terça-feira, 30 de março de 2021

Não há inevitabilidades


A crónica de ontem de Rui Tavares executa uma tripla revisão ideológica da história, em nome do europeísmo, tomando como pretexto o canal do Suez. É obra.

Em primeiro lugar, na esteira do evolucionismo liberal, naturaliza a globalização: “a globalização é um fenómeno inerente à evolução da espécie e, portanto, não é opcional”. Lembro só que a chamada primeira globalização, que desembocou na Primeira Guerra Mundial, não pode ser explicada sem ter em conta os imperialismos europeus, por sua vez indissociáveis do capitalismo liberal desse período. A construção do canal foi um marco na era do imperialismo. Tavares fala de “escândalos financeiros” e de “guerras culturais”, mas tal não capta o padrão principal da economia política internacional deste período. 

Em segundo lugar, consegue a proeza de ligar a corajosa decisão de nacionalizar o canal, tomada por Nasser, a uma integração europeia que teria tido uma qualquer lógica anti-colonial. Esquece o nacionalismo anti-imperial e esquece que “a maioria dos fundadores da CEE – incluindo Paul-Henri Spaak, Jean Monnet, Robert Schuman, Konrad Adenauer e Guy Mollet – apoiaram a ‘missão civilizadora’ em África e viram o renovado projecto imperial como sendo inseparável do projecto de integrar a Europa”. A “Euráfrica” era realmente todo um projecto. No Tratado de Roma lá está um dos propósitos da CEE: “a associação dos países e territórios ultramarinos com o objectivo de aumentar as trocas comerciais”. Afinal de contas, a maioria da área da CEE estava fora da Europa, originalmente. Felizmente, o grande levantamento anti-colonial trocou-lhes parte das voltas, mas nem por isso a CEE pode ser desligada de um esforço neo-colonial posterior, que se manteve de resto na UE, para as periferias de fora e de dentro. 

Em terceiro lugar, subestima outro facto inconveniente: os Estados sempre determinaram muitos dos contornos da globalização e ainda hoje podem determinar os fluxos a que se abrem e a forma como o fazem, ou seja, podemos falar de formas de globalização, mas também, e sobretudo, de formas de desglobalização. 

Como refere Dani Rodrik, “o facto desconfortável para muitos socialistas e liberais é que nenhum contrato social e nenhum sistema de distribuição pode funcionar num quadro político aberto – isto é, sem fronteiras e sem regras sobre quem está dentro e sobre quem está fora”. Quem e o que, já agora. Este economista metodologicamente convencional gosta de cultivar um certo espírito de Bretton Woods, hoje heterodoxo: os países subdesenvolvidos devem poder copiar as práticas de protecção industrial selectiva dos países bem-sucedidos; os países desenvolvidos devem poder evitar a erosão dos seus standards laborais ou ambientais, bloqueando formas de concorrência e de chantagem do capital consideradas ilegítimas. E isto para já não falar da necessidade de se evitar uma inserção económica internacional geradora de défices persistentes na balança corrente e de correspondente submissão aos credores externos. É claro que nada é mais contrário ao espírito da economia política da integração europeia.

3 comentários:

  1. Tanto a UE não é anti-colonial, que o CFA Franc continua, bem como venda de armas a países com forte presença industrial alemã.

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  2. «formas de inserção económica internacional»
    Inserção? Inserem-se ou é o consumo que os chama?

    'Progressistas' e ecologistas têm uma covardia em comum: nada de falar em limitar o aumento do consumo, em espécie ou em volume.

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  3. "How Economists and Non-Economists Can Get Along"

    "...Economists can be justifiably proud of the power of their statistical and analytical methods. But they need to be more self-conscious about these tools’ limitations. Ultimately, our understanding of the social world is enriched by both styles of research. Economists and other scholars should embrace the diversity of their approaches instead of dismissing or taking umbrage at work done in adjacent disciplines."

    https://www.project-syndicate.org/commentary/economists-other-social-scientists-and-historians-can-get-along-by-dani-rodrik-2021-03

    Boa lição a do Dani!

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