Durante a crise anterior, uma crise de envidamento privado externo erradamente denominada crise das dívidas soberanas, o consenso económico e político imposto pela direita assentava na ideia segundo a qual se aceita e/ou se defende, primeiro, que o Estado não pode financiar-se diretamente no seu banco central (porque assim é que é eficiente, porque assim é que é legal, ou porque ambos), segundo, que este Estado, tendo de financiar-se obrigatoriamente no mercado, está sujeito às suas taxas de juro e, terceiro, consequentemente, Estados com maior dívida, representam maior risco creditício, risco esse que justifica taxas de juro mais elevadas e estabelecidas no mercado que são incompatíveis com políticas orçamentais outras que não as de austeridade orçamental.
Uma ideia falsa e perigosa, travestida de boa prática económica, que provocou na periferia da Europa uma devastação sem precedentes e que só não significou o fim do Euro porque o consenso que a sustentava começou lentamente a erodir-se, primeiro, em 2012, com a comunicação pública do BCE que faria o que que fosse necessário para defender o Euro do colapso e, depois, em 2015, com o efetivo iniciar de um programa significativo de compra indireta (no mercado, com intermediação privada) de dívida pública.
Evolução da dívida pública, em percentagem, detida por quatro dos principais bancos centrais (Reserva Federal dos EUA, BCE, Banco do Japão e Banco de Inglaterra)
Um processo histórico de erosão de um consenso que é também uma demonstração cabal da lição fundamental da
economia política: “as leis naturais da economia, que parecem existir em virtude da sua própria eficiência, não são na realidade senão projeções de relações sociais de poder que se apresentam ideologicamente como necessidades técnicas”.
Mudaram os interesses objetivos e subjetivos do poder e mudaram consequentemente as leis da economia e o aparato técnico que as defende. Preservar o Euro, e os interesses daqueles que dele beneficiam, assim obrigou.
A meu ver,
repetindo-me, uma das características diferenciadoras de um regime monetário neoliberal, talvez a mais importante de todas, é a auto-imposição, política e institucionalmente construída, da subordinação creditícia do Estado soberano colocando-o numa situação em que concede o monopólio da emissão monetária, hoje inteiramente fiduciária e da sua força legal inteiramente dependente, a um banco central e, simultaneamente, se auto-exclui da possibilidade de, junto deste, se financiar diretamente, colocando-se, assim, por escolha, na dependência dos mercados financeiros privados.
Este distópico regime monetário tem beneficiado de uma laboriosamente produzida opacidade, assente em mecanismos que só aparentemente são complexos, para fabricar a subordinação do Estado a interesses particulares e lhes permitir uma injustificada extração de valor através de actividades que não o criam.
As mirabolantes justificações de Centeno e Leão para a evolução, na realidade sempre
politicamente pilotada, da taxa de juro que paga a dívida pública portuguesa, criando obstáculos à boa compreensão dos reais constrangimentos a que está sujeito o financiamento público de um país semi-periférico e monetariamente não soberano como o nosso, constituem, a meu ver, bons exemplos daquela opacidade, dificultando a discussão democrática da subordinação pública ao lucro privado.
Senão vejamos:
Por um lado, como escreveu, em 1946,
Bearsdley Ruml, ao tempo presidente do Banco da Reserva Federal de Nova Iorque, com o fim do regime monetário conhecido como
padrão-ouro e, assim, com o fim da convertibilidade da moeda em ouro, um Estado soberano não necessita nem de mercados financeiros privados e – pasmem todos aqueles que pensam que, em termos económicos, uma economia pode ser equiparada a uma família - nem sequer de impostos para financiar a sua atividade.
Por outro lado, mesmo num cenário em que esse Estado monetariamente soberano decida autoexcluir-se da possibilidade de se financiar diretamente no seu banco central, ainda assim, esse Estado continua a poder aceder àquela fonte de financiamento por via indireta e, no processo, a determinar a taxa de juro em que incorre.
Isto mesmo é o que explica
Marriner Eccles, presidente da Reserva Federal dos EUA entre 1936 e 1948, e um acérrimo opositor da proibição de financiamento direto da Reserva ao Estado Federal, proibição que, nos EUA, depois de vários avanços e recuos durante todo o século XX,
apenas se estabilizou em 1981:
“(...) se o Tesouro tiver de financiar um défice pesado, o Sistema de Reserva [a Reserva Federal dos EUA] cria condições no mercado monetário para permitir que o empréstimo seja feito, de modo que, de facto, o Sistema de Reserva financia indiretamente o Tesouro através do mercado monetário, e foi assim que as taxas de juro se estabilizaram como estabilizaram durante a guerra, e como terão de continuar a ser [estabilizadas] no futuro. Portanto, é uma ilusão pensar que eliminar ou restringir o privilégio do empréstimo direto [ao Estado] reduz o montante do financiamento do défice. Ou que o mercado controla a taxa de juro. Também não é verdade (...).
Proibição esta, a de financiamento direto do banco central ao seu tesouro, que, como se sabe, se encontra suspensa no
Reino Unido, mas continua
em vigor na zona Euro.
Mas então, perguntar-se-á, se a proibição de financiamento direto do Banco Central ao seu Tesouro não impede que um Estado soberano realize despesa, se não “disciplina” as finanças públicas, porque o último pode sempre financiar-se indiretamente no primeiro, qual é a razão para esta proibição?
Marriner Eccles, também tem
resposta para esta pergunta. A proibição de financiamento direto da Reserva ao Estado Federal “pode ser rastreada a certos negociantes de títulos do governo que, naturalmente, tinham os olhos postos nos negócios que poderiam ser perdidos se a compra direta fosse permitida”.
Mas então, perguntar-se-á também, se os Estados da zona Euro, que não podem financiar-se diretamente no BCE, não enfrentam problemas de liquidez porque podem financiar-se indiretamente, e se os juros estão tão baixos, por que razão não prosseguem uma política orçamental expansionista, capaz de suportar a economia neste período de crise económica e social sem precedentes, como é
recomendado pelas organizações internacionais e economistas convencionais, as mesmas insuspeitas entidades e economistas que na crise anterior advogavam a austeridade?
No que aos países mais envidados da preferia da zona Euro diz respeito, na minha perspectiva, a explicação reside, em larga medida, no facto de Estados monetariamente não soberanos, por desenho institucional, incapazes de impor a sua vontade ao seu banco central e, por escolha política, sem o desejo de romper com a
ficção da sua independência, terem um receio fundado que a
história se repita, e que, uma vez ultrapassada a crise de saúde pública, o BCE, estatuariamente obrigado ao objetivo da estabilidade dos preços e desobrigado de quaisquer objetivos para o nível de emprego, os deixe novamente expostos aos ataques especulativos dos mercados.
Repare-se que, para além daquela parte dos discursos que tem feito as manchetes, que anunciam a emergência de um alegadamente novo consenso económico e onde sobressaem os alertas para os limites da política monetária e a apologia de políticas orçamentais expansionistas, prestando o mínimo de atenção não é possível deixar de tropeçar em toda a espécie de avisos de sinal contrário.
Atente-se, por exemplo, no mais recente
relatório publicado pelo BCE sobre o cenário macroeconómico da zona euro. Por um lado, analisando as propostas orçamentais dos países pertencentes à moeda única, este relatório conclui que a consolidação orçamental pode “exacerbar a atual situação económica”; contudo, por outro lado, não deixa de avisar que “níveis de dívida mais elevados implicam que os governos estão mais expostos a um aperto abrupto das condições de financiamento”. Para bom entendedor, meia palavra basta. E, contudo, o que temos não são só meias palavras, mas também avisos explícitos.
A título de exemplo do que acima afirmo, considere-se o
relatório do BCE de maio último. Por exemplo, quando ali se afirma que a "pandemia representa um desafio a médio prazo para a sustentabilidade das finanças públicas"; ou, quando prevendo que a dívida pública se aproxime dos 200 por cento do PIB na Grécia, dos 160 por cento na Itália e dos 130 por cento em Portugal e de pouco menos de 120 por cento em França e Espanha, afirma: "O aumento associado dos níveis da dívida pública poderá também desencadear uma reavaliação do risco soberano pelos participantes no mercado e reacender as pressões sobre os soberanos mais vulneráveis".
Repare-se também que esta posição do BCE é assumida já depois das
declarações incendiárias de Lagarde de Março anterior, declarações estas que obrigaram a instituição monetária a vir a público jurar que não está hoje, com Lagarde, menos comprometida com o futuro do Euro do que estava no passado, com Mario Draghi.
Ou seja, se o BCE diz, em Março, que está “
totalmente empenhado em evitar qualquer fragmentação" nos mercados obrigacionistas e, em Maio, que o aumento da dívida pública pode levar os mercados a “uma reavaliação do risco soberano” e a “pressões sobre os soberanos mais vulneráveis”, o que esperar da política orçamental desses soberanos?
E, não menos, importante, repare-se ainda que apesar da patente falência das regras orçamentais, a Comissão apenas se comprometeu com a sua suspensão durante o ano que corre e, talvez, em 2022: "
A cláusula geral de escape permanecerá em vigor todo o ano de 2021. Mas isso não significa que, a partir de 1 de Janeiro de 2022, esta será desativada". “Todo” o ano de 2021, dizem eles. E, calhando, talvez parte, ou mesmo, todo 2022. Não é fantástico? Não é de ficar descansado e gastar como se não houvesse amanhã?
A zona euro vive os últimos anos da sua curta vida em negação.
ResponderEliminarO art 123 do tratado de Lisboa proibe ao bce financiar os déficits dos estados membros, mas é isso que o bce tem feito nos últimos 10 anos.
MASSIVAMENTE! e em percentagem da subscrição de capital que cada um tem no bce.
Refira-se que isto faz-se ao mesmo tempo que se nega tudo e mesmo perante a oposição dos tribunais alemães.
No fim, quem ganha é a Alemanha e, de facto, o maior beneficiário do QE é a Alemanha, que nem déficit tem.
O mantra neoliberal das REGRAS assim o obriga.
Já temos dados históricos suficientes para saber as consequências das REGRAS: a acumulação da riqueza mundial nas mãos de 1% da população.
E é exatamente isso que o QE está a fazer na Alemanha: o excesso de liquidez permite ao governo cortar nos impostos dos super-ricos e eles vão acumulando.
Entretanto, em Portugal, as elites também estão confortáveis, embora de forma diferente dos seus colegas germânicos.
Precisando de dinheiro, basta acenar ao banqueiro mais simpático, que empresta o que ele quiser, sem necessidade de garantias colaterais.
Na próxima crise, ele deixa de pagar, porque sabe que o Estado virá a seguir salvar o sistema financeiro da falência e nacionalizar os calotes.
No final, resta a austeridade para quem trabalha, pois é assim que uma colónia funciona.
Caro Paulo Coimbra,
ResponderEliminarEm primeiro lugar, os meus parabens pelo texto. Muito bom.
Em segundo lugar, esta passagem:
"Um processo histórico de erosão de um consenso que é também uma demonstração cabal da lição fundamental da economia política: “as leis naturais da economia, que parecem existir em virtude da sua própria eficiência, não são na realidade senão projeções de relações sociais de poder que se apresentam ideologicamente como necessidades técnicas”. "
Concordo com ela em absoluto e agora que me chamou a atencao para o seu autor Wolfgang Streek verei o que posso ler do pensamento dele. No entao suscita-me surpresa.
Surpresa neste sentido: eu, pessoalmente, ha muito tempo muitos anos que cristalizei em mim a ideia de que a economia politica nao e uma ciencia, na minha opiniao e uma forma de engenharia. Ha muito tempo que cristalizei esta ideia porque me apercebi que o objecto de estudo da economia politica nao e um objecto "natural" e portanto estavel no tempo e regido por "mecanismos" de transformacao tambem elas estaveis no tempo - nao manipulaveis, nao e como estudar a biologia de um virus, que apesar de mutavel no tempo, faz essas mudancas com base em "regras". A economia politica afigura-se-me mais com a teoria do xadrez ou mecanica automovel, objectos de estudo que nunca podem ser "cientificos" porque o objecto de estudo e um artefacto humano sujeito a transformacoes imprevisiveis - se os motores automoveis passam a ser movidos por uma bateria electrica, todos os livros sobre mecanica de motores de combustao interna sao inuteis - se as regras do jogo de xadrez forem alteradas (como ja foram historicamente!) entao os livros escritos sobre teorias de aberturas tem de ser re-escritos outra vez...
Naturalmente gosto muito de atirar esta ideia ao estilo de uma granada de fragmentacao sempre em presenca de economistas encartados so para apreciar a reaccao destes.... que nunca me desaponta... :-D
Surpreendido portanto fico em ver uma citacao destas num blog sobre economia escrito por economistas.
Cumprimentos
O que me parece opaco é essa relação entre o euro ao serviço de interesses de quem dele beneficia e o nosso Estado soberano com seu banco central.
ResponderEliminarO Estado Português é o que existe nas condições actuais de desenvolvimento económico e endividamento.
O que sabe fazer e faria ao seu soberano dinheiro era distribuir e pagar rendas a quem invista por ele, pois não teria crédito em lugar algum, o que nos traria a miséria que naturalmente se ambiciona dever ser muito socialista e por tal muito satisfatória.
Na prática, tudo vai dar à ambição de endividamento sem limites em euros e esperar a caridade dos outros (naturalmente se dirá que não fariam mais que compensar pelos seus benefícios com o nosso endividamento, e por nos privarem de uma soberania monetária que nos asseguraria a miséria.
Atrair capitais que invistam no país, é sempre matéria incómoda, pois sempre se traduz em promover o odiado capitalismo.
E depois de oferecer propriedade monopolista com rendas em cima e toda a precariedade que faz Bruxelas molhada, que investimento estrangeiro conseguiu a ideologia de Jose? Coisa nenhuma.
ResponderEliminarObrigado e abraço, caro Lowlander.
ResponderEliminarBom, respeite-se o nível do debate.
ResponderEliminarE se não se importam, sigamos as palavras atentas de Paulo Marques. O comentário de jose fica reduzido mesmo a isso.
"Coisa nenhuma".