quarta-feira, 17 de março de 2021

As vulnerabilidades macroeconómicas nacionais: uma abordagem monetária moderna

Num esforço para pensar o nosso país para lá do quadro político e conceptual da economia neoclássica, escrevi em coautoria com o João Rodrigues um texto que foi dado à estampa como o segundo longo capítulo do livro, aqui e aqui anunciado, Como reorganizar um país vulnerável


Como o título indica, trata-se de uma tentativa de identificação das principais vulnerabilidades macroeconómicas nacionais, que se articula com um conjunto de propostas para o país mudar de rumo, o que é feito, em larga medida, a partir das ideias económicas conhecidas sob a designação de Teoria Monetária Moderna. 

Deixo-vos aqui o texto, numa versão próxima da publicada. Deixo-vos, abaixo, os dois trechos que iniciam e concluem o referido trabalho, com as referências omitidas: 

O conceito de vulnerabilidade pode ser aplicado à realidade macroeconómica nacional a partir da constatação de que, sem instrumentos de política económica relevantes nessa escala, o país passou a estar mais dependente e exposto a crises. A crise de saúde pública recente, com óbvias e dramáticas declinações macroeconómicas, é só o mais recente e dramático exemplo. 

Já nas últimas duas décadas, a combinação de estagnação e crise, com escassos períodos de tépido crescimento, foi acompanhada de endividamento externo recorde e de níveis de desemprego sem precedentes. Este padrão nacional tem de ser compreendido e modificado. 

Entretanto, cabe desde logo perguntar: será que desta vez é mesmo diferente? 

Carmen Reinhart é uma das muitas economistas convencionais que afiançaram que sim, defendendo, no início da crise de saúde pública, o seguinte: “Este é claramente um momento de ‘tudo o que for preciso’ para políticas orçamentais e monetárias fora da caixa e em grande escala”, ou seja, um momento em que os tesouros nacionais e os bancos centrais têm de garantir, através de estímulos monetários e orçamentais articulados, a despesa necessária para manter e gerar rendimentos. 

Reinhart foi coautora de um dos estudos que serviram para dar colação pretensamente científica às políticas de austeridade, afiançando que níveis de dívida pública acima de um certo limiar seriam prejudiciais ao crescimento. Este estudo foi refutado, através da deteção de erros estatísticos grosseiros e de erros teóricos com implicações de política, já que ignorava as especificidades de Estados com soberania monetária, ou seja, de Estados endividados na sua moeda, controlando as condições de financiamento, incluindo as taxas de juro da dívida, através de uma articulação entre Tesouro e banco central. 

Neste contexto de crise, o impensável tornou-se momentaneamente inevitável entre os economistas convencionais, incluindo a defesa do financiamento monetário dos défices orçamentais, antes reduzido a experiências como a do Zimbabwé; é aceite por muitos economistas e banqueiros centrais a operação através da qual um défice orçamental, ao invés de ser financiando pela emissão de dívida geradora de juros, é financiado pela expansão da base monetária, isto é, pela expansão dos passivos fiduciários irredemíveis e não geradores de juros do banco central. O único limite a este tipo de operações, que prescinde dos mercados, é a inflação, o que, num contexto de pressões deflacionárias, não é definitivamente um problema. 

Tendo em atenção o estado de coisas vigente no campo económico, este capítulo parte da ideia de que não há nada mais prático do que uma teoria para analisar o processo de vulnerabilização macroeconómica e para o superar. Toda a história, incluindo a história económica recente, requer um quadro teórico capaz de ordenar o material empírico e de interpretar a sua evolução. Mais concretamente, este capítulo parte da teoria monetária moderna (Modern Monetary Theory – MMT, em inglês), procurando identificar os principais padrões e mecanismos explicativos numa economia monetária de produção como a portuguesa. 

(...)

Em jeito de conclusão sublinhe-se que esta panóplia de instrumentos de política configuraria um regime económico mais resiliente, menos vulnerável, em que o Estado teria capacidades para reconhecer que numa economia monetária de produção, mesmo em funcionamento normal e com relativo equilíbrio do setor externo, o Estado tende a incorrer em défices crónicos para que o setor privado possa manter superávites permanentes. 

É esta situação, aliás, que cria sustentabilidade no setor privado, dada a atenção que neste setor tem de se ter à geração de rendimentos suficientes para assegurar a solvência, o que cria limites ao endividamento. Numa economia monetária de produção que esteja nesta situação, enquadrada por um Estado monetariamente soberano, que se endivida na moeda por si controlada, o setor público é diferente do setor privado, não tendo problemas de insolvência, dado que pode sempre pagar as suas dívidas, em última instância (e em primeira, se adequado) através de emissão monetária. 

Neste contexto, em que o Estado não depende dos mercados financeiros para o seu financiamento, não há qualquer problema em assumir que o défice é uma variável endógena, dependente do comportamento do setor privado. O Estado deve estimulá-lo e controlá-lo, impedindo aí uma poupança líquida negativa que ponha em causa a solvabilidade das famílias e das empresas. 

Contas certas não podem querer então dizer equilíbrio orçamental, o que implicaria saldos financeiros negativos no setor privado e um aumento da sua fragilidade financeira, mas antes um saldo do setor público suficientemente negativo para gerar procura ao nível do pleno emprego e solvabilidade no setor privado. 

Esse saldo negativo, o défice orçamental, deve ser usado também para induzir uma transformação da estrutura produtiva, indutora de um equilíbrio externo que não dependa da repressão da procura interna, e para aumentar os ativos úteis na economia, tornando-a socialmente mais justa, ambientalmente mais sustentável e tecnologicamente mais capaz, o que obviamente beneficiará as gerações futuras. 

Se assim não for, ficamos confrontados com a situação atual: por muito que politicamente as taxas de juro desçam e que o BCE tente estimular monetariamente a economia, o setor privado não investe o suficiente, não por falta de crédito da parte dos bancos, mas sim por falta de projetos viáveis num contexto de incerteza. Isto é assim, dada a periclitante evolução da procura agregada na ausência de uma política orçamental expansionista que estimule o setor privado através do consumo e do investimento públicos. 

Hoje não há mesmo alternativa que não passe por olhar com realismo para as nossas vulnerabilidades macroeconómicas e para os meios de as debelar. 

Ou melhor, há alternativas, mas são da idade das trevas do pensamento económico e com efeitos bárbaros conhecidos.

2 comentários:

  1. «A crise de saúde pública recente, com óbvias e dramáticas declinações macroeconómicas, é só o mais recente e dramático exemplo.»

    Estava eu crente em vacinas e não em 'instrumentos de política económica'...'

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  2. Ou seja, estamos condenados à Realpolitik porque qualquer alternativa digna desse nome está à partida condenada a uma nova Idade das Trevas!

    É o que costuma acontecer quando um cientista, no caso um cientista social duma ciência social que é a Economia Política, reduz a realidade à grelha de leitura conceptual subjacente, e aos limites inerentes às formalizações lógico-matemáticas a que é levado.

    Mas as Ciências Sociais não têm Paradigmas, e não o têm, nunca é demais realçar, devido à sua própria Natureza, como já nos avisava o Kuhn. O que tem imensas consequências a que convém ser sensível, principalmente se tivermos por profissão o sermos cientistas sociais, ou economistas...

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