Os EUA acreditam no conceito de liderança global. Acham que têm de sair de casa para irem consertar o mundo, defender a liberdade e lutar em guerras. Os chineses ficam desconcertados com esta visão. Não compreendem porque é que os EUA gastaram cinco biliões de dólares em guerras no pós-11 de Setembro. Para a China, isto é bizarro. A China não tem estas aspirações de liderança mundial, só quer ser respeitada enquanto grande potência (...) Se a disputa fosse entre uma democracia americana vibrante e um partido comunista chinês rígido, a democracia americana venceria. Mas democracia na América tem vindo a transformar-se numa plutocracia. O PCC transformou-se numa meritocracia — tem as melhores mentes da China a trabalhar para o partido e, ao mesmo tempo, goza de enorme apoio da população (...) Se olharmos para os últimos 30 anos dos EUA, verificamos que o rendimento médio dos 50% mais pobres, que estava em crescimento nas quatro décadas anteriores, caiu ou estagnou. As classes trabalhadoras encontram-se num mar de desespero, as dependências em substâncias narcóticas aumentaram, a taxa de suicídio aumentou, a esperança média de vida baixou, etc. Em contraste, os últimos 40 anos de desenvolvimento económico e social na China foram os melhores 40 em 4000 anos de História da civilização chinesa.
Excertos de uma entrevista do Público a Kishore Mahbubani no final do ano passado e que literalmente recortei para este ano. Um pensador que dá sempre que pensar: se querem uma certa reconciliação com o mundo, quando nunca pareceu tão difícil tal exercício, acho que a leitura crítica da obra deste antigo diplomata de Singapura, em particular o seu curto ensaio provocador sobre a queda do ocidente, pode ajudar. Escrito antes da pandemia, a sua visão sai reforçada em alguns aspectos.
No entanto, não devemos subestimar as capacidades do complexo académico-militar-industrial norte-americano, o poder do dólar ou a disponibilidade para planificar rapidamente quando se fixam grandes objectivos, sem esquecer os impulsos orçamentais de tipo keynesiano, mais ou menos abastardado, sejam quais forem os seus objectivos, de Reagan a Biden, passando por Trump. Sem estes, já tudo teria colapsado do lado de lá.
Olhemos para o gráfico das mortes acumuladas na pandemia. Pelo menos, pode apostar-se que um certo monopólio cientifico-tecnológico e a vantagem organizacional do Atlântico Norte, conseguido também à boleia do imperialismo, acabou e nunca mais vai voltar, felizmente. Os efeitos do longo século XIX estão a acabar e os efeitos do grande levantamento anti-colonial e anti-imperial da segunda metade do século breve estão a ver-se por todo o lado, ao contrário do que aparentava o seu desenlace unipolar. Precisamos de aprender, rejeitando os que andam à procura de pretextos para novas guerras frias, à boleia de uma suposta superioridade já não se percebe bem do quê. Racismo velado é o que é. É impressionante como a UE, com a ideia de pesar no sistema internacional, é tributária de uma nostalgia eurocêntrica, em linha com a sua natureza imperial-liberal.
É claro que, em última instância, o mundo depende tanto do que resta do Estado do New Deal e da sua eventual reconstrução verde como da República Popular da China, até para enfrentar ameaças como as alterações climáticas, tarefa para Estados nacionais robustos, para os herdeiros de Roosevelt e de Mao, mas também para estados mais pequenos, com as suas próprias tradições e referências.
Os chineses têm falado de uma civilização ecológica, no quadro de sociedades moderadamente prósperas, e sobretudo têm fixado metas e feito investimentos à altura, dado que são dos mais afectados e têm experiência de planificação. A The Economist desta semana informa que aguarda com expectativa, reparem na ironia, o próximo plano quinquenal chinês e suas metas nesta área, depois de Xi Xiping ter dado sinais bastante encorajadores, como logo assinalou no ano passado o historiador Adam Tooze.
A diplomacia do clima está aí, devendo-se também por isso evitar guerras frias, apesar de parecer ser necessário um enquadramento em termos de segurança nacional para gerar consensos nos EUA e não só, em face da catástrofe que aí está, como se argumenta num livro importante sobre o papel crucial dos Estados nacionais, sem os quais nada se fará. Demasiados ecologistas esquecem que a nação continua a ser o espaço privilegiado para a acção colectiva com efeitos duradouros, assinala Anatol Lieven.
Seja como for, este tipo de exercício de economia política comparada é sempre recompensador e num certo sentido esperançoso. É realmente necessário tentar olhar para todos os lados.
Caro Joao Rodrigues,
ResponderEliminar"A China não tem estas aspirações de liderança mundial, só quer ser respeitada enquanto grande potência (...)"
"O PCC transformou-se numa meritocracia — tem as melhores mentes da China a trabalhar para o partido e, ao mesmo tempo, goza de enorme apoio da população"
E provavelmente o contribuidor deste blogue em quem mais me revejo em termos de pensamento de economia politica.
Concordo em absoluto que um mundo multi-polar e francamente preferivel para a ordem internacional e para abrir espaco na criacao e fomento de sociedades nacionais decentes. Agora nao corra tambem o Joao Rodrigues o risco de ser ingenuo: ha varios trechos deste texto que cita que nao passam de felacios, mal disfarcados ao poder Chines, estes trechos que transcrevi no inicio sao simplesmente risiveis.
Os trechos que citou são apenas e só, verdades inquestionáveis. Veja os discursos de Xi Jinping, leia os textos sobre os objectivos definidos pelo PCC (e que são cumpridos com inegável rigor) e reveja a sua posição. Não gostar de chineses ou ter receio do desconhecido é uma coisa, mas contra factos, todos os argumentos são isso sim, risíveis.
EliminarUm excelente texto de João Rodrigues
ResponderEliminarDe facto, o mundo multi-polar é a resposta ao "excepcionalismo" americano, sempre apresentado, lá como cá, como se de país eleito se tratasse.
De facto, uma grande variedade de sintomas mórbidos vão aparecendo
De facto, não devemos subestimar as capacidades do complexo académico-militar-industrial norte-americano, o poder do dólar ou a disponibilidade para planificar rapidamente ou para os impulsos orçamentais de tipo keynesiano, mais ou menos abastardado
De facto, a UE (Não confundir com a Europa), assume cada vez mais ares de prima-dona deslocada e nostálgica do império perdido. Ponto a ponto vai-se revelando como aquilo que é, fiel depositária duma doutrina que aprisiona tudo e todos à medida dos interesses que serve
Um texto estimulante, como o são sempre os de João Rodrigues. Porque também audazes e que nos questionam a vários níveis
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Nem os exageros que o Lowlander aponta, nem acreditar que os EUA alguma vez foram algo que não uma oligarquia, por concepção.
ResponderEliminarhttps://www.wook.pt/livro/has-china-won-kishore-mahbubani/23793712 do autor Kishore Mahbubani, Has China Won? O livro encontra-se na NET. Muito bom.
ResponderEliminarA questão primordial que coloco é que na minha perspetiva toda a informação que a China transmite sobre a realidade da pandemia dentro das suas fronteiras é falsa é impossível mesmo num regime ditatorial controlar uma pandemia deste tipo com esta "eficiência" num dos países mais populosos do mundo com um sistema de saúde muito frágil, em segundo lugar como se justificam muitas das medidas de hospitais construídos e inaugurados para combate à pandemia. O desastre do neoliberalismo nos países ocidentais não se combate dando como exemplo contrário a seguir uma ditadura neoliberal como a China e que os níveis de concentração da riqueza e das desigualdades são iguais ou maiores, em que alegada meritocracia não é mais do que pertencer ao PCC, em que os níveis de exploração dos direitos dos trabalhadores é pior do que nos EUA, etc.
ResponderEliminarConsidero que a denuncia e a luta contra o neoliberalismo e este capitalismo explorador que vivemos não passa nem pode passar pela defesa ou por sequer apresentar regimes como a China ou a Rússia como alternativas ou exemplos a seguir em nenhum aspecto nem de organização politica, económica social ou mesmo a nível internacional.
Gonçalo Avelãs Nunes
Lowlander,
ResponderEliminarAliás, a China, num passado já longínquo, teve os meios - militares, navais, etc. para se tornar hegemónica e prescindiu disso (tem os seus custos...)
Lowlander,
ResponderEliminarOlhe que talvez não. O Mahbubani é diplomata singapurense, de origem indiana e, no livro "Has China Won?" detalha melhor este tipo de afirmações. O nosso conhecimento da China é bastante limitado.
Caro Jose M. Sousa,
ResponderEliminarFolgo muito em ver o seu nome, um veterano dos blogues, por aqui.
Quanto aos pontos que suscita. Nao li o livro, nao conheco o autor e aceito perfeitamente que como Ocidental que sou, tenho conhecimento muito limitado da China.
Mas isso e lateral as bases com que avanco o meu ponto: O sudoeste asiatico desenvolveu a sua propria cultura, da mesma forma que tantos outros cantos do planeta, mas, presumivelmente ainda permanecerao todos Humanos certo? E todos a operar no seio de uma planeta onde o sistema social capitalista hegemonicamente condiciona tudo e todos correcto?
Alem disso, depois o Jose M. Sousa depois avanca com umas linhas sobre historia, ai, lamento mas esta radicalmente errado: precisamente aquilo que a historia nos ensina e que todos os Imperios aspiram a dominacao hegemonica - e mais ainda - todos os Imperios no seu auge tentam passar a ideia do seu excepcionalismo intrinseco que justificaria, moralmente, a sua emergencia passada, a sua existencia presente e a sua expansao futura.
Leia o que se escrevia (e o que se escreve ainda) sobre o excepcionalismo Americano finais do sec XIX; leia o que se escrevia sobre o excepcionalismo Sovietico no inicio do Sec XX; leia o que se escrevia sobre o excepcionalismo Britanico nos finais Sec XVIII inicio sec XIX; exceptionalismo Frances - ai ate tem varios (excepcionalismo do Rei Sol Luis, o excepcionalismo Napoleonico etc...); o excepcionalismo do Imperio Ateniense; o excepcionalismo do Imperio Romano; o excepcionalismo do Islao; o excepcionalismo Viking; o excepcionalismo Portugues (nao se lembra da escola? de como os Portugueses foram colonizadores benevolos ao contrario dos outros por causa do nosso "nacional-porreirismo"?)... a lista segue por ai fora... infelizmente alguns imperios nao deixaram registos escritos decifraveis e como Ocidental, as minhas leituras centram-se mais no Ocidente, mas nao tenho duvidas que no seu tempo tambem o Imperio Mongol e o Imperio Chines tiveram imensos escribas a tecer consideracoes sobre os seus respectivos excepcionalismos...
Por fim, a China nunca teve meios para se tornar hegemonica a nivel global e isto por uma razao muito simples, a hegemonia global so se manifesta quando ha tres factores essenciais a actuarem em simultaneo: superioridade cientifico-tecnologica da potencia dominante; geografia (politica e fisica) favoravel ao uso concreto dessa superioridade e vulnerabilidade/divisao das potencias opositoras.
Mas foi hegemonica a nivel regional - o Jose M. Sousa porque motivo quando nos os Ocidentais chegamos ao Japao encontramos uma mentalidade de cerco profundamente hostil a presenca de estrangeiros?
E China exerceu influencia a nivel global como pode, foi a grande forca motriz por tras do primeiro sistema realmente existente de comercio globalizado nos sec XVI e XVII nomeadamente como destino final de toda a prata extraida das Americas.
E perfeitamente valido ate argumentar que foi a China quem financiou a criacao de todas as industrias Europeias de manufactura e comercio de escravos associadas ao sistema de comercio triangular do Atlantico uma vez que era o comprador final de toda a prata resultante desse sistema.
Resumindo e confundindo Jose M. Sousa: nao sejamos ingenuos.
Caro Lowlander,
ResponderEliminarEu diria que querer maior influência nos assuntos mundiais não implica necessariamente querer hegemonia militar global. Enviei mail :)
Bom, sabemos que há quem veja vários trechos quando se cita só um ou se vejam dois, quando só se enxerga um. Deve ser do por-do-sol
ResponderEliminarObjectivamente falando há outra ideia que atravessa o texto de JR e que tenho por fundamental. É que é mesmo necessário tentar olhar para todos os lados. E isso pode ser fonte não só de aprendizagem, como de esperança.
Ora se olharmos para os órgãos de comunicação social ocidentais veja-se como as notícias têm aquele olhar sistematicamente enviesado sobre tudo e todos, silenciando tudo o que não lhes reproduza os esteriotipos ou que os coloque minimamente em cheque