sábado, 29 de maio de 2021

Ainda os rankings de escolas

«Acho que já passou tempo suficiente para eu poder falar disto em público.
Há mais de 10 anos, trabalhei com a Inspeção Geral de Educação num programa de avaliação de escolas. Conheci gente muito profissional com quem calcorreei dezenas e dezenas de escolas públicas em quase todos os distritos do Norte.
Nunca me esquecerei da primeira escola que visitei, a pouco mais de 50 km do Porto. Uma criança que só tomava banho nos dias das aulas de Educação Física. Tinha vergonha e o professor mandava-a para o balneário 10 minutos mais cedo para ela se lavar. Quem levava a roupa suja da criança e lha trazia lavada e passada no dia seguinte era uma contínua da escola.
Depois vieram outras histórias que fui amealhando. Meninos cuja única refeição quente era o almoço da cantina. Miúdos que à tarde levavam os restos do almoço escolar para casa para servirem de jantar para a família. Miúdos que ao fim de semana se alimentavam de bolachas Maria. Miúdos que aprenderam a gostar de ler na biblioteca da escola, que em casa nunca tinham visto um livro. Escolas que no inverno acabavam as aulas às 4 da tarde para que os pais das meninas não as vendessem por meia hora aos senhores dos Mercedes pretos parados à porta a coberto do escuro. Crianças alcoolizadas. Professores e funcionários à beira de uma exaustão horrível porque tinham de fazer de pais, mães, psicólogos, médicos, confidentes, assistentes sociais. Crianças que nunca tinham ido mais longe do que à vila lá da terra.
A merda dos rankings, a cloaca dos rankings, a vergonha dos rankings serve para quê? Qual é o espanto em constatar sadicamente que os miúdos de casas sem pão ficam em último e os das fábricas de notas em primeiro? Ponham-me a jogar à bola com o Ronaldo e não é preciso vir nenhum ranking dizer-me que nunca lá chegarei.
As escolas que se dão ao luxo de escolher à partida os seus alunos, que recebem os alunos que em casa comem e leem e viajam e falam inglês não têm grande trabalho a fazer. Todos nós, professores, sabemos que trabalhar com bons alunos é fácil. Difícil, desafiante (e apaixonante) é fazer dos fracos bons.
O resultado de uma escola não se mede só pelas notas a Inglês e a Biologia. Há escolas em que o sucesso é alimentar e lavar os miúdos e isso não passa no radar dos filhosdaputa (pardon my French, mas o vernáculo é para ocasiões destas) dos rankings, cuja única função é apontar ainda mais a dedo aqueles que já são estigmatizados, excluídos, ridicularizados todos os dias, e fazer publicidade enganosa aos colégios "do topo".
Conheço paizinhos com filhos problemáticos que acham que transformariam os seus filhos em génios se os inscrevessem de repente numa dessas escolas. Acreditam que há algo nessas escolas, uma varinha mágica impermeável ao resto, que fabrica génios. A ficha cai-lhes quando são os próprios colégios, em privado, a tirar-lhes o tapete. Nem sequer os admitem à entrevista. É bem feito.
Honestidade intelectual: vão buscar um desses meninos que não comem nem tomam banho em casa, ponham-no numa das "top five" (mas ponham mesmo, não façam de conta), não lhes mudem nada nas condições de vida, e vejam se é isso que os manda para o MIT.
»

João Veloso (via Ricardo Noronha)

6 comentários:

  1. Mas os rankings não dizem que as escolas mais bem classificadas são as melhores. Quem tira essa conclusão é que o diz. As classificação nos exames são apenas um aspeto.

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  2. O que este depoimento mostra (confirma) é que quase 50 anos de políticas públicas e "amor" à escola pública não foram capazes de criar condições para que as escolas se dediquem ... ao ensino. Para que serve a Seg. Social?
    Para quem queira dar aos seus filhos uma boa educação, a escola pública oferece ... serviços de segurança social. Não admira por isso que os professores estejam exaustos. E que quase 50 anos depois o sistema de colocação permita largos períodos escolares sem professores, cuja colocação é hoje um emaranhado de regras complexas e direitos adquiridos.
    Ou que, na primeira oportunidade para renovar o parque escolar se tenha optado por renovar poucas mas elevando-as ao estatuto de "iguais às privadas". Criando um fosso ainda maior dentro das próprias escolas públicas.
    Ou, que me perdoe o leitor João Veloso, que continue a alimentar uma extensa máquina de burocratas (atribuindo a alguns a tarefa de "avaliação de escolas" - para quê? com que resultados?) mas que não perde uma oportunidade para humilhar os seus professores (sim, estou a falar do processo de recuperação de rendimentos).
    O que os rankings mostram não é que há melhores ou piores escolas: é que cada vez mais quem quer dar uma boa educação aos seus filhos, e pode, está farto do amor inconsequente à escola pública e opta cada vez mais por escolas privadas. Onde o foco é o ensino, não a segurança social.

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  3. O Ronaldo foi um exemplo infeliz... Ele veio dum meio pobre e conseguiu chegar ao topo. Era bom haver muito mais casos assim!!

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  4. E há. Mas muitos mais.

    Mais ou menos topo e recentes...

    Renato Sanches (saiu para a Alemanha a correr para ajudar financeiramente a família, mas desportivamente foi um erro que aos poucos começa a ser corrigido). O Rui Costa, também não nasceu em berço dourado, nem o João V. Pinto. A mãe do Jorge Costa era costureira e ele nasceu num bairro social. E por aí fora.

    Na verdade, isto só revela que a estrutura piramidal do futebol em Portugal, que está muito assente em pequenos clubes de formação, tem beneficiado muito jogador a chegar longe, desde que devidamente acompanhado, sobretudo naquela transição para profissional.

    O futebol até é muitos casos um bom exemplo. Mas todos precisam de acompanhamento, tanto na escola como a nível familiar Até o Ronaldo precisou. Sozinho, muito dificilmente lá chegaria. Aos 10 anos já estava nas escolas do Nacional, que convenhamos, já é um clube de algum dimensão.

    Se calhar a escola tem alguma coisa a aprender com as escolas de futebol. Nem tudo é notas e rendimento. A propósito, trabalhar com bons alunos pode ser também difícil, há por aí bons alunos que não ligam nada nem gostam da escola.

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  5. Não, nós não precisamos de mais Ronaldos.

    Cristiano Ronaldo não é centenas de vezes melhor que o jogador médio profissional mas ganha centenas de vezes mais que o jogador médio, o que significa que Ronaldo não recebe milhões pelo trabalho que desempenha, ele recebe pela imagem.

    Não finjamos que Ronaldo e um punhado de outros não fazem parte de uma aristocracia, porque fazem...

    A (falsa) necessidade de termos atletas a ganharem milhões é tão real como a necessidade de termos CR7 das finanças a serem compensados principescamente pelas empresas e bancos de destroem...

    Estes atletas e CEOs receberem milhões é apenas mais um sintoma da decadência do sistema, não é sustentável, e lá no fundo todos nós sabemos que não o é...

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  6. "Há escolas em que o sucesso é alimentar e lavar os miúdos"
    Esta frase faz mais pela escola privada do que 20 anos de rankings.

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