que liquefizeram os contratos de trabalho, os horários de trabalho, os acordos colectivos, a proteção à greve, os desincentivos aos despedimentos, os direitos sindicais, as próprias empresas (ao autonomizarem-se secções a funcionar com falsos trabalhadores por conta própria ou fornecidos por empresas de trabalho temporário, criando pesadelos inspectivos à Autoridade para as Condições no Trabalho que raramente consegue responsabilizar o "dono da obra" efetivo) - tudo para que os trabalhadores ficassem desarmados para defender o seu salário.
E, se tudo falhar, que se desarme as regras da contratação, que se aprove todo o tipo de contratos precários e flexíveis, temporários e de curtíssima duração, e que se empregue imigrantes a ainda mais baixos salários, para realizar trabalhos que os trabalhadores portugueses se recusam a fazer por baixos salários, para que assim não suba o salário médio dos trabalhadores nacionais.
E já agora apoie-se forças políticas que exortem os trabalhadores nacionais contra os imigrantes. Se aderirem a esse impulso emotivo contra o outro, o estranho, os trabalhadores nacionais aceitam melhor a exploração dos imigrantes, sem perceber que têm tudo a ganhar em defendê-los - porque estarão a defender os seus próprios salários.
Apoiar a extrema-direita xenófoba visa, pois, baixar salários. E há beneficiários dessa deriva política.
Ora, estas políticas não libertaram os trabalhadores das suas sobrecargas: aliviaram os trabalhadores dos seus salários, roubaram-lhes rendimento. E deixaram-nos mais pobres, mais fracos. Não foi o Estado Social, não foi a política fiscal: foi a política laboral liberal.
Se há desfaçatez - porque não se trata de ignorância - é aquela que quer fazer confundir socialismo com o roubo do rendimento dos trabalhadores. Ora, não é o Estado quem rouba rendimento aos trabalhadores. O problema não está, pois, nos sem-abrigo a quem acudir: o problemas está nas
empresas. E nos responsáveis das empresas que defendem essas ideias.
O que é interessante na História é que nos mostra que nada se perde. Tudo renasce sobe outras formas. Mas no final, o objectivo parece ser sempre o mesmo. Manter o poder, nem que seja virando os trabalhadores conta si próprios. E tudo em nome da sua felicidade que tarda em chegar. E se alguém se rebelar, a culpa é... do socialismo.
* Trabalhador "subutilizado" (conceito INE) = Indicador que agrega a população desempregada, o subemprego de trabalhadores a tempo parcial, os inativos à procura de emprego mas não disponíveis e os inativos disponíveis mas que não procuram emprego.
«Mas no final, o objectivo parece ser sempre o mesmo. Manter o poder, nem que seja virando os trabalhadores contRa si próprios.»
ResponderEliminarAdmitindo que manter o poder significa assegurar rendimento para si e para os seus, temos como maior conservador de poder o Estado com enorme fatia do rendimento e com milhões de dependentes, desde logo com bem mais de um milhão de assalariados directos e indirectos.
Daí que nada se pode dizer quanto ao produto, sem relevar o papel do Estado na enorme captura que dele faz e da justeza dos investimentos que promove.
Em 1985 o salário mínimo anual era de 1340,8, em 2021 será de 9310,00. Isto vem ao caso de ser óbvio que 690% só pode significar a necessidade de incorporar na produção algo bem mais que mão-de-obra para que se mantenha a capacidade de concorrer nos mercados. Ora,
com a sanha tributária, o ódio ideológico sobre o capital, a exaltação da penosidade do trabalho, duvido que se possa esperar algo de compensador.
Ainda nos vai valendo a mão-de-obra importada que salva a agricultura e as remessas dos emigrantes.
Gostei do seu artigo.
ResponderEliminarSou trabalhador especializado em tubulação industrial, trabalho sobretudo no estrangeiro, onde me encontro enquanto leio o seu texto, e sou pago à hora. O meu salário é elevado, mas contém vários riscos.
Como a actividade no turismo teve uma queda brutal em 2020, isso quer dizer que aquilo que sobrou deriva sobretudo dos serviços. Acha mau que os serviços contribuam com um saldo positivo de 7.500 milhões de euros para as exportações? Normalmente, isso é uma característica das economias desenvolvidas.
ResponderEliminarDepois, gostava sinceramente de saber quais os bens que contribuem para o deficit nessa área. Se calhar são coisas como máquinas, veículos, alta tecnologia, etc, etc, ou seja, bens de alto valor acrescentado. Não iremos nunca produzi-los em condições competitivas (excepto talvez se as malfadadas multinacionais como a Bosch ou a Volkswagen investirem cá, como têm feito).
Um pouco como a História da produção de vacinas em Portugal, proposta pelo PCP que dá vontade de rir. Quer produzir vacinas de RNA em Portugal a partir do zero? E que tal lançar foguetões para Marte? Em que mundo é que vocês vivem?
As pessoas deviam ir ler o relatório Porter. Concentremos a nossa actividade naquilo que sabemos fazer bem. E se sabemos receber bem, porque não? O turismo de qualidade obriga-nos desde logo a preservar a nossa paisagem e o nosso ambiente, que é o maior tesouro que Portugal tem.
Eu lembro-me bem dos anos 70 e 80 e das praias sujas, dos rios poluídos e do País medíocre onde não existia sequer Ciência. O turismo põe pão na boca de muita gente e as suas receitas ainda permitem financiar políticas de desenvolvimento.
De resto, tem razão. Não temos socialismo em Portugal desde os idos de 1976, quando Mário Soares optou pela via europeia e António Barreto liquidou a reforma agrária. E ainda bem, porque de outro modo já teríamos falido como a URSS, Cuba, a Venezuela, etc, e provavelmente estaríamos agora na mão de um capitalismo oligárquico como o da China, Rússia, Hungria, etc...
Caro José,
ResponderEliminarManter o poder é um pouco mais do que isso. É manter um determinado status quo, que preserva um determinado conjunto de relações sociais. É um pouco mais complexo do que apenas assegurar o rendimento. Mas abstenho-me de desenvolver o tema porque só o iria enfastiar.
O Estado não é um monstro mau que se tem de matar. O Estado é uma forma organizada das relações sociais que resulta de um processo acumulado ao longo da História desde que os seres se oirganizaram para melhor se defender e preservar, e que desempenha um conjunto de funções. Nomeadamente funções de soberania – de segurança, defesa, preservação de governo - funções económicas – nem desenvolvo o tema depois desta pandemia toda! - função de redistribuição de rendimento, de protecção social, de assegurar as funções educativas e sanitárias de que por si só os cidadãos nunca poderiam usufruir, funções de equilíbrio de posições em relação desigual (caso das relações laborais), etc., etc.
Ora, ver o Estado apenas como um pequeno contabilista que vê os dinheiros a sair é uma visão, no mínimo, curta.
Quanto às comparações entre 1985 e 2021, aconselho-o a introduzir a inflação para que se possa averiguar o efetivo poder de compra e de pagamentos das empresas. Dito assim, parece que as empresas se afundam por pagar o salário mínimo. Algo ainda mais gritante quando defende a contratação dos imigrantes porque recebem abaixo disso...
Sem palavras.
Caro Jaime,
Tem toda a razão em se questionar com o conteúdo das trocas comerciais para melhor se entender o que se está a passar. Mas talvez fique admirado se vier a revelar-se que a balança alimentar se tem vindo a degradar ao longo dos tempos. Nesse caso, não são máquinas...
Sobre a concentração no que sabemos fazer bem, esse argumento vale o que vale. Foi o mesmo que justificou o tratado de Methuen que é tido como uma das causas do atraso do desenvolvimento nacional. E seria sempre um argumento a apresentar para preservar o atraso histórico de certas economias: “Olhe, concentre-se nas tangerinas que essa coisa da autonomia e de querer integrar uma fase mais avançado do desenvolvimento não é para vocês...” Cuidado, pois...
Fico satisfeito que nos diga que não vivemos em socialismo. Talvez possa endereçar essa sua posição ao deputado Cotrim de Figueiredo, que anda um pouco baralhado e que, nessa sua fúria contra o Estado - própria do século XVIII -, vive sobressaltado e ansioso, porque vê "socialismo" onde há Estado, apenas porque o Estado - o tal Estado que existe para nos servir como comunidade - está presente nas diversas facetas da nossa vida.
Já não sei se concordo muito consigo quando diz “ainda bem” que não há socialismo. É que, como se vê pelos gráficos, a realidade não-socialista não parece ser muito positiva...
«De resto, tem razão. Não temos socialismo em Portugal desde os idos de 1976, quando Mário Soares optou pela via europeia e António Barreto liquidou a reforma agrária. E ainda bem, porque de outro modo já teríamos falido como a URSS, Cuba, a Venezuela, etc, e provavelmente estaríamos agora na mão de um capitalismo oligárquico como o da China, Rússia, Hungria, etc...»
ResponderEliminarE porque não discutir os embargos ou sanções económicas (muitas vezes selvagens) introduzidas pelo imperialismo e seus aliados contra os países aqui citados?
Uma coisa é discutir, a outra é enveredar pela brutalidade e pela estupidez.
P.S. Mesmo contra a corrente, para grande infelicidade do distinto penedo Jaime Santos, o Chile elegeu uma mulher comunista como presidente da câmara de Santiago do Chile. A meu ver, a história da humanidade está a contribuir muito para a falência das ideias de certos comentadores que aqui vêm parar.
José. Ho, José!
ResponderEliminar"O ódio ideológico contra o capital"? O ódio contra o capital só passa a ideológico depois de ser emocional depois ainda de ser físico. Pergunte lá aos imigrantes, de quem tanto se tem falado, se eles têm algum ódio ideológico ao capital. Com certeza lhe responderão que têm mas é fome e vontade de ver a família, homem. O capital aqui é representado por aqueles que exploram esta situação mais aqueles que tendo responsabilidade na fiscalização e na elaboração das leis do trabalho. Por aquilo que o José tem manifestado aqui neste e noutros comentários nota-se que veria com bons olhos a disseminação deste estado de coisas próprias do capitalismo selvagem. O Alentejo e outras regiões que precisam de trabalhadores sazonais teriam com certeza menos necessidade de imigrantes se os produtores pagassem mais. Existem muitos portugueses a trabalhar sazonalmente. Num país de capitalismo insuspeito como a Suiça os portugueses a trabalhar sazonalmente são aos milhares.
tonho
Liberais ou cretinos?
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