quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Dinheiros públicos, vacinas privadas: as razões da produção a conta-gotas

A pandemia da Covid-19 testou a capacidade de todas as instituições internacionais para uma resposta global. Os Estados pagaram, a ciência cumpriu. Mas a solidariedade que fez aparecer a vacina, desapareceu logo a seguir.

A 14 de Maio 2020, 140 líderes mundiais lançavam um apelo, secundado pela OMS, para o desenvolvimento rápido de uma vacina acessível e gratuita para todos, em todo o planeta. Estes líderes moviam-se a partir das duras lições do passado e afirmavam com uma clareza premonitória:

“Este não é o tempo de permitir que os interesses das empresas e governos mais ativos sejam colocados acima da necessidade universal de salvar vidas, ou de deixar esta tarefa moral gigantesca às forças de mercado. O acesso às vacinas e tratamentos como bens públicos globais é do interesse de toda humanidade. Não podemos permitir que os monopólios, competição bruta ou nacionalismo míope se atravessem neste caminho.”

Os autores do apelo sabiam do que falavam. E a resposta inicial continha elementos promissores. O desenvolvimento da vacina contou com um abundante financiamento público dos Estados. Na chamada investigação fundamental, que possibilitou a tecnologia mRNA, e também na aplicação desses resultados a uma vacina no prazo de um ano. Para esse esforço contribuíram o programa norte-americano Warp Speed e o inglês Vaccine Drive e também o governo Alemão e o Banco Europeu de Investimento na BioNtech, que cobriram todo o risco das empresas, financiando o desenvolvimento e garantindo as compras subsequentes.

O apelo juntava às preocupações sobre o acesso um apelo à transparência. Os meses que se seguiram deixaram claro que também esse apelo seria ignorado. A Comissão Europeia assinou contratos secretos que, depois de muita insistência, foram divulgados com rasuras sobre tudo o que interessava. Mas a questão decisiva rapidamente se esclareceu: as vacinas cujo desenvolvimento foi pago pelos Estados europeus eram propriedade absolutamente privada.

Os Estados garantiram patentes para as suas empresas, colocando um gargalo na distribuição e assegurando que ficavam no primeiro lugar da fila para receber a vacina. O regime de oligopólio assim criado explora o desequilíbrio colossal entre uma procura global e uma oferta reduzidíssima. Tudo perfeito, menos a resposta à emergência sanitária. O ritmo de produção ficou totalmente subordinado à gestão das farmacêuticas, ditada pela maximização de um negócio sem precedentes. No dia a seguir a anunciar os resultados positivos nos ensaios da sua vacina, o CEO da Pfizer vendeu uma parte das suas ações, arrecadando 4 milhões de dólares de lucro. Moderna e Pfizer prometeram aos seus acionistas encaixes da ordem dos 5 e 15 milhares de milhões.

O caso mais gritante é o da União Europeia. A falta de transparência do modelo de provisão da Comissão Europeia foi um absoluto escândalo. Depois de financiar fortemente o desenvolvimento das vacinas, a Comissão prescindiu de quaisquer direitos de propriedade e os contratos secretos apenas obrigam as farmacêuticas aos seus “melhores esforços”. Este conceito tornou-se o alçapão jurídico que permitiu às multinacionais regatear o preço das vacinas armazenadas e quebrar promessas de distribuição em troca de melhores negócios, entregando-as a países que oferecessem melhores preços. Os compromissos de produção para 2020 foram quebrados (de 20 para 3 milhões nos EUA) e já em 2021 sucedem-se cortes nas promessas de entrega, gerando conflitos entre empresas e até entre nações.

Hoje, a Comissão encontra-se na humilhante posição de mendigar as vacinas encomendadas junto das empresas que financiou. Os cidadãos pagaram mas não mandam, num negócio em que se misturam fanatismo liberal, captura das instituições e incompetência pura.

Em Portugal, poucos falam da gestão catastrófica da Comissão. Para a direita, a escassez é mais um pretexto para disparar sobre o SNS. Na realidade, Portugal é dos países que mais está a vacinar na União Europeia, bem acima da média e acima de países como França ou Alemanha. Os serviços nacionais de saúde montaram sistemas de vacinação que funcionam aos solavancos, por força das insuficiências, flutuações e incerteza nas entregas.


Quanto à solidariedade global, ficamo-nos pela conversa. O mecanismo Covax não tem poder de fogo com qualquer impacto significativo, nem mesmo para cobrir pessoal da primeira linha e grupos de risco. Guterres chamou à vacina um sucesso para a ciência, mas um fracasso para a solidariedade. Mas a frase perdeu-se na corrida. As multinacionais farmacêuticas e as potências mundiais parecem viver bem com uma catástrofe humanitária à escala global.

Aqui chegados e com tanto do mal já feito, de pouco servirão as ameaças absolutamente vazias de litigância. Toda a gente sabe que a Comissão não vai para tribunal durante anos quando tem de garantir uma solução para ontem. As vacinas têm de ser produzidas em massa em todos os laboratórios preparados para o fazer. O Reino Unido, não só assegurou as compras necessárias, como aumentou a capacidade produtiva para poder assegurar a produção dentro de casa.

De pouco valerá à Comissão continuar a gritar “temos aqui um contrato”, sobretudo tendo em conta o que lá está escrito. A solução é simples, está prevista pela OMS e tem sido defendida pelos Médicos sem Fronteiras e outras ONGs. Até a Organização Mundial de Comércio reconheceu, na declaração de Doha, que o acordo TRIPS (sobre direitos de propriedade industrial) “não impede e não deve impedir os membros de tomar medidas para proteger a saúde pública.”

Ou as farmacêuticas libertam as patentes a preços razoáveis, ou essas patentes terão de ser quebradas e divulgadas livremente. A capacidade produtiva existente deve ser plenamente utilizada e alargada, na medida do possível. Já morreram mais de 2 milhões de pessoas por causa da Covid, fora as que não entram nas estatísticas. Essas vidas valem mais do que os lucros de um negócio pago por nós.

José Gusmão, Moisés Ferreira, Bruno Maia

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